sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Memórias: sobre Cachorros e Uma Beira de Rio

Algumas memórias são recorrentes. Contudo, com o passar do tempo parecem que elas vão esvanecendo. A imagem que me ocorre é que elas parecem estar armazenadas em cartões parecidos com aqueles que são usados em testes de visão para detectar daltonismo. Ao longo dos dias e anos, elas vão se misturando com os pontos coloridos de todas as lembranças. Se tornam contornos cada vez mais dificéis de visualizar em uma miríade de pontos de cores da vida. Parece que vou desenvolvendo um daltonismo das lembranças, em que elas além de se esconderem aos poucos, também se parecem com sonhos. Terão acontecido mesmo? Qualquer que seja a resposta, sonho ou lembrança, me constituem enquanto humano. São inescapáveis, mesmo quando borradas.
Nesses dias, tenho lembrado dos cães que povoaram minha infância e adolescência. Foram muitos, mas são dois que ainda se sobressaem com mais nitidez em meus cartões de memória: Pipoca e Fox. Nenhum dos dois com raças claramente definidas. Mestiços que deixaram histórias.
O primeiro, Pipoca, era um cãozinho pequeno, branco com manchas marrons muito claras. Tinha um defeito no lábio inferior que passava a ideia de estar sempre sorrindo. Os dentes, sempre à mostra, não transmitiam a ideia do rosnar agressivo. Pelo contrário, era um sorriso meio torto. Às vezes parecia até irônico.
Tenho duas memórias do Pipoca. Adorava balas e antes de atravessar a rua olhava para os dois lados. Morávamos, meus pais, irmãos e eu, na rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez que ficava no número 1120, na esquina com Goiás. Todo dia, Pipoca fazia seu ritual de atravessar a rua com segurança, entrava no supermercado e ficava pulando à beira de um dos caixas, até que alguma das moças lhe desse uma bala. Adorava as balas Rin-tin-tin! Mas, um dia errou o cálculo, ou se distraiu atravessando a rua e foi atropelado. Nunca mais pode saborear as balas Rin-tin-tin.
Fox, ao contrário, era um cachorro maior e mais agressivo. Não ia até o supermercado. FIcava no quintal de nossa casa, que em uma das laterais tinha uma rampa não muio íngreme, calçada, com uns quinze metros de comprimento que levava do portão até a garagem. O portão ficava sempre fechado. Mas, de vez em quando, alguém saía com o carro e esquecia o portão aberto.
Não poucas vezes, quando o portão estava aberto, Dona Ana estava indo para o supermercado com seu pequinês. Nesse momento, Fox saía em disparada da garagem e agarrava o pequinês pela nuca e o chacoalhava com muita força. Era um caçador! Nesses momentos, no meio da gritaria, eu, que era um dos poucos que Fox respeitava, corria até a cena e tinha que bater muito nele para que soltasse a presa. Um dia meu pai deu Fox para o bananeiro que o levou para o sítio. Fox escapou e exterminou as aves de um galinheiro vizinho. Seu fim não foi muito agradável!
Por fim, chego ao rio Tibagi que vive em minha memória como uma parede d'água escura, quase marrom. Me lembro que estava com alguns de meus tios maternos que foram pescar à beira do Tibagi que fica não muito distante de Londrina. Havia outras crianças, provavelmente meus irmãos e primos. De repente, passando por meus tios, escorrego na beira do Tibagi e vou para o fundo do rio. Me lembro de ter uma visão turva e úmida. Logo depois, um dos meus tios, que na minha memória foi o tio João, pulou atrás de mim e me tirou da água. Terá sido um sonho?
Eu acho que não, mas uma vez perguntei a meus tios, e ninguém se lembrou. Mas, é uma lembrança que me constitui fortemente. Quando mergulho em águas escuras sinto um desconforto muito grande.
Esses são três cartões de minha memória que vão se reconfigurando com as cores da vida. Quando meu daltonismo memorial se acentuar, terei esse registro para guiar-me e localizar seus traços no tempo.

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