domingo, 23 de agosto de 2020

Lembranças de Ananisa e Arlindo

 Aos irmãos e primos que compartilham comigo a descendência de Ananisa e Arlindo

Na casa de minha avó materna tinha um fogão a lenha. Tinha também, no quintal, algumas árvores frutíferas. Lembro-me da mangueira, do abacateiro e da gabirobeira. Talvez, a memória me engane. Das três árvores, a única certeza é a última. Porém, ao menos uma das outras existiu naquele quintal. Meu avô usava uma vareta comprida com uma lata amarrada em uma das pontas para pegar as frutas no alto das árvores. Seriam mangas? Abacates? Ambas as frutas? 

Na casa tinha também uma varanda com vermelhão. Gostava, quando criança, de me deitar sem camisa naquela varanda. O frescor do piso de vermelhão contrastava com o calor do verão londrinense. Era uma sensação na pele que me confortava. 

Eles vieram para Londrina em 1940. Tiveram uma pensão na rua Minas Gerais, quase esquina com a Sergipe. No centro de Londrina. Uma noite a pensão se consumiu em um incêndio. Depois de muitos anos mudaram-se para esta casa na Espírito Santo, que minha mãe mandara construir ainda solteira, antes de conhecer seu Gimenez. Estas são memórias que me contaram. As outras são minhas.

Do alto de uma das árvores, a gente alcançava o telhado.  Em cima da varanda. Aventura de crianças que deixava meu avô bravo. Mandava descer. Era um bom refúgio quando ele cismava de cortar nossas unhas. Cortava bem rente. As pontas dos dedos latejavam. A gente tentava escapar. Nem sempre conseguíamos.

Memórias. Até que ponto aconteceram? Em que medida são fruto da imaginação ou de sonhos mal lembrados? Sonho, imaginação ou história? Que importa? Ao virem à mente, é como se tivessem ocorrido. A mim, só me resta narrá-las. Vamos  em frente então!

Ananisa e Arlindo povoam memórias de minha infância e adolescência. Ele nascido em 1899, em Santo Antônio da Platina. Ela em 1900, em Brazópolis em Minas Gerais. Se conheceram quando ela veio passar um tempo com a irmã, Maria Negrão que se casara e mudara para Santo Antonio da Platina. Se casaram em 1920. Estas memórias relembrei nos álbuns de vida familiar que minha mãe registrou ao longo de sua vida lúcida. Trabalho de memorialista que parece ter se entranhado em meu sangue!

Certa vez, quando meu avô já estava esclerosado, eu o vi, à distância, na esquina da Espírito Santo com a Paranaguá. Eles moravam quase na esquina da primeira com a Antonina, agora Juscelino Kubitschek. Eu, com meus pais e irmãos, na Paranaguá. Quase esquina com a Goiás. Já morávamos na casa quase em frente ao Supermercado Gimenez. Estava em frente de casa. Portanto, vi meu avô a quase 100 metros de distância.

Para quem não conhece Londrina, a Goiás e a Espírito Santos são paralelas. Descendo a Paranaguá, à esquerda de minha casa, tinha primeiro a Espírito Santo, em seguida a Alagoas. Subindo a Paranaguá, tinha a Goiás, Pará e Piauí. Paralelas à Paranaguá, havia para baixo a Antonina e, para cima a Santos, a Belo Horizonte e a Higienópolis. Eram quadras homogêneas e regulares. Ainda permanecem assim, embora poucas casas daquele tempo ainda existam. A maioria foi substituída por prédios. Mas, isto é outra história!

Continuando pela Paranaguá, à direita de quem saía de minha casa, depois da Piauí, vêm a Pio XII, a Tupi, a Fernando de Noronha, alcançando depois a Mossoró. Ocupando toda a quadra entre a Mossoró e a Santos, o Colégio Londrinense com o ginásio de esportes Colossinho. Na outra direção, quando a Juscelino faz uma curva, chegávamos ao clube Canadá, depois de passar pelo Instituto Filadélfia e pelo ILECE. Esta região fez parte de minhas andanças enquanto criança e adolescente. Para a escola, para a casa de amigos, para os treinos de basquete, para as idas à piscina e para andanças sem destino. Um pouco acima da casa de meus avós, havia uma data vazia. Data é como chamamos terreno em Londrina. Me lembro de, com alguns amigos, antes de chegar à casa de meus avós, brincar nesta data que terminava na Alagoas, no outro lado. Memórias de muitas goiabeiras nesta data. Mas, esta também é outra história!

Volto á lembrança com meu avô. Ele caminhava rápido. Eu fui atrás dele. Devia ter escapado dos olhos vigilantes de minha avó. Não muito tempo depois ele viria a falecer. Isto foi em 1972. Só consegui alcançá-lo já passado da Belo Horizonte, um pouco antes da esquina com a Higienópolis. Tive que correr. Segurei meu avô por um dos braços e disse:

_ Oi vô, aonde está indo?

Ele me reconheceu. Por sorte. Naquela época, com a doença, às vezes não reconhecia alguém. Me respondeu:

_ Tenho que ir ao Bosque, fechar um negócio. Vem comigo Fernando.

De alguma forma, consegui convencê-lo a voltar para casa comigo. Na memória me restou essa lembrança de meu avô.

Em outra ocasião, era minha avó que já estava perdendo a lucidez. Final dos anos 70. Ela faleceu em 1980. Eu tinha muita curiosidade em saber quem eram meus antepassados. Já contei isto em outro texto. Mas, repito aqui. Estávamos em nossa casa na Paranaguá. Comecei a lhe perguntar sobre seus pais, suas irmãs e outros parentes. De repente, ela olhou para mim e disse:

_ Fernando, você me faz tanta pergunta que eu já estou ficando confusa. Já não sei nem quem foi minha mãe.

E, nós demos uma risada gostosa.

Arlindo e Ananisa. Hoje bateu saudades dos dois. Nesse domingo frio de Curitiba. Me aqueço um pouco com as lembranças do carinho que recebi deles. Saudades de neto. Olhos molhados ao final do texto. Hora de levantar e fazer um café.

Terminando esse registro, algumas fotografias reproduzidas do Álbum da Vida de Arlindo Ribeiro do Prado, organizado por Kilda Gomes do Prado. Neste ela não assinou Gimenez. Curioso! Logo ela que sempre foi tão cuidadosa com nomes e sobrenomes. Mas, esta deve ser outra história também! 

Ananisa é a primeira à esquerda sentada, aos 15 anos, ao lado dela sua mãe Amélia Baptista de Paiva e depois suas irmãs, Maria e Adalgisa. Atrás dela, seu pai, João Gomes de Faria, depois Altamiro da Costa Negrão, casado com Maria, e José Belino Negrão (sem registro de qual era o parentesco)

Arlindo, ao lado da irmã Delminda Ribeiro do Prado e do irmão Aristides Rodrigues do Prado (c. 1905/1906)

Os dois em Londrina

50 anos de casados, 1970

Na Igreja da Avenida Higienópolis (Paróquia Coração de Maria). Atrás meus avós, encobertos, tio Carlos e tia Edy, depois meu pai e minha mãe.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Entre a luz e a escuridão

Fazia tempo que ela vinha avisando a todos. Não acreditavam. Ela dizia. E completava. Esse dia ainda vai chegar. A maioria duvidava. Ela está fora de seu juízo. A conclusão da maioria ia nessa direção. Mas, havia uns poucos que levavam a sério os alertas de Durvalina.
Isto tudo aconteceu antes do sumiço dela. No dia seguinte à chegada do velho andarilho e seu cão de olhos vermelhos. Durvalina, você sabe, foi a única que acolheu a dupla em casa. Mas, isso não importa. O importante é o que ela passou a dizer desde então. O sumiço dela só aconteceria nove meses após a chegada de ambos. Mas, isto também você já sabe.
O primeiro que foi alertado era um muleque. O pequeno Rodrivaldo. Filho de Ronaldo, o coveiro, e neto de Andriela, a mais antiga parteira da região. A mãe quis que o nome do filho combinasse o do pai com o da avó. Morreu no parto. Respeitaram sua vontade. Mais de uma centena de viventes tinham visto a luz primeiro nas mãos de Andriela. Ronaldo enterrou a mulher. Mãe e filho nas pontas do ciclo da vida no vilarejo. O começo e o fim.
Rodrivaldo passava em frente à casa de Durvalina. A anciã viu o muleque. Chamou por ele. Rodrivaldo tinha medo da velha. Saiu correndo quando da boca de Durvalina ouviu a profecia. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Sem entender, contou ao pai. Este só respondeu que deixasse a velha pra lá. É maluca!
Da outra vez, foi com a própria Andriela. A parteira voltava da casa de Rosália e Marinelvo. Trabalho dobrado. Gêmeos. Cansada, a parteira parou em frente à casa de Durvalina. Sua casa ainda distava uns 150 metros. Na mesma rua. Durvalina veio à porta e repetiu. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Uma semana depois, foi a vez de Ronaldo. Ia em direção à casa da mãe. No caminho, viu Durvalina à janela. Madalena, a gata, a seu lado. A anciã com o cachimbo na boca, deu uma baforada. E alertou o coveiro que lhe acenara. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O homem fez o sinal da cruz. Apressou o passo. Na casa de Andriela contou à mãe o que ouviu da outra mulher. A mãe lhe disse que também ouvira de Durvalina a mesma coisa. Ronaldo lembrou e comentou que Rodrivaldo também ouvira. Andriela encerrou o assunto. Que deixasse a velha pra lá. É maluca!
A partir desse dia, todo e qualquer cristão que encontrasse Durvalina era avisado. Alguns riam. Troçavam da velha. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar. Era o aviso. Chamavam de caduca. Outros apressavam o passo. Se benziam.
Com o passar dos dias, muitos começaram a evitar Durvalina. Se afastavam quando notavam que se aproximava. Desviavam de caminho para não passar em frente a sua casa. Mas, às vezes, alguém era surpreendido pela anciã. Ela chegava de mansinho. E gritava. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O tempo passou. Até aquele dia... Andriela acordou com contrações muito fortes. Da noite para o dia, uma barriga imensa se formara. Gritava. Muito. Alto. Vizinhos escutaram. Assustados, foram atrás de Ronaldo. Ele entrou no quarto da mãe. De quatro, de suas entranhas saía uma massa disforme. Vermelha de sangue. Sem pé. Sem cabeça. Como se fosse uma bola de carne. Ao ver o que acontecia, Ronaldo amparou a mãe. Desfez-se da massa disforme na privada da casa. Ao voltar para o quarto da mãe, caiu duro para trás. Morto.
Nuvens escuras esconderam o sol. Andriela se recuperou. Pegou o filho. Enrolou em um lençol. Teve ajuda dos vizinhos e de Rodrivaldo. Ainda no escuro, o cortejo foi em direção ao cemitério. Andriela enterrou o filho. Na volta para casa, ouviu do neto. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia chegou. Nesse momento, Durvalina e Madalena surgiram à janela.

domingo, 9 de agosto de 2020

Duas Caras

Dias conturbados foram aqueles em que Duas Caras apareceu na rua do Bar do Nego. O cachorro veio junto com um morador de rua. Sandoval e Duas caras chegaram na hora do almoço. O homem pediu uma ajuda a Nego. Alzira viu os dois conversando.
Nego propôs que Sandoval fizesse a limpeza do terreno que ficava aos fundos do bar. Negócio fechado. Nego pediu que Alzira servisse o almoço a Sandoval. Depois do almoço, Sandoval começou o trabalho. Além de um valor em dinheiro, teria três refeições por dia - café da manhã, almoço e janta. Era serviço para dois ou três dias.
Enquanto isso, Duas Caras ficaria com a gangue de Lorde Kennedy. Pelo menos, esta era a intenção dos humanos. Mas, logo na chegada, Chumbinho e Duas Caras se estranharam. Chumbinho não gostou da forma como Duas Caras se aproximou de Vina. Ciúme bateu forte. Os dois se peitaram, rosnaram, quase foram às vias de fato. Mas, Alemão e China contornaram as coisas. Foi cada um pra um canto. Vina se juntou a Chumbinho. Feliz da vida! Gostou da demonstração de amor que Chumbinho deu.
Duas Caras era um cão de porte médio. Um pouco menor que Alemão, mas maior do que os demais. Tinha o pelo curto, branco pela maior parte do corpo. As patas tinham manchas pretas. E a cabeça, era branca de um lado e preta do outro. Os dentes de baixo ficavam à mostra. Isto dava um ar ameaçador a Duas Caras. Sandoval o pegou desde pequeno e lhe deu o nome.
Nos três dias que Sandoval levou para fazer o serviço, Lorde Kennedy e sua gangue saíram para suas andanças matutinas e vespertinas. Na primeira tarde, com o clima tenso, Duas Caras ficou com Sandoval. Na manhã seguinte, Lorde Kennedy convidou Duas Caras a se juntar a eles. Chumbinho ficou chateado. Disse que não sairia naquela manhã. Mas, o velho China o convenceu:
_ Deixa disso, meu chapa. Vamos lá. Vina vai ficar feliz se você for.
Lá se foram os sete pela rua, em direção à Enseada. Na formação usual, apenas com um mais. Dama e Lorde Kennedy à frente, seguidos por Vina e Chumbinho. Fechando o cortejo os outros três. Naquela tarde foi quase tudo tranquilo. Passaram a tarde na Enseada. No começo da noite, voltaram. A comida já tinha sido servida por Alzira. Depois de comer, Duas Caras foi dormir junto à Sandoval. Como sempre fazia desde pequeno.
Mas, antes disso fez uma piada com o velho China. Este não gostou e partiu para cima do forasteiro. Alemão ficou olhando. Depois que Duas Caras levou uns sopapos do China, Alemão apartou os dois. Botou Duas Caras pra fora. Duas Caras até enfrentou o China, mas nunca tinha brigado com um cão tão ágil como China.
No dia seguinte, a gangue ia bem cedo para a Praia do Forte. Duas Caras foi junto. Ninguém convidou, mas ele se juntou ao outros. Na volta, em uma casa no meio do caminho, viram um casal de idosos com um cãozinho pequeno. O portão estava aberto. Duas Caras avançou sobre eles. Só por farra. Lorde Kennedy lhe chamou a atenção, mas ele não se fez de rogado. Começou a mexer com Dama. Dessa vez, foi Alemão que lhe deu um corretivo. Duas Caras pôs o rabo no meio das pernas e seguiu o grupo à distância. Quando chegaram, foi direto atrás de Sandoval. Nem comeu sua comida que Alzira já tinha servido a todos.
O dia seguinte seria o último do convívio forçado entre eles. Sandoval terminaria o serviço. A gangue ficou na região do bar do Nego. Nenhum com vontade de sair e ter que aguentar a companhia do traste. No meio da tarde, Vina e Dama foram dar um rolê até a praça. Esta fica duzentos metros distante do Bar do Nego. Ninguém quis ir com elas. De repente, Duas Caras apareceu junto delas. No mesmo instante, em um dos cantos da praça elas viram Brutus e seus dois capangas. Eles vinham em direção a elas. Fazia tempo que os três malvados não eram vistos na região. Chegaram e comecaram a ameaçar:
_ As duas estão só com esse amiguinho novo? Perguntou Brutus.
Pedroca ajuntou:
_ Que pena! Hoje que íamos nos vingar daquele falso Lorde.
E Zarolho, indo pra cima delas, ameaçou:
_ Mas a gente pode aproveitar das duas agoras.
Nesse momento, Duas Caras se colocou em frente às duas. Zarolho e ele rosnaram. E se enrolaram. Brutus e Pedroca foram ajudar o colega. Mas, Duas Caras era muito forte e valente. Disse para as duas:
_ Corram. Eu seguro eles aqui. E avançou contra Brutus e Pedroca.
As duas fugiram. Assim que chegaram e avisaram os outros, todos foram para a praça. Lá chegando, viram Duas Caras ensanguentado, mas em pé. Os outros cachorros tinham fugido. Duas Caras foi mancando em direção a eles. Alemão e o velho China apoiaram o forasteiro. Devagar voltaram para o quintal do Bar do Nego. Sandoval já tinha terminado o serviço. Cuidou de seu cão.
De noite, depois que todos tinham comido e estavam se preparando para dormir, Lorde Kennedy disse para Duas Caras:
_ Você podia fazer parte de nossa gangue.
Os demais concordaram. China, brincando com Duas Caras, comentou:
_ De vez em quando, você precisa de uns corretivos. Mas, é um cachorro leal.
Ao que Duas Caras respondeu:
_ Não, meus amigos. Meu lugar é ao lado de Sandoval. Aonde ele for, eu vou. Ele precisa de meus cuidados.
E, na manhã seguinte, todos se despediram de Duas Caras e Sandoval.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Durvalina e o cão de olhos vermelhos

No começo fez-se a escuridão. Repentina. Estavam, todos, na cozinha. A mesa posta em cada casa do vilarejo. Recém sentados. Mal começaram a se servir, as luzes se apagaram. Todas ao mesmo tempo. As nuvens negras impediram que a lua cheia abrandasse a completa falta de luz. O vilarejo às escuras.
À escuridão, seguiu-se o silêncio. Sepulcral. Estranhamente, nenhum som se ouviu. Permaneceram calados. Imóveis. Os lábios de cada um, firmemente cerrados. Assustados. Incapazes de qualquer balbucio. Lá fora também! Silencioso, o vilarejo parecia ter deixado de existir. Como se o tempo parasse. Acontecera como o ancião previra. Mas, somente Durvalina sabia.
Nove meses atrás. Ele chegara ao vilarejo. Acompanhado de um enorme cachorro. Olhos negros, como a pele do cachorro. Os do cão, vermelhos. A vasta cabeleira grisalha do homem se estendia até a cintura.
Na sua chegada, quase todos ficaram ressabiados. A figura estranha, arqueada com uma corcunda enorme. A pele branca e enrrugada. Apareceu na praça. De repente. Como se tivesse surgido do nada. Uma aparição. No meio da tarde. Muitos correram para casa. Os que já estavam em casa, fecharam portas e janelas.
Durvalina foi a única que não se preocupou com o forasteiro. Ela havia sonhado na noite anterior. Com gravidez. Aos 90 anos, longos cabelos grisalhos contrastando com o negrume dos olhos. No sonho ela vira uma cadela prenha. Da cachorra, nasceu apenas um enorme cão preto de olhos vermelhos, acolhido por um ancião corcunda. Era premonitório o sonho. Sonhar com mulher grávida é prenúncio de chegada. O que será, ninguém sabe. Sempre surpresa. Mas, certa.
Durvalina acolheu o ancião e seu cão em casa. Passava pela praça no momento da aparição. Jesualdo e Chico. Chico ficou no quintal. Juntou-se a Madalena, a velha gata que escolhera morar com Durvalina. Se estranharam a princípio. Jesualdo acariciou Madalena, ao mesmo tempo que ralhou com Chico. Gata e cachorro sossegaram.
Jesualdo entrou e foi direto ao quarto de Madalena. O único da casa. Com uma cama de viúva. Deitou-se. Adormeceu profundamente. Acordou apenas na manhã seguinte. Sol alto. Quase dez horas da manhã. Nem percebeu que Durvalina dormiu a seu lado. Pelo menos, foi o que ela pensou.
Na cozinha, Durvalina começava os preparativos do almoço. Arroz, feijão, frango a passarinho, salada de tomate. Jesualdo entrou. Se serviu do café na garrafa térmica. Morno. Fez uma careta. Saiu pro quintal. Chico e Madalena esticados no último degrau da pequena escada que unia a porta da cozinha ao nível do solo. Quatro degraus. De vermelhão.
Depois do almoço, Jesualdo chamou Chico e partiu. Do portão, avisou Durvalina. Daqui nove meses ficará escuro e fará silêncio. Não se assuste. Mesmo no escuro, caminhe até a praça. Nada te impedirá.
Durvalina lembrou do aviso de Jesualdo. Tateando no escuro, caminhou em direção à praça. Ao chegar, a lua surgiu entre as nuvens. Iluminou o centro da praça. No coreto, de uma cachorra nascia um cão preto, grande, de olhos vermelhos. Ao mesmo tempo, em Durvalina, cresceu uma corcunda.
Ela acolheu o cão. Seguiu em direção à estrada. Em busca de seu destino. Sua missão estava começando. A premonição do sonho. Surpresa, mas certa. Ela pensou que era o ancião e seu cachorro. Estava enganada. 
Enquanto caminhava, as nuvens se afastaram, a lua cheia clareou a noite. As luzes se acenderam nas casas. Sons foram ouvidos.
Na manhã seguinte, perceberam a ausência de Durvalina. Madalena, esticada no topo da pequena escada junto à porta da cozinha, se aquecia ao sol.