sábado, 10 de setembro de 2022

Duas amigas, três quartos de século

Foi ela que me contou da amiga. Não uma,  mas inúmeras vezes. Aos finais de semana. Quando a visitava. Quase que quinzenalmente. Entre 2009 e 2019. Uma década de histórias contadas. Algumas já relatei em outros momentos. Muitas vagam pelos escaninhos da minha mente. Difíceis de resgatar. Vezenquando uma salta aos meus olhos. Como se tivesse vida própria. Porém, a maioria está lá aonde minha consciência não alcança. Impotente, me rendo às desmemórias do inconsciente. Ou será ao poder implacável do esquecimento?
O que conto hoje é um amálgama de várias memórias. Minhas e das que ela me contou. Lembranças daquilo que me contou misturadas ao que imagino ter ouvido. Afinal, memórias surgem daquilo que vivemos, do que pensamos ter vivido e do que gostaríamos de ter vivido. Enfim, eis do que me lembro.
Ambas se conheceram entre 1945 e 1950. Ela já professora. A amiga, filha de um comerciante. Em Londrina. A cidade menina, de pouco mais de dez anos. As duas jovens nos seus vinte anos. A loja do pai da amiga ficava a meio caminho entre a casa onde morava com os pais e a escola onde trabalhava. Ao final da tarde, as amigas se falavam. De segunda a sexta. Aos finais de semana, ainda se encontravam em algum festejo da cidade. Quermesse, baile, sarau, teatro, até mesmo um cinema que já chegara a Londrina. Nunca muito distante de onde viviam. No centro de Londrina. Nas proximidades da catedral.
No começo dos anos 50, o distanciamento. Geográfico apenas. Ela mandou construir uma casa para os pais. Um pouco afastada do centro. O caminho da escola até a casa se tornou distinto. Já não se viam diariamente. Mas, a amizade continuou. A cada oportunidade de reencontro, a conversa era posta em dia. Casaram-se. Tiveram filhos. A amiga continuou morando no centro. Ela, após o casamento, mudou-se da casa dos pais. Não muito longe. Os anos foram se passando. Contando décadas. Anos 60. Anos 70. Anos 80. Mesmo afastadas pelos compromissos familiares e de trabalho, a amizade seguia firme. A amiga e as irmãs assumiram a loja do pai. Ela tornou-se comerciante junto com o marido. Afastou-se da vida de professora. Porém, cada encontro era celebrado com o afeto das amizades verdadeiras. A conversa era posta em dia.
Em meados dos anos 80, ela e o marido venderam a empresa e mudaram-se para o centro de Londrina. Muito próximo à Concha Acústica. Inaugurada em 1957. Ano em que nasci. A amiga e as irmãs também já tinham se desfeito da loja. Moravam, no entanto, no mesmo local. As amigas se reencontravam com maior frequência. As conversas eram postas em dia. Sempre. Recheadas de lembranças e memórias da cidade que viram crescer. Os anos foram se passando. Virando décadas. Anos 90. Anos 2000. Um novo século. Anos 10. Na última década se viram menos. O peso da idade se fazendo sentir. Uma vida mais caseira. Vezenquando a visita dos filhos. De irmãos e irmãs. Sobrinhos, netos e algumas poucas amigas.
Quase ao final da década, no começo de 2019, um novo reencontro. As duas abatidas pela senilidade, foram viver em uma casa de repouso para idosos. Os filhos acreditavam, ou queriam acreditar, que seria melhor para elas. Por acaso, em uma manhã, se reencontraram lado a lado à mesa do café. Se reconheceram. Se abraçaram. E puseram a conversa em dia. Foi assim, durante algumas semanas. Às vezes durante o café. Outras vezes no almoço ou no jantar. Era sempre um novo reencontro. A conversa era posta em dia. Afinal, havia muito o que relembrar. Três quartos de um século de amizade. Um dia, uma delas já não estava mais por lá.
Ficou essa memória que insistiu em sair de um dos meus escaninhos da mente. A mim, só me cabia contá-la. Não é mesmo?

sábado, 23 de julho de 2022

Três garrafas de uísque

E não é que no final deu tudo certo! Mas, antes de chegar ao fim, muita coisa aconteceu. Houve momentos em que Maria Eugênia chegou a cogitar que estava na hora de desistir. Porém, no mesmo instante, surgia a dúvida: desistir e fazer o quê? Face ao questionamento, a resposta de sempre. Continuar tentando. Uma hora dá certo. E não é  que no final deu certo!
O começo foi até singelo. Quase romântico. Não fosse pelo acidente. Ela pensando na vida. Ouvindo a playlist do dia sugerida pelo aplicativo. Passando roupa. Otavinho chegou por trás. A abraçou e deu um cheiro no cangote. Arrepiou tudo! Os mamilos se eriçaram. Virou com o ferro na mão. O abraçou também. O ferro quente nas costas dele. Sem camisa. Urrou e saltou para trás. Enroscada, presa a ele pelo fio do ferro de passar roupa, Maria Eugênia foi ao chão com ele. O ferro embaixo dele.  Queimando.
Queimadura de terceiro grau. Na ambulância, Maria Eugênia rezava, na esperança de que não fosse grave. Três semanas depois, Otavinho recebeu alta. No momento da alta, mo meio da manhã, ela estava no trabalho. Cozinheira em casa de madame. Ele, sozinho, chamou um amigo, Juca. Perguntou se poderia ir para a casa dele. O amigo veio buscá-lo. No caminho, Otavinho comentou sobre o acidente. Desconfiava não ter sido acidente. Juca se espantou. Deixa disso rapaz. Ela te adora!
Uma semana depois, ela o encontrou. Às lágrimas, se disse traída. Sempre fez tudo pra ele. Nunca precisou trabalhar. Lhe dava de tudo. Inclusive o uísque que, vezenquando, subtraía do bar da patroa. O patrão, desembargador de prestígio, ganhava tantas de presente. E nem bebia. O estoque só aumentava. A patroa nem se dava conta.
Otavinho voltou com ela pra casa. Um sobrado que sobrara de herança da mãe dela, costureira. Famosa na vila, por ter sido costureira da mulher do desembargador, Dona Maria Eugênia de Castro Almeida. Deu o nome da cliente à filha. Otavinho, abraçado a ela, no táxi, ia  pensando  na vizinha. Sentia falta de Dagomar
Um mês depois, a vida seguia normal. Maria Eugênia cozinhando pra madame. Otavinho tomando o uísque. No estilo cowboy. Como via nos faroestes antigos reprisados infinitamente na televisão. Uma vez por semana dando atenção a Dagomar. Naquela noite, ele exagerou no uísque. Maria Eugênia tinha trazido uma garrafa nova. White horse. Coisa fina!
Subiram pro quarto. No topo da escada, a tontura. Ela ia à frente. Otavinho se agarrou na camisola dela, que virou de imediato. Não conseguiu segurá-lo. Ele sespencou escada abaixo. No hospital, o diagnóstico: duas pernas quebradas, uma luxação no pescoço. Escapou por pouco de um traumatismo craniano.
No dia da alta, lá estava o amigo de novo. No caminho da casa de Juca, Otavinho falava. Tenho certeza que ela me empurrou. Deve estar desconfiada. O amigo continuava negando. Deixa disso rapaz. Ela te adora! Nunca vai te fazer mal.
Maria Eugênia, quando soube da alta, foi pra casa. Não o encontrando, foi direto pra casa do amigo dele. Às lágrimas, repetiu a ladainha. O chamou de ingrato. Mal agradecido. Não teve jeito. Otavinho voltou com ela. No táxi. Abraçado. Pensando em Dagomar, a vizinha. E na garrafa de White Horse.
Tempos depois, a vida corria normal. Maria Eugênia na cozinha da madame. Otavinho tomando uísque e dando assistência semanal à vizinha. Vendo os faroestes na televisão. Até que chegou o sábado fatídico.
Aniversário de casamento e dele. 10 anos de casados! Ele chegando aos 35. Dez a menos que ela. A patroa deu folga pra Maria Eugênia. O Desembargador Castro de Almeida deu uma garrafa de uísque de presente para Otavinho.
Fizeram um churrasco pra comemorar. Chamaram os amigos da vizinhança e o amigo que o tirara do hospital. A vizinha também. Veio acompanhada do corno, Ariovaldo, caixeiro viajante que ficava fora da cidade de segunda a sexta. E Dagomar tão sozinha!
Durante a semana, Maria Eugênia surrupiara três garrafas de uísque. O estoque estava alto no bar do desembargador. Um White Horse, o preferido de Otavinho, um Johnie Walker e um Old Parr. Juca não tomava uísque. Para ele, churrasco combinava com caipirinha. Vontade feita. Vezenquando, Maria Eugênia dava uma bicada na caipirinha de Juca.
Pilotando a churrasqueira, o aniversariante não tirava o olho da vizinha. O uísque cowboy era tragado de um só gole. Dose após dose. Muitas.
A festa rolava no quintal dos fundos. No declive do terreno, havia uma parte mais elevada onde ficava o tanque sob uma cobertura de telhado de zinco. A churrasqueira foi colocada ao lado. Próxima à escada de quatro degraus que dava acesso à parte de baixo do quintal.
Maria Eugênia se aproximou dele por trás. Deu cheiro no cangote. Otavinho se virou rápido. Se desequilibrou. Maria Eugênia fingiu tentar segurá-lo. O empurrou de leve. Ele caiu em cima da faca do churrasco. No momento do abraço, cortava uma linguiças. Otavinho não resistiu aos ferimentos. Morreu na entrada do hospital. Olhando para Maria Eugênia que sorria.
E não é que no final deu tudo certo!

domingo, 26 de junho de 2022

Diálogo refletido

De onde vem você?
Estranhei a pergunta. Como assim? Você sabe de onde venho. Sempre soube, nao?
Calma! Fique tranquilo. Me respondeu. Claro que, de alguma forma, minha pergunta parece não razoável. Afinal, sempre soube dos seus caminhos.
Pois é. Continuei o diálogo. Pergunta estranha a sua. Afinal, a resposta você sabe. Ou esqueceu?
Então, eu sei que a resposta é por mim sabida. Até eu estranhei a pergunta. Porém, ela saiu de mim como se eu não a soubesse. E busco aqui nas minhas memórias a resposta. Você não vai acreditar. Tenho até vergonha de expressar. Parece que a memória se esvaiu. Poderia dizer que me deu um branco. Mas, o pior é que não é branco que me deu. Acho que quem criou esta expressão nunca perdeu a memória. Não é branco. É cinza! Minhas memórias se transformaram em cinzas. Sobras de uma fogueira. Como aquelas que pulávamos nas festas juninas. Lembra?
Deixa de gozação comigo! Explodi. Nem branco, nem cinza! Você sabe de onde eu vim. Sempre soube. Mas, que história é essa? Pular fogueiras? Festas juninas? De onde eu vim nunca teve festa junina. Ou teve? De onde vim? Me deu um cinza? Quem é você?
Eu? Não sei! Esperava descobrir quando você me contasse de onde vem. Afinal, você está do outro lado do espelho. Quem é você?
Eu? 

sábado, 16 de abril de 2022

Crônicas na Holanda 27 - 27 domingos na Holanda e a esperança de um verão

Amanhã será nosso vigésimo sétimo domingo na Holanda. As malas estão quase prontas. Na segunda-feira, partiremos para férias de 12 dias entre Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte. No dia 29 de abril, um breve retorno a Utrecht para coletar o que ficará em nosso apartamento durante estes dias. Na manhã do dia seguinte, 30 de abril, o embarque de volta ao Brasil.

Hoje amanheceu ensolarado. Ao final da tarde de ontem, tanto na Maliebaan quanto no WilhelminaPark, das árvores, de repente, vi que as folhas haviam rebrotado. Inconscientes de meus temores, mal sabiam elas que receava deixar Utrecht sem vê-las folhosas e floridas. Quando aqui chegamos, estavam coloridas pelo outono. Agora, as cores são da primavera. O ciclo da natureza coincidiu com minha chegada e minha partida. Em cada estação, mesmo desfolhadas pelo inverno, essas árvores fizeram parte de meus trajetos. Carregarei na memória as lembranças das três fases que acompanhei.

Como estarão no verão? Minha jornada holandesa, não incluiu o verão. Nem ao menos parte dele. A grosso modo, aqui estive por um curto mês de outono, os três longos meses de inverno, que não foi tão rigoroso, e mais um curto mês de primavera. 

Enquanto escrevia essa última crônica na Holanda, lembrei-me de um filme argentino, Medianeras, produzido em 2011 e dirigido por Gustavo Taretto. Muito recomendado por minha amiga Simone, após assisti-lo escrevi um post em meu blog sobre empreendedorismo e pequenas empresas no longínquo setembro de 2012. Uma deliciosa coincidência entre as partes do filme e minha estada na Holanda trouxe esta lembrança. Reproduzo, parcialmente, o que escrevi então: "o filme retrata dois jovens, Mariana e Martin, que não se conhecem pessoalmente, cada um com sua vida solitária, até o encontro entre eles. Dividido em três estações - um outono curto, um inverno longo, e a primavera enfim..." Olhaí! As partes do filme coincidem com nossa estada em terras holandesas! 

Mais à frente, no mesmo texto, concluí: ""Para mim, o filme trata da esperança". Em setembro de 2012, falava da esperança no empreendedorismo. Fora inspirado por Medianeras e a lenda da caixa de Pandora, duas histórias esperançosas que me levaram a enxergar a esperança de um mundo melhor em qualquer ação empreendedora. Empreender é sempre um ato de esperança! Caso deseje, este post pode ser lido em https://3es2ps.blogspot.com/2012/09/pandora-medianeras-e-esperanca-no.html.

De certa forma, foi a esperança que me trouxe a Utrecht. E, é esperançoso que ainda me sinto. Ao empreender esta jornada de seis meses de pós-doutoramento trazia a esperança de, ao tentar ser melhor no que faço, contribuir de alguma forma para um mundo melhor. Encerro esta jornada com a esperança de ter sido bem sucedido. Junta-se a esta a vontade de rever Utrecht em algum verão no futuro. Ao mesmo tempo em que é esperança, é também uma promessa. Afinal, as árvores da Maliebaan e do WilhelminaPark ainda não exibiram sua beleza para mim em um verão holandês. Acho que elas merecem esta oportunidade. Assim como eu!

domingo, 10 de abril de 2022

Crônicas na Holanda 26 - Meu tributo a Jan, o sorveteiro da Prins Hendriklaan

Desde que chegamos a Utrecht, um pequeno salão fechado e empoeirado na Prins Hendriklaan chamou minha atenção. Me parecia algum pequeno negócio que, supunha eu, talvez devido à pandemia, tinha sucumbido aos lockdowns e cerrado.as portas. Nunca prestei atenção ao que estava escrito nas vitrines. Neste cinco meses de moradia em Utrecht, passei incontáveis vezes por ali. Fica na mesma rua, onde moramos, ao lado do ParkCafé, quase na esquina com o Whilelmina Park. Foi no ParkCafé que Erik e esposa nos ofereceram um café e uma boa conversa em uma manhã fria de inverno. Quando nos locomovemos, a pé, até o centro de Utrecht é o caminho mais curto. Vez ou outra, a pequena loja, empoeirada chamava minha atenção. Todavia, não imaginava que tipo de negócio teria sido.
Certo dia, já na primavera, temperatura ainda lembrando o inverno oficialmente encerrado, fiz novamente o mesmo trajeto e tive uma surpresa. A loja estava aberta. É uma sorveteria! Quem me conhece bem, sabe que sorvete é uma das minhas fraquezas gastronômicas. Desde moleque, dos tempos da sorveteria Sávio em Londrina, não resisto a uma ou duas bolas de sorvete. Em casquinha, em copo, tanto faz. É claro que entrei e vi a geladeira cheia de opções de sorvete, todos nomeados obviamente na língua holandesa, Para minha sorte, alguns nomes são parecidos com os nossos, por exemplo, pistache e chocolade. Dois dos meus favoritos! Minha primeira compra no IJssalon Vorst (Sorveteria Vorst) não me decepcionou, e virei freguês! Todo dia que passo por ali, faço a minha parada e experimento um novo sabor. Hoje, com o sol dando as caras, passei pela IJssalon Vorst e experimentei uma bola do sabor de expresso (café), junto com a tradicional bola de pistache.
Quase sempre sou atendido pelo próprio sorveteiro. Alguns dias atrás, puxei conversa com ele. Queria saber sobre quem faz o sorvete, porque a sorveteria estava fechada, como é o ritmo de trabalho dele. Ele me contou, muito orgulhoso, que o sorvete é feito por ele mesmo e com ingredientes orgânicos. Feito à mão artesanalmente como estampa a marca no seu copinho (handgemaakt ijs). Só abre a sorveteria durante oito meses por ano, por causa das baixas temperaturas, principalmente durante o inverno. Chegamos em Utrecht um pouco antes do inverno, daí a razão de ter visto a sorveteria fechada. 
Quando perguntei o que fazia nos meses em que a sorveteria está fechada, ele me respondeu: Nada! Continuando a conversa, me explicou que trabalha de segunda a domingo durante oito meses, umas doze horas por dia. E, me disse: se você fizer o cálculo, vai ver que trabalho mais do que alguém que tenha uma semana de trabalho de oito horas por dia ao longo de um ano. Não fiz o cálculo, mas minha intuição diz que ele deve estar certo. Trabalha bastante! Encerrando a conversa, comentei que ele deve ser muito disciplinado com as finanças, pois tem que fazer uma reserva para os meses que não trabalha. Ele sorriu e acenou positivamente com a cabeça. Me despedi falando meu nome e dizendo que sou brasileiro. Ele me disse o dele e se despediu com um "see you tomorrow" (vejo você amanhã), ao que respondi "for sure" (com certeza). E desde, então, me tornei um freguês costumeiro.
Semana passada, o tempo ficou instável e muito frio novamente. Fiquei alguns dias sem o meu sorvete diário. No começo dessa semana, quando passei pela sorveteria, e a vi aberta, entrei. Quase amigo já do sorveteiro, ele me contou que ficara uns dias com a loja fechada. devido ao frio e chuva. Tinha reaberto naquele dia.
Jan, este é seu nome, como bom comerciante é sempre muito atencioso e simpático. Lembro-me de que, escrevendo sobre a vida de comerciante de meus pais em um post neste blog, em algum momento falei da forma como ambos eram capazes de dar atenção aos fregueses do supermercado Gimenez, de tal forma que muitos se tornaram amigos e amigas de minha mãe ou de meu pai.
A vida em uma pequena empresa não é só feita do mundo dos negócios. Na última crônica falei da vida substantiva. Pois é, ela faz parte também da vida das pequenas empresas. Não são apenas um instrumento de fazer dinheiro. Além do dinheiro, de garantir a sobrevivência da família, trazem um significado de auto realização, sem a qual a vida seria muito sem graça.
Creio que é essa uma das razões que me levam a ser cliente de pequenas empresas. Outra aqui no bairro é a Olifje, pequena mercearia. Fica também perto de casa, na Jan van Scorelstraat, a cerca de 600 metros. Ao menos uma vez por semana estou lá. Comprando pão, suco de maçã, frutas, legumes e verduras. Além das irresitíveis iguarias da cozinha árabe, como o humus, charutinhos de folha de uva  e as deliciosas e doces baklavas.
Em uma das vezes que lá estive, puxei conversa com a mulher que ne atendia, que julguei ser a proprietária. Estava certo. Ela me contou que junto com dois irmãos criaram e mantém o pequeno comércio. Ficava em outro lugar do bairro quando iniciaram, mas estão na Jan van Scorelstraat há anos. De novo, como bons comerciantes, sempre atenciosos e atentos. Um domingo, lá fui pela manhã e tentei entrar. A porta estava fechada, um dos irmãos abriu e me disse que ainda não estavam abertos. No domingo começam a atendar ao meio dia. Nesse momento, vi a placa com a informação dos dias e horários de trabalho. Me desculpei, mas ele sorriu e disse que não havia do que se desculpar. E, obviamente, me perguntou: vai voltar mais tarde? De novo, minha resposta foi "for sure".
Quer outro exemplo? Um dia desses, seis horas da tarde, passando em frente à Olifje, um dos irmãos saía, após encerrar o dia de trabalho, e entrou em seu carro. Ao passar por ele, acenou e sorriu para mim. Ah, esses comerciantes! Sabem o que fazem.
Então, é esta Utrecht dos pequenos negócios que guardarei também nas minhas lembranças dessa temporada na Holanda. Além da vida universitária, da beleza do campus, das caminhadas em torno dos canais, levarei nas minhas memórias a doçura das baklavas vendidas na Olifje e a doce cremosidade dos sorvetes da  IJssalon Vorst.
Neste meu tributo a Jan, o sorveteiro de Utrecht, mostro na fotografia a marca bem desenhada de seu sorvete junto a uma fotografia recente do Oudegracht e a previsão do tempo que começará a esquentar na próxima terça-feira. Pelo jeito teremos, na última semana por aqui, muito sol para aquecer o coração carregado de certa melancolia por ter que deixar essa cidade que nos encantou. Quem sabe um dia, a gente volta por aqui! Mas, terá que ser no verão, para tomar um sorvete na IJssalon Vorst.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Crônicas na Holanda 25 - Das filhas e da vida substantiva

Estamos exatamente na metade da penúltima semana de nossa estadia em Utrecht. Pouco mais de meio dia da quarta-feira, seis de abril de 2022. Envolvido com minhas tarefas de conclusão desse período de pós-doutoramento na Utrecht University, na noite de ontem me dei conta de que não havia escrito a crônica semanal. Outros escritos me afastaram dessa tarefa auto imposta: registrar semanalmente impressões e sentimentos de seis meses na Holanda. Falar da vida substantiva, da vida que importa!
Na semana anterior, Paloma e Murilo nos visitaram. Chegaram junto com a virada no clima. De um começo de primavera ensolarada e quente (para os padrões holandeses), com temperatura chegando aos 18 graus centígrados, para dias de neve, tanto em Utrecht quanto em Amsterdam, com temperaturas próximo de zero. Porém, a alegria de receber filha e genro e de poder passear com eles por aqui, fez com que o frio pouco importasse. Foram quatro dias de passeios pelo Keukenhof (famoso jardim holandês, em especial devido às tulipas, que reabriu após dois anos fechado), Zaandam e seu parque de moinhos de vento, Utrecht e Amsterdam. Ver o sorriso da filha, sentir seu carinho, ouvir seus planos de vida, e rirmos juntos são momentos da vida que importa.
Desde sábado, porém, retornei à rotina holandesa: leitura, reflexão e escrita. Tem sido um período produtivo. A escrita acadêmica flui e me sinto bem. Escrevo, ao mesmo tempo, quatro textos em que registro informações coletadas e analisadas, reflexões e aprendizados. Uma produção que surge de um motivação intrínseca, não forçada por expectativas ou pressões da vida universitária. É claro que os textos comporão meu relatório para as instituições que me apoiaram nesta temporada de estudos em Utrecht. No entanto, o valor desses textos é muito mais substantivo do que instrumental. 
Nessa altura da vida, já não tenho que provar meu valor profissional. Escrevo sobre o que gosto e como gosto. De vez em quando, "para cumprir tabela", usando essa deliciosa expressão brasileira, coloco meus escritos nos padrões da academia. E, lá vão eles seguir a trajetória esperada: avaliação por pares, críticas, sugestões, ajustes, rejeições e, eventualmente, publicação. Será a trajetória desses meus textos "holandeses". Mas, já me propiciaram o prazer da escrita. Prazer que também é parte da vida que importa.
Há outros textos seguindo pelo mesmo caminho. Tomaram forma um pouco antes da vinda para Utrecht. Serão publicados? Talvez, sim! Talvez, não! Assim, como os que escrevo agora. Contudo, seu valor para mim é muito mais substantivo do que instrumental. Refletem a satisfação que senti ao juntar ideias, às vezes sozinho, às vezes com outros e outras colegas, e apresentar um conhecimento novo e potencialmente útil. Não são apenas instrumentos para criar linhas no Lattes! Eventualmente, estarão no Lattes, mas o que importa é o julgamento do leitor e da leitora. O restante são apenas pontos para justificar a burocracia acadêmica. Pontos que não têm nada a ver com a vida que importa.
A dúvida sobre a conveniência de vir para cá em tempos pandêmicos, que quase me fez desistir da ideia, mostrou-se infundada. Apesar das dificuldades com a retomada dos lockdowns, entre novembro e meados de fevereiro, do pouco convívio com professores e estudantes da Utrecht University, enfim, me parece que foi uma decisão acertada. Voltarei para Curitiba e para minhas atividades junto à UFPR um pouco melhor. Aprendi muito sobre meu tema de estudo. Conheci pessoas que me impactaram substantivamente, tanto na universidade quanto no mundo da poesia. Vi lugares e vivi momentos que estarão sempre em minha memória, ajudada pela imensa quantidade de fotografias que registrei em meu celular. Passeei com Paloma, a primeira filha.
Fernanda, a caçula, não pode vir. Mas, em breve, nos reencontraremos em Curitiba. Para ver seu sorriso, sentir seu carinho, ouvir seus planos de vida, enxugar alguma lágrima, e rirmos juntos. Afinal,  assim é a vida que importa.
 

segunda-feira, 28 de março de 2022

Crônicas na Holanda 24 - De volta ao mundo do cinema

Depois de pouco mais de dois anos, voltei a uma sala de cinema. Desde 13 de março de 2020, uma sexta-feira, passei a seguir as regras de isolamento e distanciamento social que a pandemia de Covid nos obrigou. Primeiro no Brasil e nos últimos cinco meses e meio na Holanda, com maior ou menor rigor, evitei como pude as atividades em espaços fechados e aglomerações. Mesmo com todas as vacinas, enquanto houve restrições, eu as segui. Desde o dia 23, não há mais nenhuma restrição em vigor nos Países Baixos.
Enfim, no último sábado, 26 de março fomos ao Springhaver Theater em Utrecht. Um espaço cultural com duas pequenas salas cinematográficas junto a um restaurante. O filme foi Madres Paralelas de Almodóvar. Seis ou sete pessoas na sala 1 que acomoda tranquilamente uma centena de pessoas. O baixo público, talvez, fosse devido ao horário da sessão: 11:45 da manhã.
Assistir ao brilhante filme de Almodóvar em uma sala tão pequena me causou um triplo prazer. Quase um orgasmo multiplo. Primeiro, o retorno ao "escurinho do cinema" depois de tanto tempo. É claro que nesses dois anos, continuei assistindo filmes. Sempre em algum dos vários canais de streaming que estão por aí no mundo virtual. Mas, não é possível comparar as duas experiências. Filme é uma invenção humana que foi feita para exibição em salas de cinema. Nesse ponto sou ortodoxamente conservador.
O segundo prazer foi sentido com a fruição do filme em si. Almodóvar sendo Almodóvar como sempre. E a cada filme cada vez melhor. Uma história contemporânea conectada com uma trágica parte da história espanhola do século passado. Uma história narrada quase que linearmente, com atuações perfeitas, e as imagens e cores me carregaram para o mundo das emoções. O cinema faz isso comigo. Me permite ser um voyeur de um mundo fictício e sentir emoções nada fictícias. De cada filme assistido, saio transformado. A combinação de sons, cores e imagens em movimento de um filme, quando bem feita, mexe comigo.
E o terceiro prazer veio da memória. Ao me ver na pequena sala do Springhaver Theater, lembrei-me das várias pequenas salas cinematográficas espalhadas pelo mundo em que assisti filmes. Já tive o privilégio de estar em algumas partes desse mundo: São Paulo, Curitiba, Manchester, Lancaster, Londres, Montevideu, Rio de Janeiro, Austin, e agora Utrecht. Em cada cidade, ao menos uma vez, um filme em uma sala cinematográfica pequena. Essa paixão pelo cinema começou em Londrina na minha adolescência.
Além das salas em cada cidade, lembrei-me de um sonho antigo: ser o dono de uma sala dessas. Comentei com minha companheira que foi ao cinema comigo nesse dia. Assim, como em muitas outras oportunidades. Na verdade, nossa relação começou com um reencontro em que a convidei para um filme. O filme não foi grande coisa! Mas, esse é o risco que corre alguém que se relaciona com um cinéfilo. Nem sempre o filme é o que promete ser. Porém, imagino que, na média, os filmes que assistimos juntos foram bons. E, afinal, aquele filme ruim marcou o começo de uma história muito boa que já se apróxima dos quatro anos.
Volto ao meu sonho. Em meados dos anos 90, após meu retorno a Londrina, tendo terminado meu doutorado em Manchester, pensei no plano de ser dono de uma sala de cinema. Naqueles anos, no curso de Administração da UEL, uma opção de trabalho final do curso era fazer um plano de negócio de uma nova empresa. Eu fui procurado por um aluno que ficara entusiasmado com essa possibilidade, que me disse:
_ Fernando eu quero fazer esse trabalho, mas não tenho ideia de qual negócio planejar.
Minha resposta foi:
_ Legal. Eu tenho uma ideia de negócio que gostaria de avaliar. Se você topar, a gente junta o útil ao agradável.
Encurtando a história, ele topou e fez um excelente trabalho de planejamento de um pequeno centro cultural com uma sala de cinema. Porém, minha carreira acadêmica me levou por outros caminhos. E, quase 30 anos depois, essa lembrança quase que nostálgica me veio à mente.
Ao comentar com minha companheira sobre meu desejo, enquanto aguardávamos o início do filme, ela respondeu, bem ao jeito dela:
_ Estou junto. Vamos nessa.
Quem sabe, daqui a algum tempo, vocês estarão vendo um bom filme em uma pequena e confortável sala de cinema em algum canto de uma cidade praiana. Planos para aposentadoria?

domingo, 20 de março de 2022

Crônicas na Holanda 23 - Sobre a felicidade

Aos poucos a vida parece retornar à normalidade. A partir da próxima semana, todas as últimas restrições referentes à pandemia serão postas de lado. Em especial, máscaras já não serão mais obrigatórias nos transportes públicos. E o trabalho remoto em metade do horário deixará de ser recomendado, passando a ser uma questão a ser definida entre empregados e empregadores.
Um efeito colateral positivo dessa pandemia é que aprendemos sobre os benefícios da flexibilidade nos horários de trabalho presencial. Nem sempre precisamos estar na empresa para sermos produtivos. Exceto, é claro, nas profissões em que o fruto do trabalho depende do acesso a equipamentos e materiais que só estão disponíveis no ambiente de trabalho.
De qualquer forma, precisamos do convívio periódico com nossos colegas de trabalho. Dar um bom dia, perguntar como vão as coisas, contar algo recente, ouvir histórias e, ao fim da manhã, da tarde ou do dia, dizer um até amanhã. Senti falta dessas interações corriqueiras da vida no trabalho. Dessa forma, nas últimas semanas passei a frequentar mais minha sala de estudos no Adam Smith Hall.
Na última sexta-feira, pela manhã, fiquei por quatro horas lá. Lendo, refletindo, escrevendo. É esse meu trabalho! Sou um privilegiado por ser pago para fazer o que gosto. Tem, também, as atividades de aprendizagem com alunas e alunos. Porém, aqui em Utrecht, não estou envolvido com elas. A partir de maio, retornando à UFPR, voltarei a estas atividades. Sinto falta!
Mas, enveredei por um tema que não pretendia tratar nesta crônica. Volto ao planejado. Pois então, contava sobre a última manhã de sexta-feira. Por volta do meio-dia, desliguei o computador, peguei minhas coisas, vesti a jaqueta e tranquei a sala. Após descer os quatro lances de escada, na porta da saída, encontrei um professor que ainda não conhecia. Me cumprimentou e perguntou algo em holandês. Pedi desculpas por não falar a língua dele e passamos a conversar em inglês. Ele se apresentou como Lucas, mas disse que o nome em holandês é Loek.
Ele disse que havia me visto um pouco antes e perguntou sobre mim e o que fazia por ali. Após contar-lhe sobre meu pós-doutorado e ser brasileiro, me deu as boas vindas e falou de um brasileiro que admira muito: Eduardo Suplicy. Perguntou se eu o conhecia e disse saber do papel importante que Suplicy exerceu e continua exercendo no que diz respeito à garantia de um renda mínima  a todo cidadão.
Enquanto caminhávamos na mesma direção, trocamos impressões sobre o tema e a importância da questão. Foi uma conversa rápida, mas muito agradável. Eu me dirigia ao Dining Hall, onde ficam as caixas postais. Ia verificar se havia alguma correspondência para mim. Aguardo a chegada de um livro que comprei dias atrás pela Internet. Ao chegarmos ao meu destino, nos atélogamos (revisor não corrija, por favor, é um jeito que criei para substituir "nos despedimos"). Como era uma manhã de sexta-feira, o "até logo" foi acompanhado de um "bom final de semana". Um encontro fortuito com um cara simpático. Se ficasse no trabalho remoto, não teria conhecido Loek/Lucas.
Mas, o que isso tudo tem a ver com felicidade? Afinal, o título da crônica é "sobre felicidade"! Então, quando cheguei em casa, sem o livro pois o correio ainda não entregou, fui ver notícias sobre os Países Baixos em um site que acompanho diariamente. A primeira manchete me chamou a atenção: Netherlands again ranks fifth in UN world happiness report (Países Baixo novamente em quinto lugar no Relatório Mundial sobre Felicidade das Nações Unidas).
Curioso, busquei o relatório para ter mais informações. Descobri que Finlândia, Dinamarca, Islândia e Suíça precedem os Países Baixos no ranking. E mais, o Brasil esta em 38o. lugar entre 146 países. O indicador de felicidade é baseado em respostas que uma amostra das pessoas de cada país dá para questões sobre sentimentos a respeito de sua vida e a experiência de emoções positivas e negativas.
É claro que a felicidade humana é muito complexa e um indicador deste tipo tem muitas limitações. Apesar disso, no entanto, a partir de alguns indicadores como esse e outros, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) podemos fazer comparações e pensar em como reduzir as desigualdades em nosso planeta.
É nisto que vejo a ligação entre meu encontro fortuito com Loek/Lucas e a notícia sobre o Índice mundial de felicidade da ONU. Uma das formas de diminuir a desigualdade entre nós humanos reside na garantia de uma renda básica a cada habitante de nosso planeta. E assim, nesta crônica na Holanda, rendo aqui minhas homenagens a Eduardo Suplicy, incansável defensor desta política no Brasil. Afinal, dinheiro não traz felicidade, mas ajuda, não é?

domingo, 13 de março de 2022

Crônicas na Holanda 22: Entre sons, letras e artes

Entre sábado e domingo, os caminhos holandeses me levaram a uma viagem pelo mundo das letras, da música e das artes plásticas.
Na vida, carrego uma frustração. Nada que me atormente profundamente, mas que gostaria de ter feito. Não há a quem culpar. Nem a quem reclamar. É simplesmente algo que não aconteceu. E que, provavelmente, poucas chances terá de ocorrer na vida futura que ainda me está destinada.
Nunca desenvolvi as artes musicais e plásticas. Não toco nenhum instrumento, não sei manusear martelo e cinzel, tampouco pincel, e não ouso cantar. Mas, admiro os que são capazes de se comunicar com a humanidade nestas artes.
Já no que diz respeito às letras, primeiro por dever de ofício e, mais tarde, por uma irresistível necessidade de me expressar, me vejo escritor. Dos textos acadêmicos, enveredei para a escrita poética e de breves narrativas, na forma de contos e crônicas. Como está que você lê agora.
Esta necessidade ficou latente em minha vida durante muitos anos. Na verdade, por décadas. Me lembro de um episódio de escrita na adolescência. Certa manhã, a professora de português solicitou uma tarefa de redação com o tema "um encontro". Naquele longínquo dia, me inspirei pelos múltiplos sentidos da palavra "encontro". Ao invés de criar uma história de um encontro premeditado ou combinado entre pessoas, narrei sobre um encontro acidental entre dois personagens que, ao virarem em uma esquina de um prédio, trombaram e se encontraram face a face. Espantados, caíram ao chão. É o que lembro da redação. É a memória mais distante que tenho de uma escrita criativa própria.
Volto, porém, aos dias atuais na Holanda. No sábado à tarde, como acontece sempre, houve a apresentação de um concerto com coral e órgão da Domkerk, principal igreja protestante de Utrecht. Além do maravilhoso som do órgão da igreja, pude desfrutar da música do coral. 
É impressionante como a voz bem treinada se transforma em um instrumento musical. As mulheres e homens do coral me emocionaram. Mesmo não entendendo as palavras que cantavam, eu tinha a impressão de ouvir um conjunto de instrumentos musicais distintos com seus tons diversos. Uma melodia que me deixou, ateu convicto, com a alma mais leve.
Hoje, domingo, visitando o Museu Vanabb em Eindhoven conheci a obra de Gülsün Karamustafa. Artista visual e cineasta nascida na Turquia que usa sua arte como uma forma de luta política nos sensibilizando para as desigualdades, inclusive as de gênero, tão presentes em nossa sociedade.
 Na fotografia que ilustra esta crônica, reproduzo a fotografia que fiz de duas obras suas que estão em exposição no museu.
Para terminar esta crônica, volto ao início da tarde de sábado. Em Utrecht, há uma ação poética de um grupo de mulheres e homens que se chama "De Letters van Utrecht", "As Letras de Utrecht". É um poema coletivo que cresce uma letra por semana por meio do registro de uma letra em pedra colocada em uma rua de Utrecht: a Oudegracht, na esquina da Smeebrug no número 279. O poema cresce na direção do Ledig Erf. 
Começou em 2 de junho de 2012 , com a colocação da pedra de número 649, junto com as 648 anteriores, que haviam sido colocadas alguns dias antes, registrando o período referente aos sábados de 1 de janeiro de 2000 a 26 de maio de 2012. Quase 22 anos de poesia continua! 
É um poema sem fim escrito para o futuro. As letras podem ser patrocinadas por qualquer pessoa que contribua com um valor em dinheiro. Neste sábado, às 13 horas, lá estava eu acompanhando a colocação de mais uma pedra. Uma doação de duas irmãs que homenageavam outra irmã falecida há cinco anos e que agora tem seu nome registrado sob a pedra com a letra "A". 
Se você buscar na Internet, encontrará o site com informações do projeto que já alcançou pouco mais de 100 metros. Fico imaginando quando o projeto estiver com um século de vida! Onde terá chegado nas ruas de Utrecht?
Antes disso, ainda planejo retornar à cidade para caminhar de novo pelas letras de Utrecht. A cada ano são 52 novas letras. Espero que meu retorno a esta cidade inspiradora não demore muito.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Crônicas na Holanda 21 - Uma magpie, três gravetos e quatro pedrinhas holandesas

E não é que hoje uma magpie (pega-rabuda) surgiu para entrar na crônica na Holanda! É a terceira vez que este tipo de ave é personagem nas minhas crônicas. Logo na primeira, houve um par delas. Na crônica de número 9, algumas fizeram uma rápida figuração, junto ao gato, o protagonista, um bando de corvos e um par de gaivotas. Na crônica de hoje, porém, esta magpie é a protagonista em uma atuação solo da qual eu fui o espectador silencioso atrás da janela de meu quarto.

O sol deste final de inverno brilhava por volta das dez horas. Enquanto vestia meu moletom para fazer uma caminhada e depois passar na Olifje (uma pequena mercearia na vizinhança), eu a vi no solo. Aos pequenos saltos, tentava manter em seu bico, três gravetos. Caídos de uma das árvores que, ainda totalmente desfolhada devido ao inverno, não impedia que os raios do sol aquecessem o quarto. Fiquei observando a magpie e sua labuta. Teimosa, por várias vezes, ao tentar pegar um terceiro graveto, um dos outros dois já em seu bico lhe escapava. Mas, era uma magpie obstinada. Após várias tentativas, o sucesso: três gravetos no bico! E, assim, carregada, partiu em seu voo, encerrando sua performance no solo. 

Provavelmente, deve ter se dirigido para uma árvore onde está construindo um ninho. Mais um anúncio da primavera que se aproxima. Em breve, filhotes de magpie estarão se aventurando nos ares de Utrecht.   A primavera vai dando seus sinais de chegada. Foi assim com as flores rasteiras que agora estão em todos os gramados da cidade. Tudo começou com as pequenas e brancas "flocos de neve" algumas semanas atrás. Nos últimos dias, brotaram outras nas mais variadas cores. Mas, as árvores continuam desfolhadas. Exceto aquelas sempre verdes que se mantiveram ao longo do inverno.

Com a aproximação da primavera, os dias se alongam e as noites se encurtam. Dias de sol, mas a temperatura ainda segue baixa. Neste momento da escrita de hoje, meio da tarde de uma quarta-feira, chegamos aos 14 graus centígrados. No começo da manhã, estava em torno de quatro. O que deverá se repetir à noite.

Nesse interminável ciclo da natureza, vou vivendo o meu ciclo também. Em pouco mais de seis semanas, concluirei minhas atividades de pós-doutorado. Uma carreira que começou, no começo dos anos 80 com o mestrado, passou pelo doutorado em meados dos anos 90 e chega a seu ápice no começo dos anos 20 do século 21: um pós-doutorado. Que, veja bem, não é título! Não existe pós-doutor! Mas, é um momento importante em meus 40 anos de carreira acadêmica. Na verdade, um pouco mais. Mas, a precisão pouco importa aqui.

Começo a planejar o retorno. A cada dia trabalho em meu relatório. Conto sobre o que fiz e sobre o que aprendi. Além do relatório, e do que estudei, levarei na memória as lembranças dos lugares e pessoas que por aqui encontrei. Certamente haverá alguns itens materiais adquiridos na Holanda, ou em vias de o serem, em minha bagagem. As famosas lembrancinhas para aqueles de quem sinto saudades: filhas, amigas e amigos, parentes e aderentes. Mas, haverá também as que serão para mim mesmo.

Outro dia, comecei a escolha do que levar. Levarei comigo, além de poucos itens tradicionais, até mesmo destinados aos turistas que por aqui passam, quatro pedrinhas que peguei no pátio central do campus. Me lembraram de outras que peguei em uma viagem ao nordeste brasileiro anos atrás. Elas brilhavam ao sol. Tantos as brasileiras quanto as holandesas. Apesar de não ser um brilho próprio, pois afastadas do sol o perdem, elas serão lembranças valiosas. As holandesas têm cor e tamanhos distintos. São pequenas, mas sempre que as observar no futuro, me servirão como uma metáfora da vida na academia.  A metáfora do brilho que não vem de mim. Se algo fiz e ainda faço na academia com algum eventual brilho, sempre é bom lembrar, o brilho vem daqueles que me iluminaram. No convívio pessoal ou por meio dos textos que pude ler. Assim, como o sol fez as pedrinhas holandesas que irão em minha bagagem refletir a luz do sol, apenas refleti a luz que me passaram.

Agora que já tenho as pedrinhas, parto para as outras lembranças. Não serão muitas, mas pode ser que alguma chega até você. Quem sabe?

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Crônicas na Holanda 20 - Sobre o que escrever?

Sobre o que escrever? Me pergunto. Quatro meses e meio na Holanda. Paises Baixos! Alguém, certamente, poderia ou quereria me corrigir. Mas, minha escolha sobre como nominar este país, você encontrará na primeira ou segunda crônica desta série. Ou será na terceira?
A memória, ou melhor, a falta dela me impede a certeza. E a preguiça me força a deixar com você, leitora ou leitor, a possibilidade da descoberta. Vai lá, por favor! Assim, você resolve a questão e, melhor ainda, contribui com as estatísticas do meu blog. Vaidade do autor!. Eu sei. Mas, como humano, tenho minhas fraquezas. Quem não  as tem?
Por aqui, como no mundo, as notícias são diversas. Boas e más. Entre as últimas, está a estupidez da guerra. Mais uma! Entre as mais de duas dezenas de conflitos armados que se espalham pelo nosso planeta. Com ela, é inevitável sentir alguma apreensão. Diferente das outras, esta acontece mais próxima de nós. Além da solidariedade com a dor do outro povo, há a esperança de que não se espalhe e acabe logo.
Entre as boas, parece que a pandemia vai suavizando. Desde sexta-feira, não precisamos mais mostrar comprovante de vacinação em lugar algum. Máscaras deixaram de ser obrigatórias, exceto em estações e meios de transporte público. Internações e mortes se reduzem, apesar da taxa de infecção ampliada. Parece que a vacinação trouxe frutos positivos. Nesse campo, uma dúvida: em duas semanas poderei tomar a terceira dose da vacina aqui; devo fazê-lo? Será a quinta dose, visto que tomei duas no Brasil.
No campo dos estudos, vai tudo bem. Obrigado! Poderia ser melhor? Sim. Poderia ser pior? Também. Ou seja, faço o que posso. E, as vezes, me sinto realizado. Como hoje, quando fui capaz de refletir e modelar de forma abstrata o fenômeno que estudo. Sei que a sensação de sentir-se realizado é passageira. Logo vem o desejo de mais. Mas, hoje foi o dia das pecas juntarem-se como um quebra-cabeças resolvido. Prefiro, porém, a imagem de um caleidoscópio. Pode ser que as partes se misturem novamente. E, um outro olhar me ofereça outra imagem. Assim, o conhecimento vai surgindo. Também provisório. Incompleto. A cada momento, com o que outros e outras me dizem, novas imagens se formam.
Enfim, para quem não sabia o que escrever, a crônica surgiu leve. E na leveza desta escrita, trago a esperança que os artefatos humanos sirvam apenas para nos harmonizar com a natureza. Como esta fotografia que fiz ontem. Que juntos, artefatos e natureza nos afastem da guerra e nos aproximem do amor. 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A LENDA DO MORTO-VIVO DO CEMITÉRIO SÃO PEDRO

Esta história me foi contada por meu pai. Várias vezes! Eu adorava ouvi-la. Para alguns é uma lenda urbana. Meu pai dizia que tinha acontecido mesmo. Foi assim:

Era nove de dezembro de 1955. Londrina, no dia seguinte, completaria o primeiro ano de sua terceira década.  Aniversário de 21 anos. Se fosse humana, chegava à maioridade. Assim como alguns e algumas que nasceram naquele longínquo ano de 1934, nos primórdios da história londrinense. A festa de aniversário da cidade seria inesquecível. E a história que Gervásio presenciara na véspera se tornaria uma lenda urbana londrinense.

Além dos que nasceram na cidade, aumentando a população, somando-se aos numerosos imigrantes de várias partes do Brasil e de outros países, havia também os que morriam. A inevitável dinâmica populacional. De qualquer forma, o número de nascidos e imigrantes era maior do que o de mortos e a população crescia. Na região central da cidade, o cemitério São Pedro acolhia os que faziam a passagem para o além. Independente dos credos, ou da falta de um, era lá o destino dos que se subtraíam à população local.

Gervásio era londrinense, mas nascera quatro anos antes da emancipação de Londrina como município, em 1930. Estava no frescor dos seus 25 anos. Na madrugada da véspera do aniversário da cidade, por volta das cinco horas, Gervásio caminhava pela rua Alagoas. Na escuridão da noite nublada, as lâmpadas pequenas e amarelas penduradas nos postes de madeira, iluminavam fracamente as calçadas e as ruas nas proximidades do Cemitério São Pedro. À distância, Gervásio enxergou a carroça do padeiro. Estava parada um pouco além do portão central do cemitério, que ficava na esquina com a rua São Paulo. Gervásio, mesmo à distância e com a baixa luminosidade, viu Osvaldo saindo do portão de uma das casas. Reconheceu o amigo padeiro. Sabia que Osvaldo fazia a entrega de pães e leite na região central. Gervásio agradeceu a providência divina de permitir o encontro. Estava com fome, pois saíra da casa de Terezinha antes dela acordar. Não fez café para não a incomodar. Fez o sinal da cruz em agradecimento e em respeito à aproximação do cemitério e pôs-se a caminhar em direção ao padeiro.

Gervásio, como todo humano, apesar da crença religiosa, não deixava de cometer seus pecados. Depois, nas conversas com seu divino protetor, pedia o perdão. Naquela madrugada, ele saíra mais cedo da casa de Terezinha, do que nos dias anteriores. Era uma sexta-feira, dia que saía mais cedo. Professora do então ensino primário, Terezinha era casada com Dorival, representante das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo no norte do Paraná. Dorival era o que se chamava naquela época de "viajante". De segunda a quinta, visitava os varejistas da região de Apucarana e Maringá, tirando os pedidos que seriam enviados ao escritório central da Matarazzo em São Paulo.

Voltava para casa nas manhãs de sexta e fazia a praça local aos sábados. Começava com a visita à Casa Gimenez de Christovam e Kilda, casados há apenas dois anos. Dorival tirava o pedido semanal do Gimenez. Era sempre um pedido de bom tamanho. A Casa Gimenez já tinha um bom movimento naquela época e vendia muitos dos produtos da Matarazzo, em especial os óleos e sabões. Muito próximo à residência de Terezinha e Dorival, a Casa Gimenez ficava na esquina da Paranaguá com a Goiás. Christovam e Dorival eram amigos e conterrâneos de Sertãozinho, de onde imigraram para Londrina no final dos anos 40. O amigo, de vez em quando, ajudava Dorival a cumprir a meta de vendas, comprando um pouco mais do que o usual, quando os pedidos na região de Apucarana e Maringá tinham sido fracos. Os produtos Matarazzo eram venda certa. Gimenez, como a maioria dos fregueses e viajantes o chamavam, sabia do rolo entre Terezinha e Gervásio, mas não dizia nada ao corno. Também era amigo de Gervásio. Cidade pequena! Não ia se intrometer no triângulo amoroso. Só observava e se divertia com as histórias que Gervásio contava nas tardes de sábado. Gervásio se tornara freguês da Casa Gimenez desde que começara a visitar Terezinha.

Enquanto Dorival estava fora visitando os varejistas de Apucarana e Maringá, Gervásio visitava Terezinha. Nesses dias esquecia o mandamento de não cobiçar a mulher do próximo. Lá no final da rua Alagoas, em uma casa de madeira, na esquina da Antonina, sem vizinhos ao lado e à frente, o ex-aluno trocava juras de amor com a ex-professora e, também trocava o “óleo”. Como contava para o Gimenez, entrava com o bruto, fazia o balanço e deixava o líquido. Gervásio era técnico em contabilidade e trabalhava no escritório que atendia o Gimenez. Entre os risos, Christovam só recomendava:

_ Cria juízo Gervásio! Um dia essa história pode feder.

Naquela madrugada fresca, Gervásio apressou o passo para se aproximar do amigo padeiro. Mas, assim que começou a andar mais rápido, viu o amigo subir na carroça, chicotear o cavalo e sair em disparada. A porta do compartimento da carroça ficou aberta e muitos pães caíram na rua. Espantado, Gervásio correu, mas não conseguiu alcançar o padeiro. Ao se aproximar, do portão central do cemitério, viu Valdomiro do lado de dentro. Valdomiro era um dos poucos mendigos da Londrina daquela época. Vivia pelas ruas e dormia em algum canto qualquer no centro da cidade.

Gervásio perguntou a Valdomiro o que acontecera. Valdomiro disse que havia ficado preso no cemitério, no dia anterior, quando bêbado, ao final da tarde, entrou no cemitério e dormiu em um dos cantos, encostado em uma árvore. Acordou com o barulho do padeiro. Subiu em um caixote de madeira e, com a cabeça acima do muro, se dirigiu ao padeiro:

_ Bom dia. Me dá um pão.

E o padeiro fugiu em disparada. Gervásio e Valdomiro caíram na gargalhada. Gervásio pegou um pão doce para ele. O pão doce que Dorival entregava nas casas era uma delícia! Me lembro bem dele, pois quando criança, anos depois, eu adorava comê-lo, lambuzando as mãos com o açúcar cristal que o cobria. Esse pão doce era feito pela mesma padaria que fornecia pães para venda na casa Gimenez. Gervásio deu o resto dos pães para Valdomiro que ainda teria que esperar o coveiro abrir o portão mais tarde.

Naquele sábado, ao final da tarde, Gervásio foi na Casa Gimenez comprar alguma coisa e contou o ocorrido ao meu pai. Foi assim que surgiu a lenda do morto vivo que assustou o padeiro na rua Alagoas em frente ao Cemitério São Pedro. Como dizia meu pai, isto aconteceu mesmo. O restante da história? Talvez seja fruto de minha imaginação!

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Crônicas na Holanda 19 - Sobre a natureza humana ou que lobo você está alimentando?

Na última terça-feira, tive a oportunidade de falar a uma turma de mestrandas e mestrandos da Utrecht University. Minha fala foi sobre empreendedorismo no Brasil. Mais do que uma atividade obrigatória que eu havia planejado para meu período de pós doutorado, desejava muito poder interagir com jovens estudantes. 
No longínquo10 de março de 2020, poucos dias antes da suspensão da aulas na UFPR devido à pandemia de Covid eu dera minha aula inaugural para mais uma turma de graduandos em Administração. Quase dois anos depois, afastado das salas de aula,  sentia falta de ouvidos interessados, ou não, naquilo que falasse. De olhares atentos, ou não, naquilo que eu pudesse compartilhar. Das poucas perguntas,  ou, até mesmo, do silêncio constrangedor que indicaria o momento de encerrar a aula.  Sentia falta de gente! Bem como da possibilidade de falar sobre um tema que me acompanha nessa carreira acadêmica que já passou de quatro décadas.
Depois da aula, saio do prédio e me encaminho ao pátio da universidade. Chegara a este por outra entrada. Queria conhecer o que havia do outro lado. Era minha primeira vez neste espaço da Utrecht University que se esparrama por vários cantos da cidade. Surpresa! Ao centro do pátio, uma estátua de Gandhi. Devidamente fotografada com a intenção de usá-la em alguma crônica. Não imaginava, porém, que isso aconteceria tão rapidamente. Apenas quatro dias epois, Gandhi ocupa um quarto da ilustração desta crônica.
Volto à longínqua aula de março de 2020. Era a primeira aula da disciplina de Direito nas organizações. Devido à falta de um professor, me ofereci para assumir esta turma de primeiro período do curso de Administração. 
Um desafio! Afinal, não tenho formação em Direito. Mas, consistente com minha visão do que é ser professor de Administração, me coloquei à disposição da turma para juntos, buscarmos informação sobre como este campo de conhecimento pode apoiar a ação administrativa. Na primeira aula, após explicar a situação à turma, começamos nossa jornada conversando um pouco sobre partes da nossa Constituição e como ela condiciona nossa atuação profissional e como cidadão também.
Um pouco antes, eu expusera minha crença na natureza de boa índole do ser humano. E, mais importante, de como a liberdade de cada um de nós poderia, naquele contexto de aprendizagem, nos guiar na busca do conhecimento que cada um considerasse relevante. Meu papel de professor, disse a eles, não incluía ser fiscal ou juiz da qualidade da aprendizagem de cada um. Na educação sigo o princípio da aprendizagem experiencial de Carl Rogers: o melhor avaliador da aprendizagem é aquele que aprende, não o que "ensina".
Agora, volto ao momento presente. Sábado de manhã em Utrecht. Caminho em direção ao centro. Além de algumas compras, um passeio por esta cidade que me encanta a cada novo olhar. No meio do caminho, uma estátua de Anne Frank. Embora, já tivesse passado por ali antes, o monumento me passara desapercebido. Mais uma fotografia. Além de registro para uma lembrança visual de minha estada por aqui, poderia ser usada em uma crônica futura. Como você pode ver, é outra quarta parte da ilustração desta crônica. Foi rápido!
Sigo em direção a uma livraria. Perguntei sobre os livros em inglês. Além das aulas, tenho sentido falta do manuseio de um livro impresso. Entre as opções, um me chama a atenção pelo título: Humankind a hopeful history (Humanidade uma história esperançosa). Após folheá-lo rapidamente, a escolha está feita. Passo pelo caixa. Faço o pagamento e agradeço em holandês (Dank je wel). Surpresa, a atendente de origem oriental, com quem até aquele momento eu conversara em inglês, sorri e me dá um até logo em holandês (Tot ziens).
Acomodado em um café, começo a ler o livro de Rutger Breman. Jovem historiador holandês que, logo nas primeiras páginas, me conquista com seu estilo agradável de escrita e pela esperança que parece trazer a nós humanos em um momento tão complicado. 
Não! Ele não fala da pandemia! Pelo menos até onde li. Mas, parece trazer uma mensagem de esperança. A esperança que está no título de seu livro. E que começa afirmando que, ao contrário do que a maioria acredita, o ser humano é por natureza bom. Uma crença que compartilho. Muitos, ao saberem de minha descrença religiosa, já me perguntaram:
_ Fernando, em que você acredita?
Minha resposta sempre foi:
_ Acredito na humanidade.
Assim, não é nada surpreendente que o livro de Rutger Bregman tenha chamado minha atenção. No prólogo do livro ele conta algumas passagens sobre a segunda guerra mundial. De cuja história, Anne Frank é um ícone trágico. Porém, o autor tenta mostrar, que mesmo na guerra a bondade humana esteve presente. Aliás, embora Rutger no trecho que li não mencione Anne Frank, sua história também evidencia a presença da bondade humana.
Mais à frente, no primeiro capítulo, Rutger cita uma frase de Gandhi. Olha que coincidência! Gandhi se recusava "a acreditar que a tendência da natureza humana fosse sempre para baixo". Rutger cita esta fala de Gandhi junto com uma de Nelson Mandela: "a bondade do homem é uma chama que pode ser escondida, mas não extinta".
Foi no prólogo, no entanto, que o autor contou algo que me estimulou a escrever esta crônica, mesmo não sendo domingo. Domingo que é dia de crônica! Rutger Bregman resgata uma parábola que circula pela internet:
Um velho homem diz para seu neto: "Há uma luta acontecendo dentro de mim. É uma luta terrível entre dois lobos. Um é mau - raivoso, ambicioso, invejoso, arrogante e covarde. O outro é bom - pacífico, amoroso, modesto, generoso, honesto e confiável. Estes dois lobos também lutam dentro de você e de todas as pessoas". Depois de algum tempo, o neto lhe pergunta. " Qual lobo vencerá?". O avô sorri e responde. "Aquele que você alimentar".
Assim, nada mais justo que a capa do livro seja mais uma quarta parte da ilustração desta crônica. 
E, para completar a ilustração, adicionei a fotografia de uma escultura feita por Jits Bakker. Escultor holandês que tem parte de suas obras expostas em um museu ao ar livre em De Bilt, próximo a Utrecht. Fiz esta fotografia quando lá estive. 
Como você pode ver, na escultura estão dois ciclistas, também um ícone desse país em que estamos temporariamente vivendo. Mas, no contexto desta história esperançosa que comecei a ler, esta escultura traz um significado próprio para mim. A sabedoria popular diz que algumas coisas são como andar de bicicleta. Depois que a gente aprende, nunca se esquece. Assim, é com a bondade. Depois que você a prática, sempre a praticará.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Crônicas na Holanda 18 - Sinais ou As aparências enganam.

Nas caminhadas por Utrecht, presto atenção aos sinais. Sejam naturais ou obras de mãos humanas, eles comunicam. Mas, às vezes podem enganar. Assim como as aparências, como bem nos lembra a sabedoria popular. 
Na fotografia que abre esta crônica, há três deles: flores brotando nas manhãs ensolaradas, um poste que sinaliza um toalete para cachorros (honden) e uma rua tranquila e pacífica com um alerta da polícia. Neste 120°. dia de vida em terras holandesas, mostro que nem tudo é o que parece ser. As aparências enganam. Vamos por partes, como diria o famoso Jack, o estripador londrino que foi apenas personagem da literatura. Mas, vítima frequente dessa piadinha que chega a ser quase infame.
Começo pelas flores. Há três dias, percebi esas pequena flores brotando nos gramados ao longo de calçadas e praças. Parece até que a primavera já está chegando. Mas, que nada! A primavera, oficialmente, começa apenas em 19 de março. Em 34 dias, portanto. Mas, com as manhãs ensolaradas que temos tido, as plantinhas começaram a brotar. Afinal, elas não sabem que os humanos decretaram o começo da primavera apenas para março. No entanto, para nós as aparências enganam. As floradas não estão sinalizando o fim do inverno. Bem como, as casas junto às flores não estão sob as águas do Rembrandtkade, nome do canal  às margens do qual tirei a fotografia. As aparências enganam!
Também às margens do Rembrandtkade, na vizinhança de um templo religioso, está esta rua aparentemete segura e tranquila. Ledo engano! Como alerta a placa colocada pela polícia local, os amigos do alheio andam pela redondeza. Basicamente, a recomendação é não deixar nada dentro dos carros, pois se nada está dentro nada vai para fora (niets er in... niets er uit!). As aparências, de novo, enganam.
Concluo, enfim, pelo mictório para cachorros. Que não é o que parece ser. Hond e seu plural honden foi uma das palavras iniciais de meu aprendizado da língua holandesa. Ao tentar falar de Kennedy, nosso schnauzer, em uma das primeiras lições de holandês aprendi como dizer cachorro nesta língua. No primeiro passeio a um parque, ainda em Amsterdam, vi um destes pequenos postes com a plaquinha escrita "honden toilet". Fiquei surpreso e, ao mesmo tempo, achei muita graça. Pois imaginei que o pequeno poste seria um mictório para cachorros.
Na mesma praça havia um tradicional mictório para homens em que é possível ver quando um está mijando, pois o mictório encobre apenas um terço do homem. Ficam visíveis as pernas, peito e cabeça. Se o homem tem um mictório em praça pública, por que não haveria um para o melhor amigo do homem?
Mas, não é nada disso. Nesses quatro meses que estamos por aqui, nunca vi um cachorro fazendo uso dos postes que estão presentes em todos os parques que já visitei neste país. E olha que tem muto cachorro por aqui. Das mais variadas raças acompanhados por humanos, também nos seus mais variados formatos! Eu ficava imaginando que esforço sobrehumano seria necessário para adestrar os cachorros a fazerem uso desses pequenos postes. Kennedy, quando saía para andar com ele em Curitiba, tinha um pouco de xixi para cada poste no caminho! Seria impossível fazê-lo esperar até chegar em um "honden toilet"!
Outro dia, resolvi buscar informações sobre os "honden toilets" na internet. No site da prefeitura de Utrecht consegui resolver o mistério. Há algums regras sobre levar os cachorros para as ruas. Eles devem ser sempre conduzidos por coleiras e há espaços específicos nos parques em que eles podem ficar soltos. Se eventualmente cagarem em algum lugar, os responsáveis devem coletar a sujeira e dispô-la em lixeiras, sob pena de multa caso não o façam. Mas, há uma exceção: nos espaços assinalados como "honden toilet", não é preciso coletar a sujeira dos cães. Duas vezes por semana, a área é limpa por funcionários da prefeitura. Como disse, as aparências enganam!

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Crônicas na Holanda 17 - O pantanal holandês

Desde que chegamos a Utrecht, moramos em apartamento alugado já com mobília, roupa de cama, toalhas, talheres, panelas e louças. A casa onde moramos contém cerca de dez apartamentos pequenos, entre 35 e 45 metros quadrados, todos mobiliados de forma semelhante e distribuídos por três andares. Há uma lavanderia compartilhada entre os moradores que conta com duas lavadoras e duas secadoras. No restante, os apartamentos dispõem do mínimo necessário para uma vida razoavelmente confortável, inclusive fogão, geladeira, cafeteira, chaleira elétrica, forno elétrico conjugado com micro-ondas, uma televisão e um equipamento de som (3 em 1).

Nos primeiros 35 dias vivemos no apartamento 9E, com vista para a praça interna do campus. Depois, a partir do dia 23 de dezembro, nos mudamos para o 9A, com vista para a rua em frente à entrada principal do campus.  Desde o primeiro dia, após algumas dificuldades iniciais, consegui sintonizar o rádio do 3 em1 na estação Sublime. É uma emissora holandesa que traz, segundo o slogan próprio, o melhor do jazz, soul e funk (het beste van jazz, soul en funk), que devido à grande semelhança com a língua inglesa conseguimos entender desde a primeira vez que ouvimos. Porém, nem sempre a língua holandesa se parece com a inglesa.

A programação musical da Sublime é realmente excelente e, apenas uma vez, tentei sintonizar outras estações. Nenhuma nos pareceu tão agradável como a Sublime e nos tornamos ouvintes fiéis dela, quase cativos! Conforme fomos acostumando o ouvido com as falas entre os intervalos das músicas, algo nos chamou a atenção. Frequentemente ouvíamos a palavra “pantanal”. Era algo muito curioso, pois a menção a “pantanal” ocorria com muita frequência na Sublime. Como meu entendimento do holandês era muito precário, ficávamos pensando que talvez fosse propaganda de pacotes turísticos ao pantanal brasileiro. Ou notícias sobre as queimadas no Brasil. A imaginação voava!

Desde as primeiras semanas, após nossa chegada na Holanda, decidi aprender um pouco do holandês por conta própria. Já comentei sobre isso em outras crônicas. Mas, é um aprendizado lento, a que me dedico quase que uma hora diariamente em um site gratuito. Apesar da complexidade da estrutura gramatical dessa língua, o esforço tem sido recompensado. Começo a entender, às vezes, uma ou outra frase ouvida no rádio ou na rua. Reconheço com facilidade muitas palavras escritas e seus significados também. De vez em quando arrisco até uma pequena fala em holandês. No entanto, ainda é tudo muito precário, me restringindo a “bons dias”, “boas tardes”, “por favores”, “obrigados”, “até logos”, e um ou outro pedido em bares e restaurantes por meio da leitura dos menus.

Dia desses tive que fazer uma ligação para tratar de algum assunto burocrático referente ao cadastro de minha mulher junto à DigId que já mencionei também em outra crônica. Acabei interagindo com uma atendente automatizada que, após seguir as primeiras instruções, e pressionar os números corretos no teclado do celular, consegui entender que havia uma fila de espera para atendimento ao telefone. A mensagem concluía com a sugestão de acessar um site da internet para tentar ter meu atendimento por lá.  

Nesse momento, me dei conta do que era o “pantanal” holandês que ouvimos todos os dias na Sublime. Ri sozinho e corri para contar para ela. Como vocês sabem, os endereços de internet sempre terminam com um ponto seguido de duas ou três letras, por exemplo, ".com" ou ".org" ou ".br", entre outros. Pois então, os endereços de internet na Holanda terminam com ponto ene ele (.nl). E, quando falado em holandês é muito semelhante com “pantanal”. Por extenso seria “punt en el”, que oralmente se tornou “pantanal” para nossos ouvidos. O site da Sublime é simplesmente sublime.nl. Veja lá o  que temos ouvido.

Mas, com “pantanal” ou sem “pantanal”, continuamos ouvintes constantes da Sublime. Concluo essa crônica ouvindo Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, em um dueto fantástico, cantando Cheek to Cheek. Se você não tem acesso à Sublime, pode ouvir os dois em https://www.youtube.com/watch?v=20iOlPwz0J0&list=OLAK5uy_lYqHSJL605np3qBB6QaWiqG3TpiO2R7gw&index=9.

Ou, ainda, tentar cantar a música, a partir da letra:

Heaven, I'm in heaven

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together, dancing cheek to cheek

Yes, heaven, I'm in heaven

And the cares that hung around me through the week

Seems to vanish like a gambler's lucky streak

When we're out together, dancing cheek to cheek

Oh I'd love to climb the mountain

Reach the highest peak

But it doesn't thrill me half as much

As dancing cheek to cheek

Oh, I'd love to go out fishing

In a river or a creek

But I don't enjoy it half as much

As dancing cheek to cheek

Now, mama, dance with me

I want my arms about you

The charms about you

Will carry me through, yes

Heaven, I'm in heaven

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together, dancing cheek to cheek

Take it Ella, swing it

Heaven, I'm in heaven

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together, dancing cheek to cheek

Heaven, I'm in heaven

And the cares that hung around me through the week

Seem to vanish like a gambler's lucky streak

When we're out together, dancing cheek to cheek

Oh I'd love to climb a mountain

And to reach the highest peak

But it doesn't thrill me half as much

As dancing cheek to cheek

Oh I love to go out fishing

In a river or a creek

But I don't enjoy it half as much

As dancing cheek to cheek

Come on and dance with me

I want my arm about you

The charm about you

Will carry me through to

Heaven, I'm in heaven

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together, dancing cheek to cheek

Yes, dance with me

I want my arms about you

The charms about you

Will carry me through to

Heaven, I'm in heaven (heaven, I'm in heaven)

And my heart beats so that I can hardly speak

And I seem to find the happiness I seek

When we're out together, dancing cheek to cheek

Cheek to cheek

Cheek to cheek

Cheek to cheek

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Crônicas na Holanda 16 - Um empreendedor belga e a cooperação internacional


Quando planejava nossa viagem para a Holanda, fui alertado por um amigo de Paloma, minha filha, sobre uma particularidade do pequeno comércio na Holanda. Ao contrário do que é comum no Brasil, em que o pagamento com cartões de crédito é praticamente universal, por aqui isso não é tão comum.
De fato, depois dos primeiros dias em Amsterdam encontrei locais em que o cartão de crédito não era aceito e tive que pagar a compra em dinheiro. Pior ainda, em outros lugares o pagamento em dinheiro não é aceito. Em outros lugares consegui usar o cartão de débito pré-pago que ativei no Brasil. E, nas lojas maiores ou em ambientes com maior fluxo turístico, o meu cartão de crédito brasileiro foi aceito sem problemas.
Porém, certo dia, ao irmos fazer um lanche em um pequeno restaurante de uma brasileira em Amsterdam, o Sabor de Maria, quando fui pagar a conta em dinheiro, a proprietária me alertou:
_ Sempre pergunte ou veja se aceitam dinheiro. Em muitos lugares é só com cartão de débito. Nem dinheiro, tampouco cartão de crédito.
Depois de quase 45 dias, já em Utrecht resolvi o problema, abrindo uma conta em um banco digital que me forneceu um cartão de débito com a bandeira aceita aqui, a Maestro. Nem Visa, nem Mastercard. A cada 30 dias, às vezes um pouco mais, outras um pouco menos, transfiro euros para essa conta e vou usando o cartão.
Na semana passada, quando fui fazer um pagamento com o Maestro em um supermercado, veio mensagem de pagamento não autorizado. Estranhei, pois tinha certeza de haver saldo suficiente na conta e, para não segurar a fila, rapidamente paguei em dinheiro. Era como fazia nas compras anteriores nesta rede varejista antes de ter o cartão Maestro.
Logo depois, o mesmo problema aconteceu em uma pequena mercearia daqui do bairro. No entanto, o proprietário que tem mais experiência do que a jovem que me atendera no supermercado, me instruiu a usar o cartão no modo tradicional e não por aproximação como faço em todas as compras. Cartão enfiado na máquina, pedido de senha e, pronto, pagamento autorizado.
Depois que cheguei em casa, consultei o aplicativo do banco em meu celular e etava tudo certo. Saldo suficiente e registro da compra negada no supermercado e da compra aprovada na mercearia. Fiquei matutando no que poderia ter acontecido e desconfiei que pudesse ser um mecanismo de segurança do banco para pagamentos por aproximação. Naquele dia, havia feito vários gastos antes de ir ao supermercado. É provável que tivesse chegado a um limite de gastos com esse procedimento.
Ontem, ao passear por Antuérpia com minha mulher, também fizemos alguns gastos extras. Afinal era aniversário dela. Apesar da fama da cidade,  porém, não houve gastos com diamantes! De volta à estação de trem, para o retorno a Utrecht, fomos tomar um café antes. De novo o pagamento por aproximação foi negado. Tentei o pagamento na forma tradicional, com senha, e deu certo. Quando chegamos a Utrecht, resolvi recarregar nossos cartões de transporte coletivo. Adicionei um valor adequado para cerca de um mês e paguei com o cartão por aproximação. Sem problemas!
Acho que entendi a lógica da segurança do cartão. Após um certo número de pagamentos em sequência, o sistema exige o uso da senha e libera para mais compras por aproximação.
E o empreendedor belga? Onde entra nesta história?
Pois então, no caminho de volta para a estação de Antuérpia passamos por um quiosque que vende churros. Não grossos e recheados como os vendidos no Brasil, mas mais finos e apenas com açúcar. Muito parecidos com os que pude comer em alguns cafés da manhã na Espanha. Ao pagar, usei o cartão por aproximação e o homem que me serviu, muito rapidamente virou a maquineta para baixo e me entregou os churros. Inclusive, me disse que colocou um a mais de cortesia. Agradeci com um "Dank je wel" em meu parco holandês. E fomos em direção à estação.
Em casa, depois de descansar e tomar banho, fui checar o saldo da conta Maestro. Estranhamente, vi uma compra de seis euros negada. Recapitulei as compras do dia, conforme apareciam no extrato. Me dei conta que era o valor dos churros. Por motivo que não sei, a compra foi negada. O que fazer? Ao comentar com minha mulher, brinquei:
_ Um dia que voltar para a Antuérpia, tenho que passar no quiosque e pagar os churros novamente.
Mas, a probabilidade disso acontecer é muito pequena! Assim, decidi que o empreendedor belga faria uma doação Internacional, mesmo sem saber disso. Em Curitiba, há um programa de ação social contra a fome que se chama "Marmita da Terra". Tenho feito uma contribuição mensal para o programa há algum tempo. Hoje à tarde, fiz uma transferência de R$ 50 para o "Marmita da Terra". Aos seis euros do vendedor de churros de Antuérpia, juntei alguns minguados reais. Acho que ele ficará feliz se, um dia, souber que o fruto de uma pequena venda que não recebeu, ajudou alguém com fome em outro país. Se você quiser e puder, procure se informar como ajudar o "Marmita da Terra" com a Associação de Cooperação e Reforma Agrária do Paraná.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Crônicas na Holanda 15 - Sobre cuidados: oficiais, incidentais e até mesmo acidentais!

Nos últimos dias, coisas pouco usuais aconteceram comigo. Começo pela mais recente. Há dias, estava um pouco angustiado com uma correspondência que deveria chegar para minha mulher. Ainda relacionada à questão da prova vacinal contra o vírus da Covid 19. Como contei em outra crônica, tivemos que tomar duas doses da vacina da Pfizer após nossa chegada neste país. Por razões não esclarecidas para nós, as doses da Coronavac que tomamos no Brasil não foram aceitas pelo governo holandês. Depois de decorridas duas semanas da segunda dose da Pfizer, estaríamos devidamente imunizados segundo as autoridades sanitárias. Ou seja, como nossa segunda dose nos foi aplicada no dia 13 de dezembro, desde 27 do mês passado completamos o requisito de vacinação contra a Covid 19.

Depois disso, teríamos que instalar um certificado digital da vacinação em um aplicativo nos nossos celulares, o CoronaCheck. Este aplicativo é usado pelos países membros da Comunidade Europeia. Para conseguirmos fazer isso, no entanto, deveríamos fazer um procedimento prévio: nos registrar junto ao Digid, que é um meio digital de sermos identificado pelas autoridades do governo e termos acesso aos serviços online. Mas, para nos registramos no Digid, tivemos que ir até a prefeitura local, para informar nosso novo endereço, pois o código de ativação do Digid nos seria enviado por correio. Parece complicado, não é? E é mesmo!

Da primeira vez que tentei fazer nosso registro no Digid, não consegui. O endereço registrado na prefeitura era, ainda, o endereço provisório que a Utrecht University me havia fornecido para efetuar o cadastro na prefeitura de Utrecht, enquanto ainda estávamos em Amsterdam. Depois de informado o endereço atual, consegui fazer o cadastro no Digid e, cinco ou seis dias depois, eu recebi a carta com o código de ativação. A correspondência para ela, no entanto, não chegou! Esperamos mais uns dias. Nada!

Pedi ajuda da funcionária (landlady) que atende aos inquilinos dos apartamentos na universidade. Ela sugeriu que eu verificasse com a recepção da universidade. Foi o que fiz. Surpresa! Como o nome dela não estava registrado no cadastro de moradores da universidade, já que ela não tem vínculo com a mesma, a moça disse que provavelmente a correspondência deveria ter sido devolvida ao remetente. A moça foi atenciosa comigo. Aproveitou para registrar nosso novo apartamento, pois ao final de dezembro, saímos do 9E e entramos no 9A. Incluiu o nome dela no cadastro.

Quanto ao Digid, tivemos que repetir a inscrição dela online. Hoje, depois de uma semana, ela recebeu o código de ativação do Digid. Ativado o Digid, nós dois conseguimos ter o comprovante de vacinação em nosso celular devidamente instalado no CoronaCheck. Agora é só esperar o governo aliviar o lockdown, para começarmos a usá-lo. Há rumores de que a partir da próxima terça-feira, bares, restaurantes, museus e outros espaços de lazer e cultura serão autorizados a reabrir. Mas, ainda com a exigência de controle de acesso por meio do CoronaCheck.

Mas, isto tudo, embora possa ser enquadrado na categoria do pouco usual como afirmei acima, é só um preâmbulo para falar de outros três eventos. Na correspondência que peguei pela manhã, além da carta para ela, havia um envelope para mim. Ao abri-lo, descobri que continha instruções e um kit para coleta de material para um exame de sangue nas fezes. Apesar de estar tudo escrito em holandês, após algumas traduções que fiz pelo Google, percebi que é um convite para participar de um programa de controle de câncer no intestino, implantado pelo governo holandês. A participação é voluntária a partir dos 55 anos, e o exame é feito a cada dois anos. Além desse programa, há mais dois: um de prevenção ao câncer de mama e outro para o cervical. Bacana, não é? 

Depois de dez dias, se eu resolver participar, receberei o resultado do exame pelo correio. Se for necessário, serei encaminhado para uma consulta e uma colonoscopia. O primeiro exame é gratuito, mas a consulta e a colonoscopia são cobertas pelos seguros de saúde que cada cidadão deve ter por aqui. Este é o cuidado oficial que faz parte do título da crônica. O governo tentando prover aos que moram no país, alguns cuidados de saúde preventivos e muito importantes.

Mas, você, minha prezada leitora e meu prezado leitor, deve estar, a esta altura querendo saber sobre os outros cuidados que estão no título, não é. Pois então, vamos ao cuidado incidental que recebi três dias atrás.

Fui ao supermercado Plus fazer uma compras. A cada três ou quatro dias, eu vou às compras. Às vezes no Plus, às vezes em outra rede, Albert Heijn, e outras vezes em uma pequena mercearia bem próximo de casa, a Olifje, que tem muitas delícias da culinária do Oriente Médio, além de frutas, verduras, legumes, pães e outros itens de secos e molhados. No Plus, tem umas profiteroles cobertas de chocolate que são uma perdição! Haja caminhadas para queimar as calorias provenientes delas e das baclavas da Olijfe, feitas com nozes ou pistaches e mel em uma massa muito fina!

Quando cheguei ao caixa do Plus, a cesta que eu havia pegado para colocar os produtos estava transbordando. Acabei comprando, como quase sempre acontece, muito mais do que havia pensado. Ao colocar a cesta sobre o aparo em frente ao caixa, enquanto a atendente ia passando os produtos, ela me falou algo em holandês. Como não entendi, ela repetiu em inglês:

_ Da próxima vez, pegue o outro tipo de cesta. Esta que você pegou é para os mais jovens.

Olha que moça mais gentil. Tão cuidadosa! Eu ri sozinho, pois de forma muito delicada, ela tinha acabado de me chamar de velho, não é? O outro tipo de cesta tem uma aba mais comprida e pequenas rodas em uma de suas partes. A gente pode facilmente arrastá-las pelo piso enquanto fazemos a compra. Foi um momento em que recebi um cuidado deliciosamente incidental!

Por fim, chego ao terceiro cuidado desta crônica. Ao final da manhã, depois de termos passeado por um parque perto de onde moramos, pegamos um ônibus e fomos ao centro de Utrecht. Depois de andarmos um pouco pela região central, fomos até uma feira de rua que ocorre duas ou três vezes por semana, nas imediações de um shopping-center. Há de tudo um pouco nesta feira; frutas, legumes, carnes, peixes, queijos, e muitas barracas de comidas.

Depois de passarmos por várias opções, decidimos comer um cachorro-quente. Havia uma fila de clientes não muito longa, mas ela avançava devagar. Somente o proprietário da banca estava atendendo os clientes. Enquanto esperávamos, de repente, ouço um barulho estranho. Algo que soou como um “flope”, um som de coisa caindo e batendo na minha roupa. Foram três flopes. Olhei para o ombro direito e vi, na jaqueta, três cagadas de uma gaivota. Devido às bancas de peixe, havia muitas gaivotas sobrevoando a feira. E, entre tantos, eu fui o felizardo de receber os bólidos voadores que escaparam do rabo de uma gaivota. Sortudo, não? Mas, antes cagado de gaivota na Holanda do que cagado de arara no Brasil!

E aí, chegou o terceiro cuidado. Depois que eu vi as manchas na jaqueta, pedi que minha mulher pegasse alguns guardanapos na banca de cachorro-quente para limpar a cagada da gaivota. O que ela fez com muito carinho, mas às gargalhadas. Este foi o cuidado acidental!

É impressionante, mas parece que a vida conspira para eu escrever estas crônicas. Às vezes, não tenho a mínima ideia sobre o que poderia escrever. E então, vem a vida e me coloca em três momentos pouco usuais. O que eu posso fazer? Contar para vocês, não é?