sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Um patrão a bordo

Qual o significado de patrão? Esta questão me ocorreu hoje quando embarcado em um vôo de Curitiba para São Paulo. Meu assento era o 10B. Para quem não sabe, na maioria dos aviões, os assentos "B" são ladeados por outros passageiros. É um lugar que não gosto. Acentua meu desconforto levemente claustrofóbico em espaços apertados, tal como uma cabine de avião.
Quando fiz o check-in online, pensei em mudar de lugar. Mas, isso me custaria vinte reais. Agora, as companhias aéreas nos cobram até para mudar um lugar que aleatoriamente me foi atribuído pelo sistema informatizado! Não é tão aleatório assim. É o que desconfio.
Como era uma viagem curta, resolvi enfrentar o desconforto e poupar os vinte reais. Tenho destino mais nobre para eles. Por exemplo, uma caipirinha de cachaça. Além disso, sempre há a esperança de um assento vago, ou um pedido de troca. Por exemplo, casais separados por esse sistema aleatório.
Hoje estou levemente inclinado ao didatismo. Já usei "por exemplo" duas vezes! E, ainda por cima, comecei o texto com uma interrogação. Recurso didático de que faço uso esporádico.
Por falar nisso, voltemos à pergunta do começo: qual o significado de patrão. Ou, talvez, voltando um pouco mais: por que me surgiu essa pergunta na mente em um vôo entre Curitiba e São Paulo?
Estava eu sentado no assento 10B. Uma jovem passageira acomoda sua bagagem acima de minha cabeça. No compartilhamento destinado para bagagens, é claro! Me olha e eu lhe indago:
_ Você está na poltrona ao lado da janela?
Ela sorri. Reponde:
_ Sim. Mas, o senhor não quer trocar?
Veja só. A minha esperança se concretizando. Concordei. Ela completou a informação:
_ É que meu patrão também está embarcando e sentará na outra poltrona.
_ Assim vocês podem conversar, eu comentei.
Me mudei para a 10A. A moça sorridente sentou-se na 10B. E o patrão, quase ao final do embarque, ocupou a 10C.
Logo depois, a moça encostou a cabeca no ombro do patrão e fez uma selfie de ambos. Estranhei!
Em seguida, na decolagem eles se deram as mãos. Estranhei de novo!
Um pouco mais tarde, perto do momento de aterrissagem, ela encostou a cabeça no ombro dele.
Já estava me acostumando. Deixando de estranhar. Pensei comigo mesmo:
_ Ah! Esses tempos modernos!
É uma relação distinta entre patrão e empregada daquilo que eu imaginara. Mais carinhosa do que antigamente!
Mas, por outro lado, talvez ela estivesse usando a palavra patrão com um sentido diverso.
Me lembrei de quando encontrei um amigo que não via há pelo menos uma década. Foi em frente ao Cine Ouro Verde em Londrina. Ele estava acompanhado de uma mulher. Me viu. Me chamou. Disse:
_ Fernando, vem aqui. Quero lhe apresentar minha patroa.
Pode ser esse o significado de patrão que a moça sorridente usou. Não é?

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Gritos na noite

Aquilo vinha deixando-o intrigado de longa data. Não conseguia precisar quando fora a primeira vez. Certamente, não fora muito antes do acidente. Já lá ia quase um ano desde que perdera o braço esquerdo. Um acidente bobo. Mas, doloroso. Você quer saber como foi, não é? Vou contar, apesar de não ser importante para a compreensão daquilo que o intrigava. Um marco no tempo. Somente!
Então. Ele descera a serra em direção ao mar. Era quase que uma rotina semanal.  Ao menos no verão. Dizia que era a única razão para morar em Curitiba. Tinha uma casinha no litoral. Financiada pela companhia de habitação do estado. Em Curitiba, morava com os pais. Sem estudo, trabalhava de representante comercial. O que chamavam de viajante antigamente.
Carregava seis meses de atraso nas prestações. Sempre que corria o risco de perder o imóvel, dava um jeito de saldar a dívida. Depois, atrasava os pagamentos novamente. Ainda faltavam dez anos para quitar tudo.
O patrão dele vivia se oferecendo para ajudar. Era caidasso por ele. Mas, ele não aceitava. Pelo menos era o que dizia. Já tinha transado com o patrão muitas vezes. Mas, dizia não querer misturar as coisas. Os colegas comentavam que era o patrão que o tirava dos apertos. Vai saber!
Mas, esta é outra história. Sei que você ficou curioso. Mas, não vou contar. Afinal, o que o cú tem a ver com as calças? Nesse caso, com as contas, né? Deixa pra lá.
Mesmo o acidente não interessa pra esta história. Mas, já que comecei, termino.
Então. Era um feriado prolongado no verão. Ele acordou cedo no sábado e foi pro mar. Entrou na água. Mergulhou. Sempre foi bom de fôlego. Quando estava subindo, uma lancha estava acima dele. O motor arrancou seu braço esquerdo. Foi aquela sangueira! Por sorte, havia salva-vidas na praia. Foi isso. Acidente bobo!
Voltando ao ponto inicial. No começo ele não dera muita bola. No meio da noite, acordava angustiado. Suado. Era um pesadelo. Mas, ele só lembrava o final. Um grito. De alguém. Não dele. Isso acontecia uma vez por mês. No começo. Depois passou a ser toda semana. Ao menos uma noite. Estava ficando insuportável!
Me contou quando comentei sobre as olheiras escuras que tinha observado. Disse que não estava dormindo direito. E falou do grito e do suador noturnos.
Eu me lembrei de uma historia que minha tia me contava. Ela dizia que tinha ouvido de sua mãe, minha avó por parte de pai. Falava que sonhar com grito era prenúncio de morte. Na nossa família, minha tataravô tinha passado por algo parecido. Ela acordava toda manhã suada e assustada com um grito. Acusava meu tataravô de querer assustá-la. O velho negava. Depois de um ano, a velha amanheceu morta. Toda suada! Desconfiaram do velho. Mas, ninguém conseguiu provar nada.
Perguntei pra ele há quanto tempo. Ele disse que a primeira vez foi um pouco antes do acidente. Quase um ano! Pensei comigo mesmo. Enfim, não quis assustá-lo com a história que minha tia contava. Sugeri que procurasse uma psicóloga. Podia ajudar.
Não deu tempo. Na noite seguinte, a mulher do patrão deu um tiro nele. Deu um flagra nos dois em um motel. Ele estava dormindo. Diferente da minha tataravó não morreu suado. Mas, estava endividado de novo. As prestações da casinha no litoral já estavam atrasadas por seis meses de novo. Um colega de trabalho me contou. Tinha ouvido ele conversando com o patrão.
E comigo ficou uma dúvida: será que meu tataravô sabia de algo da minha tatatavó?

sábado, 12 de outubro de 2019

Este e meu papel no filme, vamos ouvir o seu

A frase do título encerra Tristessa, romance de Jack Kerouac publicado em 1960. A versão que li é da coleção L&PM Pocket, traduzida por Edmundo Barreiros.
O cinema enquanto metáfora da vida. Usada inúmeras vezes. Mesmo em 1960, imagino que Kerouac não tenha sido o primeiro a usá-la. Afinal, esta arte-indústria era já sexagenária naquele ano. A se fiar na convenção histórica, o cinema completara 65 anos em 1960.
Apesar dessa falta de originalidade, a metáfora conserva seu charme. Ao menos para mim. Vezenquando, me vejo na condição de intérprete de papéis na vida. Um pouco sem jeito frente às câmeras. Felizmente, nem sempre atuo para as câmeras. Apesar da quase onipresença delas em nosso mundo contemporâneo. Elas estão escondidas. Mas, se você procurar bem, poderá encontrá-las. Sorria, você está sendo filmado. Nos avisam. Verdadeiro ou falso? Vai saber! Na dúvida sorrio. Apenas um sorriso tímido!
Qual é o meu papel? A quem interessa ouvir? O convite de Jack, personagem que carrega o mesmo nome do autor, mexeu comigo.
Respondo. Para quem? A mim mesmo. Afinal de contas, a escrita é, antes de tudo, um falar com si mesmo. Assim, nessa construção cotidiana de minha identidade, misturo papéis: homem que já foi menino; professor que já foi aluno; pai que já foi filho; e tantos outros.
Mas, o que me importa mesmo, é que nessa mistura, na maioria das vezes, independente do papel, o enredo foi escrita própria. Mesmo que apenas em sonhos.
Ou terá sido tudo sonho?

domingo, 15 de setembro de 2019

Uma aula sobre paciência

O velho China, há dias, vinha observando Lorde Kennedy. Estranhava a forma agressiva com que seu amigo se comportava ultimamente.
Primeiro foi com Chumbinho. Estavam todos voltando da Prainha. Chumbinho tinha ficado para trás. Dama comentou:
_ Não estou vendo o Chumbinho. O que será que aconteceu. Estou preocupada.
Imediatamente, Lorde Kennedy respondeu:
_ Ele já está bem grande pra se virar sozinho. Vamos em frente.
Os demais se olharam e, apesar da grosseria de Lorde Kennedy, não falaram nada. Logo depois, Chumbinho virou a esquina e veio em disparada. Quando alcançou a gangue, disse:
_ Encontrei a Matilde, uma doberman velha conhecida. Eu a vi no quintal de uma casa grande e fui até lá.
Lorde Kennedy se virou pra Dama:
_ Viu como não era nada. Você é muito boba.
E seguiu em frente. Vina se aproximou de Dama e notou uma lágrima em um dos olhos da amiga.
No dia seguinte, Lorde Kennedy se irritou com Alemão. O pastor estava todo agitado porque ia se encontrar de novo com Lola. Não se aguentava de felicidade e começou a brincar com os demais. Dava uma cutucada com uma das patas na orelha deles e saía correndo. Todos se divertiam. Mas, quando Alemão tocou na orelha de Lorde Kennedy, este se virou rosnando agressivamente e enfrentou Alemão:
_ Não se esquece que eu já pus um grandalhão para correr. Posso fazer o mesmo com você.
A sorte é que Alemão estava feliz demais para brigar com o amigo. Deu as costas para Lorde Kennedy e foi mexer com o China. Dama suspirou tristemente.
A terceira vez foi com o próprio Nego. Lorde Kennedy estava terminando de comer seu almoço. Nego resolveu recolher as tigelas de todos mais cedo. Era dia de folga da cozinheira, e ele queria limpar tudo logo. Tinha que sair. Quando Nego foi pegar a tigela de Lorde Kennedy, na qual havia um restinho de comida, ele rosnou e avançou na mão de Nego. Nego foi rápido. Tirou a mão antes de ser mordido. E ainda brincou:
_ Eita! O bicho tá com uma fome danada! Que será que andou fazendo à noite.
E deu uma piscada para Dama.
Nesse mesmo dia, o velho China deu um jeito de ficar a sós com Lorde Kennedy. Disse que estava precisando de uns conselhos do amigo. Era uma coisa muito delicada o que tinha para resolver e não queria falar na frente dos outros.
Lorde Kennedy, sem desconfiar de nada, disse:
_ Vou dizer aos outros para darem um passeio até a Enseada. Vou dizer que não estou muito bem e que vou ficar. Aí você diz que vai ficar comigo.
Assim fizeram. Vina, Dama, Chumbinho e Alemão saíram em direção à Enseada. Assim que ficaram só os dois, China começou:
_ Meu amigo, tenho visto você muito nervoso. O que está acontecendo?
Lorde Kennedy estranhou:
_ Ué! Você não disse que precisava de um conselho? Por que essa conversa agora?
_ Calma, meu caro. Foi só uma desculpa para ficar a sós com você.
_ Não entendi!
_ Pois é, continuou o velho China, tenho muita experiência de vida. Você anda nervoso demais.
_ Ando nada! Não me enche!
_ Viu como tá nervoso. Eu sei o que é.
_ Não sabe de nada você!
_ Lorde Kennedy, fique calmo meu amigo. Se abra comigo. Está tendo problemas com a Dama, não é?
_ Você tá maluco!
_ Eu vi que ela está mais distante de você. O que aconteceu? Eu sou paciente. Não vou desistir enquanto você não se abrir comigo.
Vendo que não tinha jeito, Lorde Kennedy respondeu:
_ A Dama anda muito ciumenta. Eu não posso fazer nada que ela já fica emburrada.
O velho China não se conteve. Caiu na gargalhada e falou:
_ Eu sabia. Coisas do amor! Elas não são faceis.
_ Nao mesmo. Outro dia, só porque ajudei uma cadelinha a sair do mar, ela ficou tres dias sem falar comigo. Não posso olhar pra canto nenhum, que ela já desconfia.
_ Meu velho, vou lhe dar um conselho. Tenho mais experiência que você. É só ter um pouco de paciência. Elas passam por esses períodos de vez em quando. Basta ter paciência. Você vai ver!
_ Sei nao! Às vezes tenho vontade de ir atrás de minha antiga dona. Mas, não quero ficar longe de vocês.
_ Então, siga o meu conselho: quando ela ficar emburrada, finja que não percebeu. Se aproxime dela e faça um carinho, mais um, mais um e mais um. Logo ela vai esquecer a insegurança e perceber que você só interessa por ela.
_ Vou tentar, respondeu Lorde Kennedy.
Nesse momento, os dois ouviram o barulho dos outros chegando. Dama se dirigiu a Lorde Kennedy:
_ Está melhor?
_ Estou. Mas senti sua falta. Vem aqui pra eu lhe fazer um carinho.
Enquanto Dama se aproximava, o velho China piscou para Lorde Kennedy. E pensou em voz alta:
_ A vida é um jogo de paciência. Às vezes dá certo, às vezes não. Mas, não se pode desistir.
Os demais se entreolharam sem entender nada. Lorde Kennedy piscou para o amigo.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Uma jangada na Praia do Ervino

Lorde Kennedy foi o último a acordar naquela manhã. Isto fez com que os demais ficassem preocupados. Em geral, ele acordava logo depois do velho China que sempre era o primeiro. Dama foi a que falou primeiro:
_ O que aconteceu querido?
Desde que assistiram à Dama e o Vagabundo na Prainha, os dois passaram a ficar juntos. Lorde Kennedy respondeu:
_ Não dormi bem à noite. Tive um sonho estranho.
Alemão entrou na conversa:
_ Eu percebi. Você deu muitos grunhidos estranhos. Parecia estar sofrendo.
_ Estava mesmo. Era um pesadelo.
_ Conta pra nós, pediu Vina.
Mas, Lorde Kennedy não quis contar. Apenas disse:
_ Melhor esquecer esse pesadelo. Foi muito assustador. Nós todos acabamos mal nele. Vamos falar de coisa boa. Qual vai ser a aventura de hoje?
Dessa vez foi Chumbinho que entrou na conversa:
_ Ontem ouvi Nego comentando com a cozinheira que teria que ir à Praia do Ervino. Vamos com ele?
O velho China alertou:
_ Parece que ele está quase pronto pra sair.
Todos correram para a frente do Bar do Nego. Alemão os ajudou a entrarem na traseira da caminhonete do Nego.
Nisso Nego e a cozinheira chegaram à porta do bar. Ao ver a cena, ele sorriu e disse:
_ Vejam só. Parece que vou ter companhia.
Quando chegaram à Praia do Ervino, Nego estacionou a caminhonete em frente ao mar. Todos saltaram. Nego falou para a gangue:
_ Não vão para muito longe. Em uma hora estou de volta.
Lorde Kennedy e sua gangue partiram em disparada para a praia. No inverno, a praia estava deserta. Na areia viram uma  embarcação estranha. Muito diferente dos barcos que viam em São Francisco do Sul.
China, que já havia viajado o mundo, explicou para os demais:
_ É uma jangada. Uma embarcação muito comum no Nordeste do Brasil. Como será que veio parar aqui?
_ Vamos subir nela, sugeriu Vina.
_ Isso mesmo, se entusiasmou Chumbinho.
E Dama completou:
_ É. Vamos brincar que estamos em alto mar.
Enquanto estavam em cima da prancha, a maré começou a subir. De repente, com uma onda mais forte a jangada se pôs em movimento. E foi se afastando da praia. Os cães se assustaram. Alemão conseguiu pular e disse aos demais:
_ Vou atrás do Nego. Ele vai dar um jeito de tirar vocês daí. China nao deixe nenhum cair no mar.
Enquanto Alemão ia em direção aonde Nego tinha ido, o velho China ordenou:
_ Fiquem mais ao centro da jangada. Ela é muito segura. Não tenham medo.
A jangada tinha se afastado mais de 500 metros da praia. China estava com medo de que fossem para mar aberto. Mas, procurava não demonstrar sua apreensão para os demais. Olhando à frente enxergou um grupo de golfinhos brincando no mar. Ele falou para os outros:
_ Golfinhos. Vejam. Vou tentar atraí-los. Eles podem nos ajudar.
Começou a latir. Os demais o acompanharam. Dois golfinhos ouviram e se aproximaram. O primeiro disse:
_ O que está acontecendo?
Depois que China explicou o que lhes tinha acontecido, o segundo disse:
_ Tem duas cordas amarradas na frente da jangada. Nós podemos rebocá-los.
Lorde Kennedy entrou na conversa:
_ Poxa! Muita gentileza de vocês. Vão nos salvar.
Foi então que o outro golfinho disse:
_ Mas, antes de voltar à praia, que tal um passeio pelo mar. Podemos dar um giro e mostrar as ilhas da região para vocês.
Todos concordaram. Vina e Dama ficaram muito alegres. Cada golfinho prendeu a ponta de uma das cordas entre os dentes e nadaram.
O mar não estava muito agitado. A jangada singrava as águas e deixava um rastro de espuma branca. Passaram ao redor de três ilhas.
Depois de uma hora, quando os golfinhos estavam rebocando a jangada em direção à praia, eles viram Nego e Alemão sentados na areia. Os dois correram até a jangada e terminaram de arrastá-la para terra firme. Os golfinhos partiram rapidamente em direção ao seu grupo. Lorde Kennedy e sua gangue só tiveram tempo de acenar adeus. Tudo acabou bem.
Já acomodados na traseira da caminhonete, voltando para São Francisco do Sul, Lorde Kennedy disse:
_ Que aventura hein! Meu pesadelo essa noite foi no mar também. Mas, ainda bem que na vida real o final foi diferente.

domingo, 16 de junho de 2019

Memórias

A diferença surgiu quando ela terminou de narrar sua história. Ele disse:
_ Não foi bem assim, querida!
_ Como não? Ela respondeu.
_ Você tem mania de florear as coisas.
_ Você que é um insensível. Não consegue ver a beleza das coisas.
Ela terminara de contar como se conheceram e se apaixonaram 40 anos atrás. Antes que os ânimos se esquentassem, tentei trazer um novo assunto à baila:
_ Vocês viram o ultimo filme do Karim Aïnouz?
Depois de algum tempo, terminamos o nosso café. Eu os tinha encontrado no calçadão. Eram quase quatro horas da tarde. Há anos não nos víamos. Minha última separação havia nos distanciado. Algo mais comum, do  que você pode imaginar. Amigos do casal, sentiram-se constrangidos em manter a regularidade dos encontros semanais. Um sempre estaria de fora. Como na versão que prevaleceu eu era o culpado,se afastaram de mim.
Mas, não pense que carrego mágoas. Assim como as memórias, as versões diferem. Versões são memórias não comuns!
Os havia convidado para um café no Paço da Liberdade. Depois que partiram, resolvi tomar mais um café. Morando só, não tinha pressa em chegar em casa. Depois que consegui atrair a atenção do atendente, pedi:
_ Mais um machiatto e um pão de queijo por favor.
Me lembrou a fala de um personagem de um filme que assistira no último final de semana. Uma droga! Eu e essa minha mania de assistir cinema nacional. Vezenquando assisto cada porcaria! O filme me lembrara de um sonho antigo. Nunca compartilhado com nenhuma das mulheres que haviam passado por minha vida. Era meu modo de confirmar uma tese que havia deixado algumas delas enfurecidas. Eu costumava afirmar:
_ É impossível conhecer o outro completamente. Há sempre algo que guardamos só para nós. Esse segredo nunca será uma memória em comum!
A lembrança do filme me trouxe à memória a desavença entre o casal. Quase se estranharam por causa de memórias diversas sobre o mesmo fato. O que parecia ser uma memória em comum, mostrava-se diferente.
Até parece que é possível compartilharmos as mesmas memórias! Não acredito nisso.
Mas, um fio de memória arrasta outro fio de memória. Me lembrei de uma viagem. Estava casado.  Fizemos tudo juntos. Inseparáveis. Foi só um final de semana. Anos depois, relembrando, disse a ela:
_ Foram os momentos mais tristes de nossa história! Nunca fingi tanta alegria!
Para ela, ao contrário, foi uma viagem maravilhosa. Me perguntei:
_ Teria sido por minha companhia?
A resposta foi o silêncio e um sorriso discreto. Me dei conta que as memórias nem sempre são comuns. Elas podem ser não comuns.
Por isso, não estranhei a diferença na lembrança do casal. E, por isso, dei um jeito de evitar que os ânimos esquentassem. Não vale a pena!
Volto ao meu final de semana ainda casado. O incomum da memória é que eu lhe contava sobre como a leitura de Guimarães Rosa me lembrara outro livro que adquirira nessa viagem. Era um encadeamento de lembranças tão improvável que eu comentara:
_ Olha que memória incomum!
Se tornou mais incomum depois do silêncio dela! Pode rir. Fique à vontade. Eu não me importo.
O atendente chegou com o machiatto e o pão de queijo. Perguntou:
_ Mais alguma coisa?
Eu olhei para ele e perguntei:
_ Você teria um apagador ou uma borracha escolar?
Ele me olhou espantado e disse:
_ Sinto muito. Não temos.
Eu respondi:
_ Deixa pra lá. Eu nao ia conseguir apagar mesmo!
Tenho certeza que ele jamais se esquecerá desse pedido. Uma memória incomum.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Cinema na Prainha

Chumbinho foi o primeiro a notar a movimentação na Prainha. Ele e os demais integrantes da gangue tinham deixado Alemão na casa da Lola. As férias de verão estavam acabando e, em uma semana, Lola voltaria para Curitiba com seus tutores.
Alemão ia todo dia para lá. Lorde Kennedy e sua gangue o acompanhavam até o portão da casa. Depois iam passar o dia na Prainha ou na Praia Grande.  Ao final do dia, encontravam com Alemão e voltavam para o bar do Nego.
Pois então, nesse dia, Chumbinho foi o primeiro a virar a esquina da rua que dava para a Prainha. Ao lado do posto dos salva-vidas tinha uma enorme tela branca de pano. A tela estava esticada entre dois postes de madeira que tinham sido fixados entre a beirada da rua e a beirada da calçada que dava para o mar. E alguns humanos estavam lendo algo na parede do posto.
Assim que os demais chegaram à esquina, Chumbinho falou:
_ O que será aquilo ao lado do posto de salva-vidas? Parece que esticaram um grande lençol. Por que?
China, que era o mais viajado da gangue, respondeu:
_ Nossa! Parece uma tela de cinema. Vi algo assim uma vez no porto de Gênova. Foi quando o navio em que estava ficou ancorado uma semana para ser consertado. Em uma das noites passaram um filme que tinha uma cena de pescadores assistindo um filme projetado na parede de uma casa à beira do porto. Foi muito bonito!
Vina e Dama se animaram:
_ Será que vão passar algum filme? Dama perguntou.
_ Com certeza, disse Vina, toda empolgada.
Lorde Kennedy, que estava olhando em direção à tela, apontou:
_ Tem um cartaz pregado no posto dos salva-vidas. É todo colorido. O que será!
Antes que que um deles falasse algo, Chumbinho saiu em disparada enquanto dizia:
_ Vou lá ver.
Os outros foram atrás. Lá chegando, descobriram que era o cartaz de um filme. Na parte debaixo, estava escrito: Cinema ao ar livre. Hoje: A dama e o vagabundo. Na parte de cima tinha o desenho de dois cachorros - um macho e uma fêmea - chupando um longo fio de macarrão. Cada um em uma ponta. Kennedy piscou para Dama e disse:
_ O que acontecerá quando eles chegarem ao fim do macarrão.
_ Posso até imaginar, disse Vina.
E Dama arrematou:
_ Vamos ter que ver o filme para ter certeza.
Passaram o resto do dia na Prainha. Na hora de ir encontrar com Alemão, Lorde Kennedy disse:
_ Vamos ficar por aqui e esperar o filme. China, por favor, vai avisar o Alemão.
China foi. Lá contou para Alemão o que iam fazer. Alemão se animou e chamou Lola para ir junto. Aproveitaram que a dona de Lola estava distraída e foram todos.
Logo depois que escureceu, a calçada ao lado do posto de salva-vidas ficou lotada com humanos. Lorde Kennedy e sua gangue foram pra frente da multidão. Os humanos riram da gangue, mas não se importaram com a presença da platéia canina.
De repente, as luzes dos postes da rua foram desligadas. O filme começou a ser exibido. Na cena do macarrão, Lorde Kennedy e Dama se olharam. O velho China ficou observando os dois. E pensou consigo mesmo:
_ Esse filme ainda vai dar o que falar. Minhas amigas e amigos vão se inspirar.
O filme acabou. E os humanos viram os sete cães se afastarem. Eram três casais: Lola e Alemão; Chumbinho e Vina; Dama e Lorde Kennedy. Atrás deles ia o China com um sorriso nos lábios, mais uma vez dizendo para si mesmo:
_ Que romântico! Adoro a magia do cinema!

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Baby com Suellen

Houve uma vez que Lorde Kennedy resolveu voltar até a casa de onde tinha fugido. Lembrou-se da mãe do jovem professor e do último encontro. Queria vê-la de novo. Mas, por algum motivo não queria que os demais fossem com ele. Sua intuição lhe dizia que era uma aventura que deveria enfrentar sozinho.
Foi em uma segunda-feira, quando Nego estava se aprontando para ir ao centro de São Francisco do Sul com a gangue toda que surgiu a oportunidade. Kennedy falou para Alemão:
_ Hoje não vou com vocês.
O pastor estranhou. Perguntou:
_ Algum problema?
_ Não. Só preciso ficar um pouco só. Bateu una saudade dos humanos que me trouxeram para São Chico.
Alemão foi compreensivo:
_ Sei como é isso. Às vezes me bate aquela saudade da Lola. Também tenho vontade de me isolar.
Para não deixar os demais preocupados, Lorde Kennedy avisou a gangue:
_ Estou um pouco cansado. Não dormi bem. Vou ficar aqui.
Apesar de estranharem, todos embarcaram na caminhonete do Nego. Este deu a partida no motor. Enquanto, a caminhonete se afastava, Lorde Kennedy se pôs a caminho do bosque dos macacos. Foi uma caminhada de mais de meia hora. Lorde Kennedy chegou a Serendipity 3, mas estranhou um pouco a casa. Ficou em dúvida se era o mesmo lugar. Algo estava diferente. Mas, a placa com o nome da casa continuava lá. A cerca que havia sido trocada. Além disso, as plantas no jatdim eram muito mais numerosas.
Assim que teve certeza que estava no lugar certo, começou a latir. Imediatamente duas cadelas saíram em disparada dos fundos da casa. Uma da cor caramelo e outra preta. Pareciam agressivas. Latiam muito para Lorde Kennedy.
_ Calma meninas, disse Lorde Kennedy. Sou da paz.
Suellen, a mais brava e maior, rosnou e entre dentes ameaçou:
_ Não gostamos de estranhos! Se manda daqui!
Mas, por algum motivo, a menorzinha que tinha o pelo preto e meio encaracolado, foi mais simpática:
_ Que é isso Suellen? Parece que ele é do bem.
_ Baby, você sempre foi mais desconfiada que eu, disse a outra. Não se lembra do que já sofremos quando morávamos nas ruas. Esse cara tem jeito de malandro!
Lorde Kennedy insistiu;
_ Sou da paz. Já fiquei nessa casa um dia. A humana que mora aí me conhece.
Nesse momento, a irmã do namorado da mãe do jovem professor apareceu na porta da casa. Os latidos de Suellen e Baby tinham atraido sua atenção. Ela viu Lorde Kennedy do outro lado da cerca. Exclamou:
_ Kennedy! Você voltou?
Suellen e Baby se viraram para ela. A irmã do namorado da mãe do jovem professor continuou:
_ Baby! Suellen! Parem de latir. Ele é conhecido.
Foi em direção à cerca e abriu o portão para Kennedy entrar. Suellen ainda estava desconfiada. Baby foi mais hospitaleira. Disse para Kennedy:
_ Parece que você está com sede.
_ Estou mesmo. Vim de longe.
_ Então vem aqui beber água.
Depois que Lorde Kennedy saciou a sede, Baby perguntou:
_ Qual é sua história?
Nesse momento, Suellen que parecia mais calma, também perguntou:
_ Quando você esteve aqui? E continuou.
_ Por que voltou hoje?
Lorde Kennedy contou sua história para Baby e Suellen. Falou da mãe do jovem professor e de seu namorado. De como havia fugido para conhecer o mar. Falou de sua gangue. De suas aventuras. Do bar do Nego. Do reencontro com a mãe do jovem professor. Nesse momento, seus olhos umedeceram. Suellen percebeu e ficou quieta, mas Baby foi mais indiscreta:
_ Por que as lágrimas?
Lorde Kennedy respondeu:
_ Me bateu uma saudade dela! Tinha esperança que ela estivesse aqui.
As duas foram carinhosas com Lorde Kennedy. Suellen disse:
_ Passe o dia conosco.
Baby reforçou:
_ Isso mesmo! Depois que comermos, podemos dar um giro pelo bairro.
E foi assim que Lorde Kennedy conheceu Baby e Suellen. No final do dia, as duas foram com ele até a praia de Ubatuba. Lá se despediram. Quando Lorde Kennedy chegou ao bar do Nego, os demais ficaram aliviados. Estavam preocupados com o sumiço de Lorde Kennedy. Mas, este tranquilizou a todos:
_ Hoje conheci Baby com Suellen. Qualquer dia vocês vão na casa delas comigo. É a casa da irmã do namorado da mãe do jovem professor. Quem sabe vocês me ajudam a fazê-las se juntar a nossa gangue

sábado, 6 de abril de 2019

Quebra-cabeças

Uma música ambiente. Estrangeira. Romântica. Em inglês. Estou em Londrina. Visito minha mãe. Já não me reconhece. Vegeta. Quarenta e cinco quilos. Não gosto de vê-la assim. A visão não faz juz à memória da vida dela. Aguardo a partida dela. Queria que fosse breve. Mas, é uma escolha que foge a meu domínio. Tive oportunidade. Faltou coragem!
Uma musica ambiente. Brasileira. Romântica também. Continuo em Londrina. Muda o contexto. Em um sebo, encontro Fragmentos. Livro de bolso com oito histórias e um conto de Caio Fernando Abreu. Com ele aprendi a palavra vezenquando. Vezenquando a uso. O título me remete à vida. Fragmentada. Tento juntar as peças. Um quebra-cabeças. A cronologia não importa. Vezenquando gosto do que vejo. Vezenquando não.
Uma música ambiente. Estrangeira. Alegre. Em inglês. Mais um fragmento. Mais uma peca do quebra-cabeças. Muda o contexto. Esse quebra-cabeças interminável. Quando a gente pensa que montou, surge outra peça.
Vezenquando quero jogar alguma peça fora. Tento. Se perde na memória. Vezenquando ela reaparece. Preenche o buraco. Jogo outra fora.
Não gosto de ver o quebra-cabeças completo. Superstição. Quando ele ficar completo será o momento da partida.
Outra música ambiente termina.  Pedestres passam pela calçada. Apressados alguns. Outros não. Uma mulher saúda outra com um namastê. A outra ignora. Eu termino o texto. O quebra-cabeças não! Onde encaixo esta nova peça?

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O circo

Fazia tempo que Lorde Kennedy e sua gangue não tinham nenhuma grande aventura. Desde o episódio do leão marinho em Paulas, a vida seguia sossegada para os cães.
Passeavam pela orla de Enseada. Uma vez ou outra iam mais longe: na Prainha ou Itaguaçu. Sempre pela manhã. Voltavam para o bar do Nego no começo da tarde. As latas de comida sempre abastecidas. Era uma vida tranquila!
Durante as tardes, todos dormiam. Por volta das seis horas, davam um giro pelas redondezas do bairro. Quando Nego cerrava as portas do bar, a gangue já estava recolhida no quintal. Alemão era o que sempre ficava mais atento. Exercia naturalmente seus dons de cão de guarda. Mas, até para os humanos aquela região era muito pacata. Nada de violência. Felizmente.
Vezenquando, tinha alguma agitação na madrugada. Alguns gambás apareciam sobre o muro e as árvores ao fundo do quintal. Alemão latia e rosnava muito para os gambás. No entanto, não tinha intenção de ferí-los. Queria só manter os bichos longe do quintal e do bar do Nego. Exalavam um cheiro forte que irritava Alemão.
Nas manhãs seguintes às aparições dos gambás, os outros se divertiam às custas do Alemão.
_ E aí gente boa, seus amiguinhos apareceram ontem?
Chumbinho perguntava quase que gargalhando. E Vina emendava:
_ Você estava agitado essa noite grandalhão. O que houve?
Lorde Kennedy, Dama e China ficavam só se divertindo com as palhaçadas de Chumbinho e Vina. Até que Alemão explodia:
_ Da próxima vez, vou deixar os gambás entrarem e mexerem nas suas latas de comida! Quero ver se vocês vão gostar.
Porém, todos sabiam que Alemão jamais deixaria isto acontecer. E, Lorde Kennedy apaziguava o clima dizendo:
_ Onde vai ser nossa aventura hoje? Vamos pra rua.
Da ultima vez que isso aconteceu, tinha chegado um circo em São Francisco do Sul. Nenhum deles jamais tinha ido ao circo. Era um domingo. Ia ter apresentação do circo de tarde. Assim, naquela manhã Lorde Kennedy sugeriu:
_ Podiamos ficar aqui hoje de manhã e à tarde ir até o circo que está na praia de Enseada.
Todos concordaram. Nego estranhou que a gangue ficou no quintal a manhã toda. Falou pra si mesmo:
_ Ih! Aí tem! Quando esse bando nao sai de casa de manhã, estão preparando alguma.
Quando deu a hora de ir, China foi o primeiro a sair pelo portão. Logo todos vieram atrás. Em vinte minutos estavam em frente ao circo. Só tinha uma entrada. Eles sabiam que não poderiam entrar. Mas, como sempre, em toda estória há um mas...
Chumbinho deu uma volta pelo circo e descobriu um buraco na lona do circo Voltou animado:
_ Ei turma, daquele lado tem um buraco. A gente consegue entrar por baixo.
Lorde Kennedy sugeriu:
_ Vamos esperar todos os humanos entrarem. Depois damos a volta e tentamos entrar. Agora pode ser que nos vejam e não deixem.
Depois que os humanos entraram, os cães ouviram o som de música. Parecia uma banda. Dama e Vina falaram ao mesmo tempo:
_ Está começando.
_ Vamos lá.
E partiram correndo em direção ao buraco descoberto por Chumbinho. Depois que entraram, ficaram embaixo das arquibancadas. Viram os palhaços desfilando no picadeiro enquanto a banda tocava. Em seguida, um dos humanos usando uma cartola toda colorida anunciou:
_ Agora a primeira atração de nosso circo. Ludmila e seus cãezinhos malabaristas.
Para surpresa de Lorde Kennedy e sua gangue, eles viram entrar uma mulher alta, magra e vestida de bailarina com um chicote na mão. Atrás delas, vieram cinco cãezinhos beagle. Todos marrom e branco. A mulher estralou o chicote e os cãezinhos começaram a se equilibrar em cima de bolas grandes e coloridas e giravam pelo picadeiro.
Nesse momento, os seis cães se olharam e Alemão disse:
_ Que mulher malvada! Temos que salvar aqueles beagles.
Assim que falou, correu para o picadeiro. Os outros foram atrás. Alemão rosnava para Ludmila. O público achou que aquilo era parte do show. Aplaudiu. China falou para os beagles:
_ Vocês não querem fugir? Mas, eles não responderam.
Nisso, os palhaços entraram com baldes com água e tentaram espantar Lorde Kennedy e sua gangue. Assustados, os beagles correram para os fundos do circo. Alemão e os demais não entenderam. E fugiram dos palhaços e seus baldes.
A história saiu nos jornais. Ficou conhecida como "O dia que cães tentaram resgatar beagles do circo". Lorde Kennedy e sua gangue ficaram frustrados por não terem sido bem sucedidos. Mas, Nego mais uma vez ficou orgulhoso deles. Nego sempre achou que animais não deviam ser exibidos em circos.

sábado, 26 de janeiro de 2019

O leão marinho em Paulas

Uma das aventuras inesquecíveis para Lorde Kennedy e sua gangue aconteceu quando foram às praias de Paulas. Foi em uma segunda-feira, dia em que Nego ia ao centro histórico de São Francisco cuidar de seus negócios. Vezenquando, Nego aproveitava e passava em Paulas para comprar peixes, camarões, lulas e mariscos para seu bar. As praias de Paulas têm muitos humanos que vivem desse ofício em São Francisco do Sul.
Depos daquela vez que a gangue toda se encondeu sob a lona da carroceria da velha caminhonete do Nego, os passeios de segunda se tornaram frequentes para Lorde Kennedy e sua gangue. Nego fingia que ficava bravo, mas, na verdade, ficava feliz com a companhia dos seis cães. Quando estacionava na praça da igreja em São Francisco do Sul, a criançada do centro corria para ver e brincar com Lorde Kennedy e sua gangue. Era uma festa!
Pois então, naquele dia, depois que voltou do banco, Nego assobiou para a cachorrada que estava se divertindo com as crianças. Todos correram em direção a caminhonete. Cachorros e crianças. Depois que Lorde Kennedy e sua gangue estavam alojados na carroceria, Nego deu partida e foi em direção ao balneário de Paulas. A criançada ainda correu atrás da caminhonete, enquanto Nego contornava a praça.
Nego estacionou em frente à comunidade dos pescadores e partiu em busca de suas mercadorias. Enquanto isso, os cães desceram da caminhonete e foram em direção à areia. Alemão foi o primeiro a observar a agitação em um dos cantos da praia. Um monte de gente fazendo um círculo. Parecia que havia algo estranho na praia. Ele chamou a atenção dos demais:
_ Olha quantos humanos lá no canto!
_ O que será? Vina perguntou.
_ Vamos até lá, sugeiru Dama.
Lorde Kennedy concordou. Assim, eles foram e em dez minutos chegaram ao canto da praia. Passaram entre as pernas dos humanos. No centro do círculo tinha um animal desconhecido para quase todos. Grande. Pelo meio amarronzado, com dois grandes dentes que se alongavam para fora da boca. Pontiagudos. Chumbinho exclamou:
_ Nossa! Que bicho estranho!
_ O que será? Foi a vez de Alemão perguntar.
China, era o único que conhecia o leões marinhos. Explicou para a gangue:
_ É um leão marinho. Deve estar perdido aqui em São Francisco do Sul. Vi muitos nos mares gelados quando estava embarcado no navio que me trouxe para cá. O que será que aconteceu.?
Nesse momento, Lorde Kennedy comentou:
_ Ele parece estressado. Está um pouco agitado.
E Vina completou:
_ Deve ser por causa desses humanos todos em volta dele. O que podemos fazer?
China falou:
_ Sim, leões marinhos não estão acostumados com os humanos. Vamos ajudar ele a voltar para o mar.
Foi então que Lorde Kennedy e sua gangue resolveram entrar em ação. Mais uma vez, iam ajudar um animal marinho a voltar para a água. Assim como aconteceu com a arraia na praia do Forte. Só que dessa vez o bicho era imenso! Como fazer? Foi de Alemão a ideia:
_ Já sei, vamos dar um jeito de afastar os humanos do leão marinho. A gente começa a rosnar e latir para eles e vamos fazendo um corredor para que o leão marinho possa se arrastar até as águas do mar.
_ Isso mesmo! Chumbinho e China concordaram ao mesmo tempo.
A gangue se dividiu em dois grupos: Alemão, Chumbinho e Vina à direita; China, Dama e Lorde Kennedy do outro lado. Se puseram a latir, rosnar e arreganhar os dentes em direção aos humanos. Estes se assustaram e recuaram um pouco.
O leão marinho, a princípio, também se assustou com os cães. Mas, de repente percebeu o que estava acontecendo. Uma brecha entre os humanos estava se formando e o caminho para o mar se abria. Ele emitiu um som muito parecido com o dos cães e começou a se arrastar para o mar. Enquanto isso, Lorde Kennedy e sua gangue mantinham os humanos afastados. Assim como a arraia na praia do Forte, o leão marinho quando alcançou o mar se virou para os cães e inclinou a cabeça antes de mergulhar. Era um agradecimento especial a Lorde Kennedy e sua gangue. Parece que os animais marinhos são muito educados!
Nesse momento, Nego estava chegando próximo ao tumulto no canto da praia. Um pescador que conhecia Nego contou o que os seus cães tinham feito. Nego ficou orgulhoso e assobiou para a gangue e disse:
_ Hora de voltar para casa. Hoje vai ter rango especial para vocês. Belo trabalho!

sábado, 19 de janeiro de 2019

O cachorrinho da madame

Tinha uma praia em São Francisco do Sul que Lorde Kennedy e sua gangue não tinham ido ainda: a praia do Molhe. Ela fica em uma das pontas da Enseada. Para acessá-la é preciso passar por uma trilha ao pé do morro onde fica o mirante.
Em uma manhã de céu azul, com poucas nuvens e muito sol, Lorde Kennedy sugeriu irem para lá. Alemão, que ia em direção à Prainha encontrar-se com Lola, disse:
_ Posso ir com vocês. Fico um pouco e depois vou pra Prainha. Tô com saudades de minha Lola.
E lá se foram todos. Lorde Kennedy e Dama à frente, Chumbinho e Vina logo atrás. Na retaguarda, China e Alemão. Caminhavam pelas sombras. O sol estava surgindo forte naquela manhã.
Cruzaram a ponte da Enseada, e seguiram pela avenida à beira-mar. No meio do caminho, ao lado do posto, pararam para descansar sob as árvores. Um pouco antes, no bar do Monteiro, um dos garçons lhes tinha dado água.
Depois de quinze minutos retomaram a caminhada. Quando estavam passando em frente ao hotel Fragata, China e Chumbinho viram um poodle branco todo tosado descendo de um carro preto enorme. À frente dele, ia uma mulher alta, de chapéu de abas largas e vestido branco. O chapéu era da mesma cor dos sapatos. Vermelho e branco. Atrás da mulher, um homem carregava suas malas. Chumbinho deu uns latidos que chamaram a atenção do poodle.
A mulher, distraida, nem notou que o poodle foi em direção ao grupo de cães. Assim que se encontraram, na calçada, Chumbinho falou:
_ Vindo de onde, meu chapa?
_ De Florianópolis. E vocês?
_ Nós vivemos aqui, respondeu Dama.
_ Estamos indo à praia do Molhe. Quer vir com a gente? Vina perguntou.
Chumbinho ficou um pouco enciumado e disse:
_ Acho que ele não vai querer. É um cachorrinho de madame!
_ Deixa de ser mal educado Chumbinho, falou Lorde Kennedy. E completou:
_ Qual é seu nome companheiro?
_ Eu sou o Silvain. Minha tutora me deu ese nome francês. Mas, morro de vergonha. Pode me chamar de Sil.
Assim que terminou de falar, Silvain olhou para trás. A mulher estava ocupada na recepção do hotel. Ainda não tinha visto que ele estava lá fora. Alemão percebeu tudo e disse:
_ Vamos agora gente boa! Depois a gente lhe traz de volta.
Foi então que todos sairam em disparada. Quando lá chegaram, Alemão deixou a gangue e partiu em direção à Prainha. Passaram o resto da manhã na praia do Molhe. Subiram até o mirante. Nadaram nas águas transparentes do mar. Se divertiram com as peripécias de um velho surfista que era o único humano por perto de onde estavam.
Mas, depois de muito tempo, China percebeu o ar de preocupação de Silvain. Comentou com Lorde Kennedy:
_ Acho que está na hora de irmos. Nosso amigo Sil parece preocupado.
Lorde Kennedy concordou. Chamou todos e disse:
_ Vamos embora turma. A madame deve estar preocupada.
Quando chegaram de volta ao hotel, viram a cena armada. A madame toda descabelada estava aos prantos, rodeada pela equipe do hotel que tentava consolá-la. Silvain correu até ela e pulou em seu colo. Olhou para trás e deu uma piscada para os novos amigos. Estava grato pelo passeio, mas era um cachorrinho de madame. Morto de fome queria comer sua ração especial.
E, por falar em fome, Lorde Kennedy e sua gangue também estavam famintos. Foram ligeiros para o bar do Nego. Lá os esperava a latinha de cada um com as delícias que só a cozinheira do bar sabia fazer para eles.

domingo, 13 de janeiro de 2019

A tempestade

Depois que Bóris partiu, Lorde Kennedy e sua gangue passaram por um período de tristeza profunda. O velho buldogue tinha ocupado um espaço grande no coração de todos.
Vina, em especial, era a que mais sentia sua falta. Afinal, fora ele que a resgatara quando ela caíra nas pedras do morro da Prainha. A cachorrinha desenvolvera um afeto muito especial por Bóris.
Mas, como tudo na vida, com a passagem do tempo a dor da tristeza foi diminuindo e foi substituída por uma saudade que doía vezenquando. Na maior parte do tempo, contudo, eles se lembravam com alegria das histórias que o velho soldado gostava de contar.
Foi assim que, naquele domingo chuvoso Chumbinho começou a relembrar:
_ Esta manhã chuvosa me fez lembrar da história da tempestade que Bóris nos contou, vocês se lembram?
Alemão confirmou:
_ Você tem razão Chumbinho. Essas nuvens negras no céu parecem que estão ameaçando uma tempestade parecida com a da história contada pelo Bóris.
O velho China, que estava quieto em seu canto, entrou na conversa:
_ Eu não conheço esta história! Acho que ainda não fazia parte da gangue quando meu saudoso amigo a narrou.
_ Você, realmente, ainda não estava conosco, disse Lorde Kennedy.
_ Então, me contem. Fiquei curioso.
Alemão arrematou:
_ Dama conta pra ele. Você é a melhor contadora de histórias que conheço.
E Dama começou:
_ Esta história é do tempo que Bóris estava no batalhão de salva-vidas. Foi uns dez anos atrás. A história ficou conhecida como a grande tempestade de São Chico.
Nesse momento, as águas despencaram dos céus. A gangue correu para baixo do teto da lavanderia da casa do Nego que ficava aos fundos do bar. Dama continuou:
_ Como dizia Bóris, naquele dia São Pedro tinha passado a noite arrastando os móveis. Depois, bem cedinho começou a lavar os céus com muita água. Era tanta água que comecou a inundar as ruas de Ubatuba e Enseada.
_ Bóris adorava dizer que São Pedro arrastava os móveis quando ouvia trovões, lembrou Lorde Kennedy.
E Vina ajuntou:
_ E quando comecava a chuva ele dizia que São Pedro tinha aberto as torneiras do céu.
Todos riram com um pouco de nostalgia. O velho Bóris estava no coração de cada um deles.
_ Mas, e daí? O que aconteceu? Perguntou China.
E Dama continuou a narrativa:
A tempestade tinha sido tão volumosa que as ruas ficaram inundadas. As águas subiram até um metro e meio e invadiram muitas casas.
Em uma delas, tinha ficado um bebê sozinho. O pai e a mãe, que eram muito pobres, tinham saido para trabalhar. O bebê tinha um ano de idade. Estava dormindo em seu berço. A vizinha que cuidava dele ainda não tinha chegado. As águas arrombaram a porta do casebre da família. O bercinho do bebê flutuou e saiu pela porta com o refluxo das águas.
Bóris estava ajudando no resgate das vítimas da enchente. Capitão Netuno e outro salva-vidas remavam o bote do batalhão. Bóris ia na proa atento. Estavam perto da ponte que liga Ubatuba e Enseada quando ouviram o choro do bebê. Bóris foi o primeiro a avistar o berço que já se aproximava da beirada da ponte. Mar, rio e enxurrada já tinham se misturado naquele ponto. Bóris não titubeou. Pulou e foi nadando em direção ao berço. Nadou rápido. Agarrou uma das alças do berço com as mandibulas. E comecou a retornar ao bote. Capitão Netuno e seu companheiro içaram o berço a bordo. Surpresos e felizes ao mesmo tempo, recompensaram Bóris com afagos e tapinhas no lombo do buldogue. A história saiu em todos os jornais. Os pais  do bebê ficaram muito gratos a Bóris.
Na casa do bebê tinha um cachorro que fugira de medo no dia da enchente. Era o Caliban. Além de muito feio e medroso, era ardiloso. Cego de um olho, tinha a cabeça lisa com um pelo cinza, manchado de vermelho. Depois que a familia voltou, Caliban reapareceu.
Uma vez por mês levavam Bóris para a casa deles e faziam uma festa. Nesses dias, Caliban tentava intrigar Boris com os pais do bebê. Fazia alguma arte e se escondia. Tentava por a culpa em Boris. Mas, os pais do bebê não se iludiam. Confiavam em Boris. Isto durou seis anos. Quando o bebê completou sete anos, a família mudou-se para Curitiba
_ Era assim que Bóris contava a história da tempestade, arrematou Dama.
_ É uma historia bonita. Digna de nosso velho e saudoso amigo, concluiu China.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

A partida de Bóris

O inverno em São Francisco do Sul estava mais intenso do que nos anos anteriores. Nego tinha feito uma fogueira no centro do quintal aos fundos do bar naquela noite. Os sete cães dormiram ao redor dela. De manhã só restara uma fumacinha azul subindo do meio das cinzas. O calor do fogo estava se extinguindo.
Enquanto todos se espreguiçavam, Bóris só deu uma breve erguida na cabeça. Olhou para China e Chumbinho que estavam à sua frente, do outro lado do que restara da fogueira. Cerrou os olhos e abaixou a cabeça, apoiando-a nas duas patas dianteiras cruzadas.
Nenhum dos cachorros da gangue percebeu, exceto Dama que dormira ao lado de Lorde Kennedy. Esta falou pra ele:
_ Tem alguma coisa errada com o Bóris.
Lorde Kennedy olhou para o velho buldogue e mexeu com ele:
_ E aí soldado Bóris, não vai acordar?
Bóris não respondeu. Lorde Kennedy insistiu:
_ Daqui a pouco vamos dar um passeio. Você não vem?
De novo, nada de resposta. Alemão e Vina se aproximaram de Bóris. O buldogue continuava de olhos cerrados. Uma leve cutucada de Vina na barriga de Bóris não o despertou. Nesse momento, Lorde Kennedy olhou para China, que na sua sabedoria, já se tinha dado conta do que acontecera. Com uma lágrima escapando pelo canto do olho direito falou:
_ O velho soldado não está mais entre nós, Lorde Kennedy.
Nesse momento, Nego saiu pela porta dos fundos do bar e chegou com a comida matinal da gangue. Viu os seis em volta de Bóris. Ouviu o ganido triste de Dama e Vina. Enxergou Bóris na mesma posição. Corpo esticado e a cabeça repousando sobre as duas patas dianteiras cruzadas. A direita sobre a esquerda.
Nego percebeu o que tinha acontecido. Embora não tivesse certeza de que os outros cachorros o entendessem, falou como se conversasse com eles:
_ Vou buscar um caixote para acomodar Bóris. Depois vamos levá-lo para algum lugar. E entrou para dentro do bar.
Logo depois retornou com um caixotinho de madeira. Colocou Bóris dentro. E o carregou para a caminhonete. Depois que o acomodou na traseira, viu que os demais estavam ao lado da caminhonete. Se deu conta que Lorde Kennedy e sua gangue queriam se despedir do velho buldogue. Continuou como se conversasse com eles:
_ Vocês querem ir, né? Podem subir. Hoje ninguém precisa se esconder embaixo da lona.
Assim, com todos a bordo, Nego entrou na caminhonete e ligou o motor. Lembrou-se do amigo Capitão Netuno, do corpo de salva-vidas. Falou para si mesmo:
_ Acho que meu amigo Netuno gostaria de se despedir do velho Bóris.
Colocou a primeira marcha e partiu em direção ao quartel. No inverno não havia muitos salva-vidas na cidade, só quatro que eram permanentes. A maioria era voluntário. Quando chegou ao quartel, viu Netuno com os quatro soldados fazendo exercícios. Desceu e contou ao Capitão Netuno o que tinha acontecido.
Foi assim que, em uma manhã fria de inverno, o velho Bóris foi enterrado no jardim do quartel dos salva-vidas com as honras de um soldado que cumprira com sua missão. Vezenquando, Lorde Kennedy e sua gangue fazem uma visita ao jardim e lembram do dia em que Bóris comandou o resgate de Vina das pedras do morro da Prainha.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O passeio ao porto


Em um domingo, a gangue do Lorde Kennedy estava na praia de Ubatuba quase no final da tarde. Quando estavam se preparando para irem embora, China viu um navio cargueiro se deslocando em direção ao Porto de São Francisco do Sul, e disse:
_ Aquele navio se parece com o que eu vim para cá. Será que não podemos ir ao porto checar?
Alemão, percebeu o olhar tristonho do velho pequinês e respondeu:
_ Amanhã é segunda-feira, dia que o Nego vai para a cidade depositar dinheiro no banco. Quando ele estiver se arrumando, nós dois subimos na carroceria da caminhonete. E continuou:
_ Lá chegando, a gente dá uma corrida até o porto e vemos se é o seu navio.
Imediatamente, Dama falou:
_ Eu também quero ir. Vamos todos, Lorde Kennedy?
Lorde Kennedy nem conseguiu responder, os outros três – Bóris, Vina e  Chumbinho – falaram em coro:
_ Vamos sim! Sim, sim, sim...
Lorde Kennedy teve que concordar. Lembrou-se que fazia tempo que havia pensado em fazer um passeio ao porto. Mas, expressou uma dúvida:
_ Será que o Nego vai deixar a gangue toda subir na caminhonete?
Alemão respondeu:
_ Fica tranqüilo! Há uma parte da caminhonete que vive coberta com uma lona. Vocês se escondem embaixo dela.
Assim, decididos, Lorde Kennedy e sua gangue foram embora da praia de Ubatuba. Quando chegaram ao Bar do Nego, a comida já estava posta nas latas de cada um. Fartaram-se de comer e dormiram.
No dia seguinte, enquanto Nego tomava banho, Alemão ajudou todos a subirem na caminhonete e se esconderem embaixo da lona. Só ele ficou à vista, no lugar de costume. Nego saiu do bar, e se dirigiu à caminhonete e falou pro Alemão:
_ Já a postos, meu velho? Onde está o resto da gangue?
Alemão deu uns latidos e Nego entrou na caminhonete. Deu partida no motor. Estranhou não ter visto os outros cães nos fundos do bar, e partiu em direção ao centro histórico.
Depois de uns dez minutos, Nego olhou pelo retrovisor e levou um susto. Viu a gangue toda na traseira da caminhonete. Mas, já era tarde. Não quis voltar para fazer com que todos descessem. Assim, lá foram Lorde Kennedy e sua gangue fazer um passeio ao porto. Enquanto isso, apreciavam a paisagem da estrada.
Enquanto Nego foi ao banco, Alemão ajudou os demais a descerem da caminhonete e foram em direção ao porto. O velho China estava certo. O navio que avistara da praia de Ubatuba era o cargueiro em que trabalhava seu tutor.
Ao mesmo tempo em que os cachorros chegavam até próximo ao navio, o marinheiro que cuidava de China a bordo estava descendo para o porto. Estava de folga naquele dia. China correu até ele e os dois fizeram a maior festa. O marinheiro quis levar China para bordo, mas este resistiu. Não quis ir de jeito nenhum. Já tinha matado as saudades de seu tutor. Além disso, a vida na gangue de Lorde Kennedy era muito mais divertida do que a bordo de um cargueiro.
Alemão avisou:
_ Vamos voltar. Nego já deve estar terminando o que faz na cidade.
Partiram em disparada para a praça da prefeitura, lugar onde Nego sempre estacionava a caminhonete. China fez mais um afago no marinheiro e correu atrás da turma. Ao marinheiro só restou ficar acenando para China. Depois foi em direção ao bar em que encontrava sua amiga brasileira. Como quase todo marinheiro, sempre tinha uma amiga em cada porto.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O reencontro

Depois que China entrou para o grupo, a gangue de Lorde Kennedy comecou a ficar conhecida nas praias de São Francisco do Sul. Os sete cães estavam sempre pelas praias de Enseada, Ubatuba e Itaguaçu. Vezenquando, se aventuravam até a Prainha. Especialmente quando Alemão ia se encontrar com Lola.
Mas, não era só a gangue de Lorde Kennedy que estava ficando famosa. O bar do Nego também estava ganhando fama entre os locais e os turistas de final de semana. Além da polenta com rabada das quintas-feiras, aos sábados o Nego tinha colocado no cardápio um prato que fazia o maior sucesso: Camarão na Moranga. Fazia fila na porta do bar do Nego. Ele começava a servir às onze e meia e os ultimos clientes saíam do bar por volta das quatro horas da tarde. Enquanto esperavam na fila, os humanos se admiravam com os sete cães que viviam nos fundos do bar. Alguns reconheciam Lorde Kennedy e sua gangue quando estavam na praia.
Quase um ano tinha se passado, desde que Lorde Kennedy havia fugido da casa da irmã do namorado da mãe do jovem professor. A vida andava sossegada para a gangue. Há mais de um mês tinham tido uma escaramuça com o bando de Brutus. Foi na praia da Enseada, quase ao final, não muito longe do morro do mirante.
Lorde Kennedy e sua gangue estavam esperando para ver o por do sol, quando foram surpreendidos por Brutus, Zarolho, Pedroca e mais dois cães que nunca tinham visto. Brutus ainda não desistira de se vingar de Lorde Kennedy. Mas, por sorte Alemão estava atento e a gangue tinha o reforço do velho China. Era um mestre das artes marciais! Apesar da barulheira dos latidos e ranger de dentes, Brutus e seu bando fugiram com os rabos no meio das pernas. Lorde Kennedy e sua gangue foram vitoriosos.
Certo dia, a mãe do jovem professor e o namorado da mãe do jovem professor estavam de volta a São Francisco do Sul. A irmã do namorado da mãe do jovem professor comentou sobre o bar do Nego e o camarão na moranga. Um dos pratos preferidos do namorado da mãe do jovem professor. Decidiram ir lá no dia seguinte. Um sábado.
Lá chegaram por volta da uma da tarde. A fila de espera estava grande. Entraram na fila e de repente ouviram os latidos de Lorde Kennedy e sua gangue. Atraídos pelo barulho, a mãe do jovem professor e o namorado da mãe do jovem professor foram ver os cachorros. Lorde Kennedy viu os dois primeiro. Correu até eles e fez a mesma festa que fazia quando moravam juntos. Mas, quando a mãe do jovem professor quis pegá-lo no colo, ele recuou. Ela entendeu.
Nesse momento, de dentro do bar gritaram o nome da irmã do namorado da mãe do jovem professor. A mesa deles estava livre. Tiveram que entrar para comer. Ao final do almoço, os três foram até os fundos do bar do Nego. Se despediram de Lorde Kennedy. Sempre que voltam a São Francisco do Sul, têm uma parada obrigatória no bar do Nego para ver Lorde Kennedy e comer camarão na moranga. A vida e as aventuras de Lorde Kennedy e sua gangue agora fazem parte da história de São Francisco do Sul.

A chegada do China

Às segundas-feiras, Nego ia sempre ao centro histórico de São Francisco do Sul. O bar não abria e Nego aproveitava para ir ao banco depositar o faturamento da semana. ia com sua velha caminhonete. Alemão subia na traseira e não havia quem conseguisse tirá-lo de lá.
Certa vez, enquanto Nego estava dentro da agência bancaria, Alemão viu um velho pequinês na praça da prefeitura. Saltou da carroceria da caminhonete e puxou conversa:
_ Olá gente boa. Nunca te vi por aqui.
A princípio o velho pequinês ficou assustado. O porte do Alemão era impressionante, embora não parecesse agressivo. Ele foi monossilábico e formal na resposta:
_ Bom dia.
Mas, Alemão não se importou e continuou:
_ Sou o Alemão. Vim com meu tutor para o centro. E você?
_ China. Me chamam por China.
_ Como veio parar aqui?
_ Vim em um navio. Meu tutor é marinheiro. Desci com ele ontem. Mas, me perdi.
_ Ih, companheiro! Como foi isso?
_ Então, meu tutor ficou bebendo e dançando em um bar perto do porto. Coisa de marinheiro! Eu resolvi passear e não consegui encontrar o caminho de volta. Era de noite e muito escuro. Fiquei por aqui.
Alemão, então, completou:
_ Se quiser posso ir com você até o porto. Sei o caminho. Meu tutor vai demorar ainda no banco.
China, mais tranquilo, agradeceu:
_ Meu chapa fico muito grato. Aceito sua oferta.
Os dois partiram em direção ao porto. Alemão à frente, seguido pelo velho pequinês. Quando lá chegaram, uma surpresa: o navio do China não estava mais atracado no porto.
China, muito preocupado, falou:
_ E agora? Como vou viver nessa cidade? Primeira vez que vim para cá. Que tragédia!
_ Fica frio, meu chapa. A gente dá um jeito. Vem comigo.
Alemão levou o China de volta até a praça da prefeitura. A caminhonete do Nego ainda estava no mesmo lugar. Ele saltou na traseira e ajudou o China a subir. Depois que se acomodaram, falou:
_ Você vai fazer parte da gangue do Lorde Kennedy. Éramos seis. Agora seremos sete.
Nesse momento, Nego chegou e viu a novidade na traseira da caminhonete. Deu uma risada e falou pra si mesmo:
_ Se meu bar fracassar, vou abrir um canil.
De volta ao bar do Nego, Alemão apresentou China para Lorde Kennedy e os demais. Mais tarde, Nego trouxe a comida de todos. E uma latinha adicional para China. Depois da comida, Lorde Kennedy contou a China como a gangue se formara. E, também, sobre a turma de Brutus, Zarolho e Pedroca que andavam aprontando na região da praia de Ubatuba.