terça-feira, 21 de junho de 2016

Mais uma de Dona Kilda

Aos noventa, muita história para contar. Quem diria que ainda haveria uma nova de que nunca havia me falado!
Começo dos anos 40 do século passado. Londrina, fundada em 1934, ainda na infância. Arlindo e Ananisa se mudaram para Londrina. Vieram de Santo Antonio da Platina com os filhos mais novos: João, Almey, Caio, Amélia e Cristiano. Carlos e Kilda, os mais velhos, estudavam em Jacarezinho. Se juntaram aos irmãos e pais no final do ano escolar.
Depois de se formar no ginásio, primeira turma do Colégio Londrinense, Kilda morava com os pais e irmãos na rua Mato Grosso. Começou a ser procurada por pessoas que pediam sua ajuda na escrita de cartas para familiares distantes.
Lembrei-me de Dora, personagem vivida por Fernanda Montenegro, que escrevia cartas para aqueles que não sabiam escrever em Central do Brasil. Quem diria? Minha mãe viveu essa experiência na vida.
Hoje lembrou-se de uma senhora que lhe pedia para escrever cartas para o irmão. Ela falava o que queria dizer e Kilda transformava a fala em uma narrativa escrita.
Quando a mulher recebia cartas do irmão, trazia para Kilda ler. Um dia uma surpresa:
"Por favor dê lembranças à Kilda que escreve suas cartas tão bem".
Não poderia haver retribuição melhor a um trabalho que era somente mais uma das formas de solidariedade humana que abundava naquela Londrina nascente que atraía gente de todos os cantos. Gente que deixava entes queridos em terras distantes. Gente que precisava contar as novidades, chorar a saudade, compartilhar os sonhos...
Ouvir histórias e narrar para outros. É uma das coisas que Kilda sempre gostou de fazer. Assim como seu pai, meu avô Arlindo. Suas histórias sempre prendiam minha atenção quando criança. Essa mulher cujo nome perdeu-se na memória soube quem escolher.
Eu tento seguir a tradição. Vou narrando as histórias que ouço. É quase um vício! Mas, que posso fazer?

O gato e o sonho

Só se ouvia o leve ressonar do gato. Passando dos dez anos de vida, de vez em quando soltava um ronco mais forte. Em seguida, continuava ressonando. Suave. Era o turno da tarde. 
Eu me perguntava, se os roncos tinham a ver com sua idade. Não havia observado isto antes. Apenas nos últimos meses. Desde que caíra da janela do apartamento. Ainda bem que morávamos no primeiro andar. A queda foi de, no máximo, três metros e meio, talvez quatro. Na primeira semana, manquitolava um pouco. Depois, parou. Então, começaram os pequenos roncos.
Mas, como dizia, era o turno da tarde. Acumulava energias para a noite e madrugada. Meu sono andava leve ultimamente. De madrugada, as curtas corridas do gato me acordavam. Ele gostava de disparar pelo corredor e escorregar nos tapetes da sala. Às vezes, um pouco mais de energia o levava de encontro à parede. Eu ouvia um barulho esquisito. Acho que batia a cabeça. Será que isto tem a ver com os roncos recentes?
Naquela tarde, eu chegara mais cedo do trabalho. Meus horários flexíveis são uma das coisas boas dele. Abri a porta. Cinco e meia. O gato, em seu canto, embaixo de uma cadeira, nem levantou a cabeça. Abriu os olhos. Fechou. Um momento. Literalmente, um piscar de olhos.
Ninguém em casa. Pensei como seria bom se fosse um cachorro. Pelo menos, as boas vindas seriam mais calorosas. Mas, não pense que reclamo. O gato se encaixa no meu estilo. Cada um por si. Quando necessitar, pede-se ajuda. É o que ele faz quando tem fome ou quer que limpe sua caixa de areia. Mia!
Eu, como não mio, me contento com uns afagos que ele aceita todo dia. Antes de eu dormir, leio na cama. Ele se junta a mim. Faço uns cafunés até que ele me dá as costas e salta da cama. Me educou bem.
Sozinho, já que o gato era apenas uma presença material, distinta das demais presenças, móveis e eletrodomésticos, apenas pelo ressonar, resolvi ler um pouco antes do jantar. Ler e escrever. Também fazem parte de meu trabalho. Ser pago para isso! Você acredita?
Como não estava em meu horário de trabalho, peguei um dos livros de cinema. A estante fica ao lado da cadeira sob a qual o gato dormia. Sentiu minha aproximação. Outro piscar de olho.
A caminho do quarto, parei na cozinha e preparei uma xícara de café. Nessas máquinas modernas. Com cápsulas. Pequenos luxos que a vida nos permite. Prático também. Café na mão direita, livro na esquerda, caminho para o quarto.
O silêncio do apartamento me incomoda. Penso em ligar o som. Desisto. Me tiraria a concentração da leitura.
Tomado o café, me estiro na cama. O gato vem atrás. Ainda não é hora. Pula na cama. Não faço cafuné. Que aguarde.
Acordo de madrugada. Um peso no peito. O livro entreaberto. Não passei da página cinco.
Sonhei que havia chegado em casa. O gato ressonava. Nem ergueu a cabeça quando abri a porta. Abriu e fechou os olhos. Um piscar de olhos. Outro quando peguei um livro. Fiz um café na cozinha. Me estirei na cama. O gato veio atrás. Não fiz cafuné. Que aguardasse.
Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que chegara em casa. O gato piscou. Peguei livro. Fiz café. Me estirei na cama. Gato veio atrás. Não fiz cafuné.
Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que... Dessa vez fiz cafuné no gato. Consegui me levantar. Fui até a sala. Gato piscou só um olho. Parecia irônico. Teria me enfeitiçado?
Da próxima vez compro um cachorro.

Três memórias de meu pai: sobre a complexidade de ser humano

Outro dia lembrei-me de três momentos de meu pai. Em um convívio de quase cinco décadas, na relação de pai e filho, é claro que muitas histórias se passaram. Mas, pelos misteriosos e sinuosos caminhos da memória, esses trés episódios se repetiram na minha mente recentemente.
O primeiro ocorreu quando ainda era criança. Meu pai levou todos os filhos e mais uma moça, Maria, que trabalhava em nossa casa desde adolescente, para Ponta Grossa. Nosso destino era assistir corridas no hipódromo de Uvaranas naquela cidade. Chegamos em Ponta Grossa na hora do almoço. No centro da cidade, em frente a uma praça, me lembro bem, fomos a um restaurante. Por algum mal entendido ou má intenção do garçom que nos atendeu, quando começou a chegar a comida à mesa, foi um assombro geral. Era muita comida! O garçom pedira seis porçóes de cada prato. Eram um adulto, uma adolescente e quatro crianças. Depois de um rápido bate-boca, meu pai se levantou, foi à porta do restaurante, chamou um grupo de mendingos que estava na praça e fez com que a comida fosse servida a eles. Grande momento de vida!
Anos depois, aos dezessete anos, eu estava estudando em São Paulo me preparando para o vestibular e concluindo o ensino médio. Meu pai foi passar um final de semana lá. Foi, de novo, para assistir corridas de cavalo. Dessa vez em Cidade Jardim. No sábado, pela manhã, passeamos pelo centro de São Paulo. Na hora do almoço, perto da Praça da República, decidimos almoçar na churrascaria Rubayat. Lá dentro fomos surpreendidos pelo ambiente refinado e alta qualidade do atendimento. Embora bem de vida, não era o estilo de restaurante que frequentássemos. Ao final do almoço, pedimos dois cafés. O garçom trouxe os cafés. Em cada pires, além da xícara, um bala de hortelã. Nunca esqueci a frase que saiu dos lábios de meu pai:
_ Já estou imaginando o quanto vão me custar essas balinhas!
Um momento de humor típico do Seu Gimenez.
Passaram-se muitos anos. Eu trabalhava com meus pais no Supermercado Gimenez. As gondolas, expositores e checkouts tinham sido feitas pelo Sr. Luis Morselli, amigo de meu pai, que era marceneiro aposentado. Os checkouts tinham na parte traseira umas gavetas para guardar embalagens. Esta parte tinha a forma de um banco. Meu pai costumava ficar sentado ali conversando com fregueses que entravam e saíam do supermercado. Ele tinha um jeito de sentar que se repetia sempre. Esticava o braço esquerdo para o lado e apoiava a mão espalmada na madeira. Havia espaço para duas pessoas sentarem.
Meu pai sempre foi um homem bonito. De prosa fácil, sabia ser sedutor. Muitas freguesas, certamente, ao longo de sua vida de comerciante, sentiram de alguma forma o poder sedutor desse homem. Nessa época, em especial, havia uma freguesa, vizinha ao supermercado, que dava sinais evidentes de querer algo mais do que apenas as mercadorias vendidas pelo Seu Gimenez. Não é que, certa vez, enquanto meu pai estava sentado na ponta de um dos checkouts, em sua posição usual, com braço esquerdo estendido e mão espalmada, essa freguesa veio e sentou-se a seu lado. Com o meio da bunda bem em cima da mão dele!
Os dois ficaram um bom tempo conversando. Quando ela se foi, meu pai me perguntou:
_ Você viu?
_ Claro. Respondi e imediatamente perguntei:
_ Deu tempo de virar a mão para cima?
Ele piscou e sorriu daquele jeito maroto que de vez em quando fazia.
Três lembranças de meu pai. Três facetas de um ser humano. Às vezes, me pego fazendo julgamentos apressados sobre as pessoas. Mas, tento não me deixar levar por impressões parciais. Ser humano é uma tarefa complexa. Não cabemos em um só adjetivo.
Pena que só temos uma vida para tentar ser melhor do que pior. Pelo menos é no que acredito. Vale a pena tentar!
Quanto a meu pai, já escrevi em outro texto: alguns diziam que era uma pessoa boa; outros diziam o contrário. Eu só posso dizer que foi meu pai.

domingo, 5 de junho de 2016

Fim de Maio

Não havia mais o que fazer. Ou melhor, não dava mais tempo. O que fazer sempre haveria. Mas, o tempo se esgotara. Ou melhor, vencera o prazo concedido. O tempo nunca se esgota. É fluxo permanente. Assim como a vida. Ela continua. Nós passamos por ela. Em nosso tempo. Para alguns, breve. Para outros, longo. Em geral, a duração não é uma questão de escolha.
Me desvio do assunto. Vida e tempo teimam em se meter nos meus escritos. Não é hora de falar deles. Quero dizer sobre como ela reagiu ao fim de maio. Ou melhor, ao fim do último maio. Maio sempre haverá, mas como o último, talvez nenhum seja igual. No passado, também não houve. Olha o tempo espreitando para ver se encontra uma brecha nesse texto. Não vou deixar. Estou atento!
No primeiro de maio, um domingo, feriado desperdiçado, acordou preguiçosa. Se bem que, aposentada, para ela não fazia diferença. No criado mudo, o vaso de flor de maio, com vários botões florescendo. Vermelhos. Alguns já tinham se apressado e floresceram alguns dias antes. A maioria, ainda era uma promessa. Além do vaso, e dela, nenhum outro sinal de vida naquele quarto. Epa! Olha a vida querendo aparecer. Já disse que não é de tempo ou vida que vou falar.
Morava sozinha. Nunca gostou de animais domésticos. Assim, não tinha gato, cachorro, peixe, iguana, hamster, papagaio... uma vez pensou em adotar uma calopsita. Mas, ao ver a sujeira de grãos na gaiola da petshop desistiu. Não estava afim de buscar sarna pra se coçar. Para isso, tinha suas frieiras eventuais. Esfregar o vão dos dedos na quina do colchão era muito bom. Quase tão bom quanto sexo. Fazia tempo que não gozava dos dois prazeres. Parecia não sentir falta. Não tenho certeza. Era muito reservada. Não comentava essas coisas.
Solitária, depois da aposentadoria, tornou-se ainda mais calada. Recebia poucas visitas. Uma vez por semana, a diarista. Para a limpeza mais pesada. De vez em quando, Claudete e Odária. Vinham para um lanche no final do expediente do banco. Ela tinha sido caixa por mais de trinta anos. As duas entraram no banco dez anos depois dela. Conversavam sobre os outros colegas.
Claudete era viúva recente. Há seis meses o marido morrera, vítima de um câncer fulminante no pulmão. Fumante inveterado, entre a descoberta e a morte foram apenas três meses. Mas, Claudete já não demonstrava sinais do luto. Estava de caso com um colega do banco. Odária jurava que isto já estava acontecendo há muito tempo. Claudete negava. E logo mudava de assunto quando uma das duas amigas falavam sobre Odair, o colega do banco. Não teve filhos no casamento. O marido era estéril. Chegaram a pensar em adoção, mas nunca tiveram coragem. O marido tinha um irmão de criação que vivia dando problemas para a família. Na igreja, uma irmã que trabalhava na Santa Casa, uma vez disse a Claudete que havia uma menina de dezesseis anos que estava grávida e não queria ficar com a criança. A freira daria um jeito de lhe passar a criança assim que nascesse. Claudete ficou empolgada. Dias depois o cunhado encrenqueiro criou uma confusão danada com seu marido. Ela desistiu de adotar a criança.
Odária nunca se casou. Teve alguns pretendentes ainda na juventude. Ficara noiva de José Miguel aos vinte e dois anos. Herdeiro de uma família proprietária de uma grande empresa produtora de chás na cidade. Mas, a futura sogra não aprovava o casamento. Depois de três meses de noivado, achou um jeito de mandar José Miguel para os Estados Unidos. Ele foi fazer um curso de pós-graduação em Harvard. Lá conheceu a herdeira de um grande laticínio de Minas Gerais. Se encantou com os olhos verdes da mineira de pele morena. Nunca mais voltou a Curitiba. Casou-se com a moça em Las Vegas e quando os dois terminaram o curso, foram para Minas. Ele acabou tornando-se o administrador das propriedades do sogro. A futura sogra de Odária se arrependeu. Tentou se reaproximar de Odária, pensando em um meio de trazer o filho de volta. Odária não aceitou. Desiludida, não quis mais saber de nenhum homem. Era implacável com os colegas do banco. Para sorte deles, nunca ocupou um cargo de chefia.
Desde o feriado dominical, os trinta dias restantes de maio se passaram sem mudanças na rotina de Isabela. Ela mesma se concedera o prazo que estava se esgotando. Até o fim do mês daria uma solução à solidão. Assim como as duas amigas, não tinha filhos. O observava há alguns meses. No Bosque do Papa, onde ia pegar uns doces poloneses para o lanche com as amigas, o viu pela primeira vez. Foi no Bosque do Papa que comeu esse doce pela primeira vez. Nunca conseguiu guardar o nome. Era feito de uma massa fina, tipo folhada. Duas folhas, uma embaixo e outra na parte de cima, recheadas com um creme delicioso. A primeira vez que comeu foi quando o Papa veio a Curitiba e ela foi ver a missa rezada por ele. Depois passou em uma das barracas que foram montadas com comidas típicas da Polônia e comeu o doce. Descobriu que no Bosque do Papa o doce era vendido. Ficou cliente assídua.
Uma vez, quando estava assistindo uma apresentação de música no palco do Bosque do Papa percebeu que um rapaz estava lhe olhando. Não tinha mais do que vinte e cinco anos. Era negro, alto, magro e bonito. Algumas semanas depois, quando tomava um café no Museu Oscar Niemeyer, ao lado do Bosque do Papa, viu ele passando e entrando na lojinha do museu. Ele a viu e foi em direção a ela. Isabela se levantou, passou por ele, foi ao caixa e pagou sua conta. Saiu apressada. Afogueada.
O rapaz a seguiu a distância. Quando ela entrou em seu prédio, ele deu meia volta e voltou em direção ao museu. Desde esse dia, ele ficava algumas horas em frente ao prédio dela. Dia sim, dia não. Sempre na parte da tarde. Quando ela saía, ele sorria, mas nunca dizia nada.

Naquele trinta e um de maio, ela saiu de casa decidida. Era um dia sim. Ela sabia que ele estaria lá fora. Ela já se acostumara com o sorriso dele. Chegara a sonhar com o rapaz sorridente. Acordara afogueada. Saiu do prédio como se tivesse um compromisso. Apressada. Olhou para onde ele sempre estava. Não viu ninguém. Ela voltou para o apartamento. Disse ao porteiro que havia esquecido a sombrinha. Desceu depois de cinco minutos. Ele não estava lá. Ela foi até o Bosque do Papa, comeu um doce, sentou em um dos bancos em frente ao palco. Chorou. Seu tempo se esgotara. Não havia mais o que fazer. A vida, porém, continuaria. Solitária.