sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 12 - Notícias de uma jornada de 75 dias

Dois meses e meio depois de nossa chegada na Holanda, junto com o fim de 2021, chegam notícias de que este será o réveillon mais quente desde 2017. Naquele ano, a temperatura em 31 de dezembro atingiu 13,3 graus centigrados em nossa região. Em De Bilt, pequena cidade encostada em Utrecht, nas primeiras horas da madrugada de hoje, a temperatura foi de 14,4 graus centígrados. Por outro lado, uma semana antes do Natal, havia previsão de neve em Utrecht para o dia 25. Pensamos que teríamos um Natal Branco, mas isso não aconteceu. Apesar da temperatura oscilar entre -2 e 2 graus centígrados, nada de neve naquele dia.  Uma semana depois, esta temperatura atípica! Qie foi devidamente celebrada por nós com uma caminhada até o parque Grift na região nordeste de Utrecht. Até o sol deu as caras por volta de meio dia.

Nesse dia preguiçoso, em que aguardamos a simbólica passagem para um novo ano, decido escrever sobre notícias que me chamaram a atenção nestes 75 dias de vida na Holanda. Logo nos primeiros dias, após as impressões iniciais, angústias, incertezas e expectativas, pensei que precisava saber mais dessa terra e povo. Assim, na tentativa de melhor conhecer o país que seria minha morada por seis meses, busquei na Internet algum site em que pudesse me informar sobre o que aqui é notícia. Encontrei dois jornais online com notícias em inglês: o NLTimes.nl e o DutchNews.nl. Me tornei leitor assíduo do primeiro. O segundo acesso mais raramente. Hoje, nesta mini retrospectiva de quase onze semanas, relembro alguns fatos e notícias.

Logo na primeira semana, no campo da cultura, descubro que SinterKlaas iria passar com seu barco a vapor pelos canais de Amsterdam. Ao contrário dos outros anos, haveria apenas uma festa de chegada no dia 14 de novembro, quando o seu barco iria até o Prinsengracht pelo rio Amstel, e só depois iria até o Museu Marítimo como era o costume. Apesar da pandemia de Covid 19, as autoridades municipais informavam que seria possível que a população participasse das boas-vindas a SinterKlass, às margens do rio e dos canais, sem a necessidade de mostrar o Coronapass. Este é um passe eletrônico, na forma de aplicativo em celular, que é usado como controle sanitário na Holanda e outros países europeus para evitar que pessoas não vacinadas ou não testadas tenham acesso a lugares públicos de acesso restrito.

É claro que as notícias sobre a pandemia e as restrições governamentais estiveram no noticiário todos os dias. Toda manhã havia a atualização do número absoluto de novas infecções, hospitalizações, mortes e altas hospitalares, bem como as médias das últimas semanas. Amsterdam, Haia e Roterdã eram sempre as cidades com maior número de casos. Porém eventualmente, Utrecht, aparecia também com número elevados de caso e internações. As notícias mais recentes contam sobre o predomínio da variante Omicron, que foi a responsável por mais de 80% das infecções no dia 28 em Amsterdam.

Hoje, a meio caminho do lockdown determinado pelo governo no dia 19, e previsto para se encerrar em 14 de janeiro, a principal dúvida é se as escolas devem voltar a funcionar a partir de 10 de janeiro. Embora, o lockdown vá durar mais cinco dias, sete se contarmos sábado e domingo, 60 organizações fizeram um manifesto pedindo que o governo autorize a retomada das aulas antes do fim do lockdown. Fico em dúvida se uma semana a mais de folga escolar traria realmente tantos prejuízos quanto dizem os especialistas em educação. Afinal o que são sete dias em meio a 4.275 semanas, que é a expectativa de vida de um cidadão holandês hoje. Praticamente nada!

Outro tema que volta e meia aparece no noticiário é a questão da moradia na Holanda. Já comentei em outra crônica que há um déficit muito grande de moradia no país. Pois, a partir do próximo ano, as prefeituras municipais estão autorizadas a criarem restrições sobre o destino de imóveis residenciais negociados no mercado imobiliário. Muitas das cidades estão criando normas que impedem que imóveis recém-comprados sejam colocados para aluguel, antes de decorridos entre 4 e 5 anos. Ou seja, há uma tentativa de controlar o mercado imobiliário e a constante elevação de preços de compra e aluguéis, restringindo a ação de grandes corporações que compram imóveis como investimento.

Aliás, pelo que pude entender do pouco que li sobre o sistema parlamentarista de governo aqui na Holanda, parece que no primeiro dia do ano, entram em vigor novas leis e regulamentos que são aprovados no ano anterior. Assim, conforme notícia que li no NlTimes, 72 leis e normas começam a valer a partir de amanhã. Entre elas, estão cobertos os mais diversos aspectos da vida neste país que foram classificados em seis áreas: trabalho e renda; cuidado e saúde; famílias e parentes; moradia e vida; negócios; e governo e segurança. 

Aliás, por falar em governo, finalmente os quatro partidos que conseguiram formar a maioria parlamentar, fruto das eleições ocorridas há mais de 14 meses, chegaram a um acordo e irão formalizar a proposição de um novo Gabinete (Cabinet) ao rei holandês no dia 8. A posse está prevista para o dia 10. Serão 29 membros de governo (20 ministros e nove secretários) distribuídos pelos partidos que integram a coalizão. Foi o Gabinete que mais tempo levou para ser acordado na história do parlamento holandês. Nesse período, o governo anterior continuou atuando como provisório. Algo muito estranho para nós, que somos acostumados com o sistema presidencialista, entendermos, não é?

Pois então, nesse tempo de convívio restrito com o povo e a cultura holandesa, vou tentando conhecer seus hábitos e costumes especialmente pelas notícias eletrônicas. Uma rápida leitura hoje, me mostrou que as infecções de Covid 19 continuam subindo, o governo pretende vacinar toda a população adulta, que assim o desejar, com a terceira dose até o final de fevereiro, e viajantes dos Estados Unidos terão que fazer quarentena de 14 dias ao chegarem nos Países Baixos. 

Nesse campo de vacinação, porém, somos uns privilegiados. Já tomamos nossa segunda dose da Pfizer aqui na Holanda, que somadas às duas doses da Astrazeneca que recebemos em Curitiba, nos fazem ser um casal do venho chamando de “biboosters”! "Booster" é como está sendo chamada a terceira dose de vacina por aqui. Devemos ser quase únicos no mundo por, além da terceira dose, já termos recebido uma quarta dose. Apesar disso, continuamos cuidadosos e seguindo as regras sanitárias do país.

Por fim, no campo da cultura, continuam a surgir informações sobre a compra de um quadro de Rembrandt por 175 milhões de euros, dos quais 150 milhões foram pagos pelo governo. O restante foi pago por um fundo do Rijksmuseum e da Rembrandt Association. Será que faz sentido pagar tanto dinheiro para que um quadro fique exposto em um museu? Mesmo sendo o autorretrato chamado “The Standard Bearer” de Rembrandt, tenho cá minhas dúvidas!

É nessas horas que, eu penso, só a poesia nos ajuda na lida com a humanidade. Lembrei-me de Carlos Drummond e seu Poema de Sete Faces que aqui reproduzo, com minha esperança de um mundo melhor a partir de 2022:

Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida

As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos

O bonde passa cheio de pernas
Pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
Não perguntam nada

O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode

Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco

Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração

Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo

domingo, 26 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 11- Sobre livros e chás

Ainda em Curitiba, alguns meses antes de nossa vinda para os Países Baixos, me dei conta que jamais havia lido algum livro da literatura holandesa. Naqueles dias, estávamos tendo aulas de holandês com Mariângela Guimarães, que morou muitos anos por aqui. Embora, tenhamos parado com as aulas, devido às incertezas sobre a viagem, em uma de nossas aulas online, pedi a Mariângela, que é tradutora da língua holandesa para a nossa, uma sugestão de livro de escritor ou escritora daqui. Sua sugestão foi Tirza de Arnon Grunberg, traduzido pela própria.
A leitura foi apaixonante! Uma trama envolvendo a relação entre pai e filha, em meio a uma crise profissional. Com um final surpreendente, a narrativa me emocionou muito. Há alguns traços de Nelson Rodrigues no romance. Contudo, não imagino que Grumberg o tenha lido. É a vida humana que tem seus modos e trejeitos que, às vezes, me parecem ser universais. Afinal, Leon Tolstoi  já comentou sobre isso quando, supostamente afirmou: " Se queres ser universal, comece por pintar sua aldeia".
Depois de nossa chegada à Holanda, tive oportunidade de conhecer um livro de uma escritora holandesa. Fazendo uma busca na Internet, descobri Marieke Lukas Rijneveld, jovem escritora que ganhou o prêmio Booker de literatura em 2020 com seu romance "De avond is ongemak", que em português seria "A noite é desconfortável". Li a tradução inglesa feita por Michelle Hutchinson, sob o título "The discomfort of evening". Marielle atualmente mora em  Utrecht. Seu romance tem como protagonista uma menina de dez anos e narra sua vida, junto ao irmão mais velho e à irmã caçula, em meio a uma crise entre os pais devida à morte acidental do primeiro filho. Não sei se já foi traduzido para nossa língua, mas para quem lê em inglês é um romance que recomendo muito. As dores universais da passagem da infância para a adolescência narradas de forma brilhante. E, como se espera de uma escrita envolvente, com um final que se suspeita, porém impossível de imaginar. Só lendo para saber!
Outro dia, enquanto lia o NL Times, jornal online em que me informo sobre as notícias locais, vi uma notícia sobre a concessão do P.C. Hooft Prize para Arnon Grunberg. Este é um prêmio de literatura na Holanda e Grunberg foi contemplado na modalidade de prosa (ficção). A princípio não me lembrei de que já o havia lido. É difícil guardar esses nomes holandeses na memória! Busquei algum livro dele na Amazon e encontrei "Amuse-Bouche", "Amuse-Gueule" em holandês, traduzido por Lisa Friedman e Ron de Klerk, em 2008. É im livro de contos que Arnon Grunberg publicou em 2001. Uma tradução literal seria "Entradas" em uma refeição ou pequenas porções de comida que são preparadas pelas cozinheiras ou cozinheiros como amostra para os comensais.
Como disse, não lembrei que era o mesmo autor de Tirza. Ontem à noite, na cama, li o primeiro conto. Uma narrativa curta deliciosa em que o próprio autor é o protagonista. Em uma das cenas narradas, uma mulher oferece um chá a um convidado. Após serví-lo, antes que ele começasse a tomar o chá, após ter colocado o saquinho de chá no pires ao lado da xícara, ela pegou o saquinho de chá de volta. E comentou que o guardaria na geladeira. Surpreendente, não! Aliás, surpresas ao final da literatura holandesa parecem fazer parte da cultura local.
Eu ri sozinho com esta cena preciosamente narrada pelo autor. Minha mulher já adormecera ao meu lado. Hoje pela manhã, enquanto caminhávamos pelo bairro, lhe contei o que li ontem enquanto ela dormia. Especialmente, sobre a cena dos saquinhos de chá. Ela riu também, pois ambos lembramos da mesma coisa que aconteceu conosco em Amsterdam. Nos deixou boquiabertos.
Volto à ideia de guardar saquinhos usados de chá. Neste caso, porém, este fato talvez não seja surpreendente para quem vive por aqui. Quando estávamos em Amsterdam, hospedados por um brasileiro que vive aqui há mais de 30 anos, certa noite fiz um chá para nós. Depois de pronto,, quando tirava os saquinhos das xícaras, adivinha o que ele me disse?
_ Fernando, você pode guardar os saquinhos para usar novamente.
Eu, obediente que sou, pus os dois saquinhos em um pires no canto da pia. Mas, na manhã do outro dia, joguei no lixo sem reusá-los. Talvez se eu tivesse lido esse conto antes, não tivesse estranhado tanto a sugestão de nosso anfitrião.
P.S.: continuo jogando os saquinhos de chá no lixo sem reusá-los. Os dois que você vê na fotografia foram as vítimas de ontem

domingo, 19 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 10: Is het lekker, meneer?


Hoje, mais um domingo em Utrecht, se iniciou um período de quatro semanas de quase completo lockdown. Receosos sobre as imprevisíveis consequências da nova variante do coronavirus, a omicron, os membros da equipe de saúde que acompanha a evolução da pandemia em terras holandesas sugeriram medidas drásticas. E o governo resolveu adotá-las!
Exceto por algumas atividades essenciais, tais como saúde, supermercados e farmácias, mais algumas poucas profissões, todo o comércio e setor de serviços deverão ficar fechados até o dia 14 de janeiro. Vinte e oito dias!
Escolas e universidades que vinham funcionando parcialmente, agora estão fechadas também. Eu, que já enfrentava alguns percalços em encontrar meus colegas holandeses que me recepcionam na Utrecht University, mais uma vez, terei que me concentrar em um trabalho à distância nesse período.
Nada difícil para quem já esteve neste modo de trabalho entre março de 2020 e outubro de 2021. Porém, não deixa de ser um pouco frustrante, não é? No começo de outubro, quando precisava decidir se viria para Utecht, a cada dia as notícias sobre a pandemia eram menos preocupantes. A princípio teriamos que fazer uma quarentena de ao menos uma semana, quando chegássemos. Com esta informação, julguei que valeria a pena tentar. Uma semana depois, com visto confirmado, a situação melhorou. Bastava fazer um teste rápido 24 horas antes do embarque. Depois da chegada, a vida parecia quase normal. O uso de máscaras não era mais obrigatório.
Mas, cerca de dez dias depois, começaram novas restrições: uso de máscaras em lugares públicos, comprovante de vacinação, coronacheck (um aplicativo que demonstra sua situação de vacinado ou testado) exigido em bares, rstaurantes, museus, cinemas, etc. E, a partir de hoje, o lockdown parcial, com recomendação de sair de casa só quando estritamente necessário. Vamos lá, então! Afinal, parafraseando Euclides da Cunha, o professor é antes de tudo um forte!
Parece até que estávamos adivinhando. Ontem, sábado, resolvemos ir passear em Amelisweerd. É um parque que fica em Bunnik, pequena cidade encostada em Utrecht. Tanto Erik quanto Niels, dois dos meus anfitriões da Escola de Economia da Utrecht University, em momentos diferentes, sugeriram o passeio.
Amelisweerd fica há apenas 2,5 km de nosso apartamento no campus. Por volta das 11 horas da manhã, fomos fazer mais um teste PCR para que pudéssemos aproveitar e, após a visita ao parque, ir a um bar ou restaurante. Felizmente, mais uma vez, o resultado foi negativo para ambos. 30 minutos depois, enquanto nos aproximávamos de Amelisweerd, recebemos os resultados em nosso celular, que foi transferido para o Coronacheck. Estávamos tranquilos para nosso passeio.
Depois de passear por Amelisweerd, que realmente é um lugar belíssimo e muito prazeroso para caminhar, vimos um restaurante no próprio parque. Tinha fila de espera. No entanto, ao seu lado, um trailer de lanches e bebidas estava bem movimentado. Um cheiro bom de sopa vinha dele. Bem a calhar para a temperatura en torno dos 9 graus centígrados. Foi nossa escolha. Acertada. Uma delícia de sopa.
Com a fome saciada e o calor gostoso da sopa, decidimos aproveitar nosso teste de coronavirus e ir até o Museu Central de Utrecht. Um passeio pensado e adiado várias vezes.
Consultei o Google maps e vi que a caminhada até o museu seria longa. Felizmente, o mapa mostrava um ponto de ônibus relativamente perto, 800 metros. Fomos seguindo as instruções, mas não conseguimos localizar o ponto de ônibus. Perguntamos a duas mulheres que quiseram saber para onde íamos. Ao saber de nosso destino, uma delas disse:
_ É bom ir hoje mesmo. Há rumores de que a partir de amanhã haverá lockdown. O governo dará uma coletiva de imprensa mais tarde.
Nisso, a outra apontou para o outro lado da rua. Lá estava o ponto. Não o tínhamos visto. Enfim, logo depois chegou o ônibus, descemos nas proximidades do museu e o visitamos por pouco mais de duas horas. Merece uma nova visita. Muita coisa para ver em pintura, esculturas e outras manifestações da artes visuais de Utrecht e outras parte da Holanda.
Para encerrar o dia, fomos até o Vila Orloff, um bar e restaurante à beira do canal Oudegracht. O lugar fecharia às cinco horas devido às restrições que prevaleciam antes do novo lockdown. Ficamos quase uma hora por lá. A famosa happy hour! Foi um sábado delicioso!
De noite, em casa, fui acompanhando as notícias sobre o lockdown em um site da internet que publica notícias em inglês. Meu holandês, como você sabe, ainda é insuficiente para uma comunicação mais longa.
Contudo, vou progredindo com minhas lições diárias de autoaprendizagem. Não é que outro dia, quando comia um krantenbol, sentado ao lado de uma Oliebollenkraam, duas moças passaram por mim e uma delas me perguntou:
_ Is het lekker, meneer?
Ao que eu imediatamente respondi:
_ Ja.
Não é que meu parco holandês já me permite pedir um krentenbol com açúcar por favor (een krentenbol met suiker, alsjeblieft)! E depois responder que ele estava gostoso. Quer saber o que é oliebol e krentenbol? Leia a crônica de número 2 dessa série. Foi uma das minhas primeiras descobertas da gastronomia holandesa.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 9: O gato no campus, um médico capoeirista e alguns “floaters’

Ontem o dia nasceu com um pouco de sol, embora tardio. Por aqui, nessa época, o dia clareia com a luz do sol por volta das 8:30h e começa a escurecer em torno das 16:30h. É um sol avarento e quase burocrático! Sistematicamente, cumprindo sua função de iluminação e fonte de calor por meras oito horas diárias. Como se estivesse por aqui apenas para cumprir tabela, quase sempre encoberto pelas nuvens, como neste domingo, por exemplo. 

Mas, quero falar de ontem e de anteontem, nesta crônica. Não sobre hoje, já que às dez horas da manhã de um domingo, ainda não ocorreu nada de extraordinário. Apenas a rotina matinal: acordar, lavar rosto, escovar dentes, preparar o café, ligar o rádio na Sublime, estação que toca muita música, inclusive brasileira, e pouca notícia. As notícias são em holandês, é claro! Com minhas lições diárias da língua holandesa em um aplicativo gratuito, começo a entender algumas palavras. Poucas, porém! Ainda insuficientes para compreender as notícias. Mas, fujo do assunto, vamos a ontem e anteontem.

Ontem pela manhã. após minha prática diária do holandês, olhei em direção à Campusplein, praça central do campus universitário, bem em frente a nosso apartamento. Como sempre, há aves a sobrevoando, especialmente algumas gaivotas, as pegas rabudas (magpies que fizeram parte da crônica inaugural desta série) e pequenos corvos. Estes, quase sempre, caminham sobre o extenso gramado que ladeia a praça, sob as árvores já desfolhadas pelo outono que em dez dias dará lugar ao inverno.

Sob o sol claro, mas não intenso, e insuficiente para elevar a temperatura acima dos 5 graus centigrados, vi à direita um gato. Amarelo e branco, não muito grande, caminhava felinamente em direção a um bando de corvos que estavam à direita da praça, na altura do mastro em que está hasteada a bandeira da universidade de Utrecht. Em seu caminhar cuidadoso, e aparentemente silencioso, após alguns passos, o gato parava e olhava em direção ao bando de corvos. Atraído pela visão, me levantei da cadeira e fui apreciar o gato em sua aventura. Era um gato franzino, porém audacioso. Os corvos estavam em muito maior número. Me perguntei se o gato tentaria pegar um deles? E mais, teria sucesso? Aparentemente, ainda distantes, os corvos não se importavam com a aproximação do gato solitário. Ele continuava em sua caminhada silenciosa, pontuada por paradas estratégicas. Enquanto se aproximava ainda mais do bando de corvos, duas gaivotas passaram voando por ele, a uma altura muito segura. Foram em direção ao bando de corvos que, imediatamente, partiram em revoada. Frustrado, o gato deu meia volta e caminhou lentamente em direção a um dos prédios que circundam a praça. Não foi dessa vez!

A cena me trouxe à lembrança a visita que fiz na sexta-feira a um médico aqui em Utrecht. Talvez, porque a razão de minha consulta tenha sido relacionada a um problema de visão. Ao exercer a visão, acompanhando a frustrada tentativa do gato de alcançar um único mísero corvo, lembrei-me de outras visões involuntárias que tive recentemente. Calma aí! Não é nada de extraordinário! Nada a ver com irrealidades ou coisas de outro mundo. Já lhe explicarei. Mas, antes, falo do médico. 

Seguindo o modo de funcionamento do sistema de saúde na Holanda, após a mudança para Utrecht, já devidamente registrados e com permissão oficial de moradia no país, tivemos que nos registrar em uma clínica médica que faz os atendimentos iniciais da maioria dos casos de doença, exceto em emergências. Fizemos o registro em uma clínica não muito distante de onde moramos há cerca de três semanas. Não imaginava eu, que fosse precisar dos serviços médicos tão rapidamente. Na quinta-feira à tarde, alguns dias após os primeiros sintomas, liguei para a clínica e consegui agendar a consulta para o dia seguinte. Cheguei um pouco adiantado, mas não tive que esperar muito. Cinco minutos após o horário previsto para minha consulta, veio um médico em direção à sala de espera e me chamou pelo sobrenome:

_ Meneer Gimenez?

Com meu pouco holandês, entendi que era minha vez. Meneer Gimenez é a maneira formal de chamar um homem pelo sobrenome. Se fosse uma mulher, seria mevrouw. O médico me encaminhou a sua sala e iniciou falando em holandês. Perguntei se poderia me atender em inglês. Diante da resposta afirmativa, comecei a relatar minha condição. Ele levantou-se, me examinou, comigo ainda sentado, retornou a sua mesa e se dirigiu a mim em português:

_ Você fala português, não? Veio do Brasil?

Para minha surpresa, o médico fala português e joga capoeira. Perguntei onde aprendera nossa língua. Ao responder, me mostrou uma fotografia em preto e branco de capoeiristas em uma praia com palmeiras. Me disse que a fotografia era em Salvador e que lá estivera em 2000 ou 2001. Seu mestre de capoeira é brasileiro e eles conversam em português. Mas, imediatamente voltamos para o inglês, pois me disse que para explicar o meu problema de saúde seu domínio de nossa língua era insuficiente.

A esta altura, você já deve estar com muita curiosidade para saber o motivo que me levou ao médico, não é? É meu jeito de tentar prender a atenção de quem lê. Menciono algo nos primeiros trechos da crônica e vou enrolando! Me perdoe, mas você vai saber o motivo logo no próximo parágrafo dessa crônica. No entanto, se você for médico e tiver algum domínio do inglês já deve saber qual é meu problema de saúde a partir do título da crônica. Contudo, imagino que minha comunidade de leitoras e leitores não inclua muitos profissionais da medicina. Mesmo porque é muito pequena! Ou ainda, dependendo de sua idade, você pode saber o que são "floaters".

Dias atrás, uma semana talvez, ao sair do banheiro e ir para a sala do apartamento me sentei ao sofá e enxerguei alguns pontos negros em frente à minha cabeça. Me pareceram ser alguns pequenos mosquitos, ou até mesmo pequenas aranhas, pois tinha a sensação de enxergar fios de teias bem finos também. Passei a mão em frente ao rosto tentando afastá-los. Sem sucesso! Continuaram ao meu redor. Me levantei, um pouco aflito, e passei novamente as mãos pelo rosto. Eles continuavam lá! Minha mulher percebeu e falou:

_ Que foi amor? Está vendo coisas?

_ Sim. Uns pontos pretos ao meu redor. Foi minha resposta.

Ela me tranquilizou. Disse já ter lido sobre isso tempos atrás. Nada sério! Assim, decidi buscar informações sobre esta condição na internet. Descobri que são denominadas “floaters” em inglês e têm a ver com uma degeneração associada, em geral, à idade, e que se manifesta quando, conforme li, a substância gelatinosa (vítrea) dentro dos olhos se torna mais líquida. Isto faz com que as fibras microscópicas dentro do vítreo se agrupem, fazendo pequenas sombras na retina. Em português, encontrei a referência a “moscas volantes” em um site sobre doenças dos olhos. Ufa! Não estava vendo coisas! Nem tendo visões!

Durante a consulta, o médico disse que não encontrou anormalidades em meus olhos, mas de qualquer forma me encaminharia a um especialista para uma avaliação mais completa. Perguntei a ele se poderia esperar meu retorno para o Brasil previsto para final de abril. Ele sugeriu não aguardar. Na segunda-feira tentarei agendar a consulta com o especialista. Mas, após o exame de meus olhos, o médico capoeirista me informou que detectou os sinais iniciais de catarata. 

Essa informação me fez lembrar o que me disse o oftalmologista que me acompanha há mais de 15 anos em Curitiba. Certa vez, durante uma consulta, lhe perguntei sobre como surge a catarata. Dr. Idior é um profissional muito competente e muito didático. Muito atencioso, durante suas consultas sempre me explicou detalhadamente sobre meus problemas de visão. Nesse momento, ele pegou um dos modelos plásticos de olhos sobre sua mesa e me deu uma pequena aula sobre o surgimento e crescimento da catarata em nossos olhos. Ao final disse:

_ Todo mundo vai ter catarata um dia. Só não terá se morrer antes!

Em muitas ocasiões, conversamos sobre a possibilidade de eu fazer cirurgia para corrigir a visão. Era algo que planejava fazer, mas sempre adiava em função do custo, pois não seria coberta pelo plano de saúde. Na última vez que o consultei, quando minha situação financeira estava muito mais confortável, e eu disposto a fazer a cirurgia, ele mês respondeu:

_ Fernando, agora é melhor esperar a catarata surgir. Você já está em uma idade que convêm aguardar e fazer as duas cirurgias ao mesmo tempo.

Dr. Idior, além de médico atencioso e metódico, tem um humor muito sútil. Aprecio seu humor. Me diverti com a resposta e abri um sorriso amplo. Assim, com o passar dos anos, parece que vou desenvolvendo as doenças oculares da idade que avança. Espero que as moscas volantes sejam apenas consequência deste envelhecimento e não algo mais sério. Por enquanto, vou aproveitando o exercício do dom da visão. Não é sempre que se pode observar um felino tentando se fartar com um pequeno corvo, não é mesmo? Que venha a catarata e que eu continue nesta vida por muitos anos ainda! 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 8 - Quatro ícones holandeses

Então, eu sei que a leitora ou o leitor que acompanha esta série de crônicas, pode achar estranho o uso do adjetivo "holandês" e suas variações nos meus textos. Mas, é difícil mudar um hábito de toda uma vida assim de uma hora para outra. Embora eu tenho explicado, em outra crônica (https://brevestextos.blogspot.com/2021/11/cronicas-na-holanda-3-sobre-pessoas.html), que agora a Holanda deve ser chamada de Países Baixos, visto que Holanda é apenas uma parte desse país, para mim ainda surge automaticamente a palavra holandês para qualificar o povo e as coisas daqui. Afinal, será que alguém saberia do que eu quero falar se escrevesse neerlandês ou neerlandesa?
Desde a escola primária e secundária, aprendi sobre a Holanda e os holandeses. Principalmente nas aulas de geografia e história. Assim, com a devida vênia, como costumam se expressar os praticantes do Direito, sigo no uso do termo popular, mas consciente da minha falta de  precisão. Portanto, para não complicar muito minha vida e da meia dúzia de leitoras e leitores fiéis ao blog, continuarei usando o modo comum de me referir às pessoas, à vida e aos fatos desse país.
Todo esse falatório ou escrevinhatório serve apenas de mote para eu falar de quatro ícones da vida holandesa. É claro que pode ou deve haver outros pois a própria palavra "holandês" pode ser um ícone também que nos traz inúmeras imagens, indícios e significados . Três dos ícones que quero comentar são muito conhecidos por mim e, imagino por muita gente. O último, porém, só vim conhecer quando aqui cheguei.
Começo pelos mais comuns. Não há como negar que moinhos, canais e bicicletas são palavras e imagens que carregam um forte indício de vida holandesa ou sentimento de algo holandês. É claro que canais podem nos lembrar Veneza. Também, moinhos nos remetem à Espanha e as aventuras de Don Quijote de La Mancha narradas por Miguel de Cervantes. Mas, se falamos de canais, moinhos e bicicletas, não há como deixar de pensar em alguma paisagem holandesa, não é mesmo?
Por isso, na imagem que uso para ilustrar esta crônica juntei uma fotografia do Molen de Ster, moinho que fica no Molen Park em Utrecht. Ao lado do moinho, na fotografia e não na geografia, coloquei uma imagem do canal Kromme Niewegracht que fotografei hoje pela manhã a partir da Driftbrug (Ponte Drift) muito próxima à biblioteca da Utrecht University.
Na parte inferior da imagem, ao invés da fotografia de bicicletas, escolhi a fotografia de uma bomba manual de encher pneus de bicicletas. A bomba, um ícone por si só, me trouxe à memória lembranças do Supermercado Gimenez em Londrina. Tínhamos duas bicicletas utilizadas para entregas a domicilio e uma bomba desse tipo. Mas, isto é história para outro post. 
Aqui e agora quero falar do que me indiciou esta bomba de pneus de bicicleta em Utrecht. Esta fotografia tirei em frente a uma loja de venda, aluguel e consertos de bicicletas. A loja não é muito distante de onde moramos e, assim como observei em inúmeras outras lojas do tipo, que são abundantes em Utrecht, tem ao lado de fora esta bomba. Imagino que seja utilizada para encher os pneus das bicicletas que são vendidas ou alugadas. Mas, também, me parece ser uma cortesia aos inúmeros usuários de bicicleta que circulam na rua onde está instalada. Outro dia, quando voltava para casa, após uma caminhada, vi um senhor parando em frente à loja no seu trajeto de bicicleta para utilizar a bomba.
Por fim, chego ao quarto e último ícone holandês desta crônica. No canto direito e inferior da imagem estão SinterKlass e dois Zwarte Piet (São Nicolau e Pete Preto). A princípio, pensei ser a representação de Papai Noel, embora sem as renas. Mas, descobri que não tem nada a ver com as celebrações de Natal como estamos acostumados.
Como aprendi no livro sobre a Holanda que comentei na outra crônica mencionada ao início deste post, SinterKlass é celebrado a partir de meados de novembro, quando chega à Holanda vindo de barco da Espanha acompanhado de seus assistentes todos chamados de Zwarte Piet. Inspirada na generosidade de São Nicolau, em especial com as crianças, a tradição celebra o nascimento de SinterKlass no dia 5 de dezembro, com a troca de presentes na noite desse dia. Os assistentes de SinterKlass são os que sabem quais foram as crianças com bom ou mau comportamento, ou seja, quem merece e quem não merece ganhar presentes. É claro que, ao final, todas a crianças ganham presentes. Bem como os adultos. O interessante desta tradição é que as trocas de presentes são acompanhadas por pequenos poemas, com frases engraçadas, que aquele que dá o presente escreveu sobre quem ganha . Se referem, também, a situações vividas pelo destinatário do presente durante o ano. Pelo que entendi o poema é lido no momento da troca de presentes. A noite do 5 de dezembro se chama paksjeavond em holandês, a noite do presente. Muitas vezes, o presente pode ser feito por aquele que dá e se constitui em alguma "surpresa" para quem recebe.
Nos últimos anos tem havido resistência ao uso do nome Zwater Piet. Os assistentes de SinterKlass são representados por pessoas brancas com os rostos pintados de preto. A tradição diz que os Zwarte Pieten (plural de Piet em holandês) representam os moros que habitaram a Espanha. No entanto, devido a críticas associadas ao aparente racismo dessa representação, os Zwarte Pieten não têm mais pintado suas faces de preto. Como é, aliás, o caso dos dois que aparecem ao lado deste SinterKlass que fotografei hoje bem próximo à DriftBrug.  Eles têm sido chamados de Kleur Piet (Pete Colorido) ou Roet Piet (Pete fuligem), pois os rostos são coloridos com cinzas ou fuligem. 
Sobre uma coisa você pode ter certeza. SinterKlass e Santa Clauss não são a mesma tradição. Afinal, enquanto Santa Clauss vive no Pólo Norte e viaja em um trenó puxado por renas pelos céus frios do inverno, SinterKlass vive no Sul da Espanha e viaja para a Holanda pelos mares que, também, estão frios nesta época do ano. Ademais, o Natal é também celebrado três semana após a paksjeavond pelos holandeses que o chamam de Kerstmis. Com certeza, SinterKlass é mais um ícone que se adiciona aos outros três que me fazem imaginar alguma representação holandesa!


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Crônicas na Holanda 7 - Você não vai à universidade hoje, né?

Na semana passada, depois de descobrir que as vacinas que tomamos contra a Covid 19 no Brasil não eram aceitas pelo governo holandês, começamos um novo ciclo de vacinação aqui em Utrecht. A primeira dose da Pfizer-BioNtech recebemos no dia 22 de novembro. A segunda dose será em 13 de dezembro. Isto significa que, pelo calendário holandês de vacinação, a partir do dia 27 de dezembro estaremos imunizados. Mais uma vez!

Em termos práticos, do cotidiano da vida, a partir deste dia poderemos entrar em lugares públicos fechados, usando uma máscara facial, tais como bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus. Para fazer isso, teremos um código QR em nosso celular no aplicativo que é utilizado aqui na Holanda, o CoronaCheck. O consumo em lojas de varejo é permitido desde que usemos a máscara, sem a necessidade de apresentar o código.

Mas, até o dia 27, toda vez que quisermos fazer alguma atividade de lazer, temos que nos submeter a um teste rápido de antígeno cujo resultado é produzido em meia hora. Há todo um processo de agendamento do teste, em uma das várias unidades das empresas contratadas para fazer o serviço, que é gratuito para a população. Felizmente! O agendamento é feito pelo celular e depois de 24 horas, se quisermos sair novamente, por exemplo, ir a um bar ou restaurante, é necessário novo teste. Em meia hora recebemos o resultado que gera um código QR temporário no CoronaCheck. Há sempre a tensão da espera do resultado. Será negativo de novo? Ou, de alguma forma, nos descuidamos e estamos contaminados? Haja coração! Quando recebo o resultado negativo, brinco:

_ Oba! Temos mais 24 horas de farra pela frente! Vamos pra naiti?

Anteontem, um sábado, estávamos em nossa casa no campus da University College Utrecht quando Erik Stam me enviou uma mensagem pelo Whatsapp. Na mensagem sugeriu nos encontrarmos na manhã de domingo para um café no Wilhelmina Park. Seria uma oportunidade de ele conhecer minha esposa e de nós conhecermos sua esposa. Fizemos o teste em uma unidade muito próxima de onde estamos morando, no final da tarde, e meia hora depois com o resultado negativo, confirmamos o encontro dos casais. Erik e Mirgian foram muito simpáticos e passamos pouco mais de uma hora muito agradável. Nada falamos de trabalho, exceto ao nos despedirmos quando Erik lembrou de nosso encontro previsto para quinta-feira para discutirmos a continuidade de minha pesquisa por aqui.  

Quanto ao convívio com a pandemia de Covid 19, vamos nos ajustando às demandas que surgem dessa doença que, às vezes, nos parece implacável. Houve um recrudescimento da situação da pandemia por aqui. Todo cuidado é pouco! Ontem começaram as novas restrições e recomendações do governo holandês para a população em geral. Entre elas, se puder trabalhe de casa, todas as lojas e serviços não essenciais devem encerrar as atividades às 17 horas e reabrir, somente, após às cinco horas da manhã do dia seguinte. Supermercados, farmácias e outros tipos de negócios ditos essenciais podem ficar abertos até as 20 horas. O uso do aplicativo continua obrigatório, bem como os testes rápidos enquanto não se obtém a comprovação de imunização. Escolas e universidade continuam abertas e recebendo os alunos e alunas, mas com muitas recomendações. E por aí vai!

Mas, a essa altura você deve estar se perguntando sobre o porquê do título dessa crônica, não é? Pois então, depois da primeira dose da Pfizer-BioNtech, minha terceira dose de vacina contra a Covid 19, eu senti alguns sintomas colaterais leves. Fiquei um pouco febril, nada demasiado, e com algumas dores pelo corpo. Os famosos sintomas de uma gripe! Fiquei tranquilo, é claro! Contanto, como sempre, vou narrando os acontecimentos da vida em Utrecht para Paloma e Fernanda. Disse a elas sobre os efeitos colaterais da terceira dose. Nos comunicamos, principalmente, pelo Whatsapp. Fernanda está em Curitiba e Paloma em Austin, Texas. Nos últimos 14 dias, Paloma estava no Brasil passando férias com a irmã e Telma. Assim, aproveitamos e fizemos uma "live" entre pai e filhas para matar as saudades. No dia seguinte à vacinação, recebi de Fernanda uma mensagem que, após saber de meus sintomas, escreveu no Whatsapp:

_ Você não vai à universidade hoje, né?

Minha primeira resposta foi:

_ Não. Vou ficar em casa.

Mas, em seguida, completei:

_ Eu moro na universidade! Kkkkkkkkkkk.

Estou a três minutos de caminhada de minha sala. No entanto, nos dois primeiros dias após a vacina fiquei trabalhando em casa. Na quinta-feira, fui trabalhar na escrivaninha que estou ocupando na sala 2.06 do Adam Smith Hall. Na sexta-feira, trabalhei em casa. Assim, vou tocando a vida por aqui. Às vezes, trabalhando em casa, às vezes em minha sala, que por enquanto divido com dois jovens pesquisadores: Jacob que é holandês; e David, da África do Sul. É bom encontrar pessoas diferentes de vez em quando, não? Na próxima quinta-feira, por exemplo, conversarei com Erik em sua sala, também no Adam Smith Hall. Outro dia, um professor me viu no corredor e se apresentou, ao mesmo tempo em que indagava quem eu era. Professor de econometria, cujo nome me foge agora, muito simpático também, me deu boas vindas, disse que tem um orientando brasileiro e que, qualquer dia me apresentará a ele. Os acasos da vida nos aproximando de outros seres humanos. Isso é bom!

Porém, nesses encontros, observo as recomendações do governo e das autoridades universitárias. Andando pelo prédio devidamente mascarado e, quando em minha estação de trabalho, sem máscara, a uma distância de pelos menos um metro e meio daqueles que estão no mesmo espaço. Higienização das mãos frequentemente também é recomendado. No site da universidade há, inclusive, um fluxo de perguntas cujas respostas são "sim" ou "não" e, a partir delas, você é orientado a ficar em casa, procurar ajuda médica, ou ir para seu ambiente de trabalho. É o Corona check em formato de uma lista de perguntas. Quando de nossa chegada a Utrecht, além das boas-vindas que recebi por correio eletrônico do Diretor Administrativo da Utrecht University School of Economics ele recomendou:

_ Faça o corona check neste link (https://www.uu.nl/sites/default/files/2021%20-%20Corona%20Checkkaart_EN_V6.pdf).

Eu obedeci é claro! E, ao final, fui pela primeira vez à minha sala de trabalho como mostrei na fotografia que ilustra a crônica de número 4 desta série (https://www.blogger.com/blog/post/edit/3364913166267191934/752385384126965484)

A vida segue. Com uma esperança: que a situação não fuja de controle e que não tenhamos que ficar confinados em casa durante muito tempo. Por mais que a vista da janela seja bonita! Mesmo em um dia nublado.



segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Crônicas na Holanda 6 - Alguém disse que seria fácil?

É não é que esta crônica veio bem mais rápida do que a anterior! A de número 5 levou dez dias para tomar a forma escrita. Esta que agora escrevo, nasce em pouco mais de 24 horas. Veja só!
Ontem contei sobre as dificuldades de documentação e de legalização da nossa situação aqui na Holanda. Para hoje, se você se lembra da crônica anterior, nossa tarefa seria obter o reconhecimento de nossos certificados de vacinação contra a Covid 19 no Brasil. Ah, você não leu a crônica anterior? Dá uma olhadinha lá (https://brevestextos.blogspot.com/2021/11/cronicas-na-holanda-5-burocracia-e.html?m=1) antes de continuar por aqui. Pode ser legal. Pelo menos para mim, blogueiro,  pois vai aumentar as estatísticas de acesso ao blog! Hoje, estou querendo fazer graça. Mas, para você também será legal a leitura. Tenho certeza!
Acordei cedo hoje e, depois do café da manhã, me pus a caminho da unidade de saúde de Utrecht onde apresentaria a documentação para ter meu "corona pass" no celular. Decidi juntar o útil ao agradável, e fui caminhando. O local fica ao lado da estação central de trem de Utrecht onde já estive algumas vezes. Uma caminhada de 45 minutos,.com uma parada rápida em uma empresa de fotocópias para imprimir alguns dos comprovantes que precisaria. Em especial, nossas carteiras de vacinação que ontem conseguimos no aplicativo do SUS brasileiro. Cheguei ao local cinco minutos adiantado. Esperei pouco para ser atendido. Logo depois de outro estrangeiro que stava à minha frente. A atendente pediu que me aproximasse e, após minha explicação da situação, ela começou a manusear a papelada. Assim que viu que nossa vacina era Astrazeneca fabricada pela FIOCRUZ, ela ficou muito constrangida e me informou que nossa vacina não era reconhecida pelo governo holandês. Você acredita? 
Eu fiquei estupefato! Tentei entender melhor a situação e, depois de algum tempo, vi que não tinha jeito. A moça acabou me sugerindo que fosse buscar orientação em outra unidade de saúde onde estao sendo feitos os testes de coronavirus e a vacinação. Foi muito cortês e até me levou próximo à janela para me mostrar como chegar ao local.
Lá fui eu para mais um pouco de caminhada por esta Utrecht que hoje estava um pouco mais fria e, ao mesmo tempo, ensolarada. Chegando ao local, contei a história à primeira atendente que me levou a outra. Contei a história de novo, a moça pediu que eu respondesse um questionário sobre coronavirus. Em seguida, me levou à proxima atendente. Repeti a história de que sou do Brasil, minha vacinação não é reconhecida pelo governo holandês. O que fazer? Esta falou para a outra que eu deveriar passar pelos médicos antes.
Me levou a um guichê com dois profissionais: uma mulher mais ou menos da minha idade e um jovem médico entre 30 e 35 anos. Ao ouvirem minha história, acharam um absurdo. Como que minhas vacinas não eram reconhecidas pelo governo holandês. Foram muito solidários comigo. Mas, o que fazer?
O jovem entrou em contato com o coordenador e, logo em seguida, também constrangido me disse que eu teria que ser vacinado novamente, caso estivesse de acordo. Duas doses da Pfizer em um intervalo de três semanas.
Pois é, como você pode ver pela fotografia desta crônica, aceitei a sugestão. No entanto, antes de me vacinar, voltei para casa, pus a companheira a par da situação e, após o almoço lá fomos nós para a vacinação holandesa. Torcendo para os efeitos colaterais não serem muito intensos. Duas semanas depois da segunda dose, teremos nossos "coronas passes".
Como esta crônica tem o mote do não fácil, tem mais uma dificuldade que enfrentamos. Dessa vez em nosso apartamento na Utrecht University. Quando pegamos as chaves, após algum tempo de descanso, resolvemos checar o inventário dos pertences e mobiliário que estão nele. O inventário me foi enviado por correio eletrônico com a instrução de informar caso algo não estivesse correto. Depois da inspeção, verificamos que um par de tesouras de cozinha não se encontravam no apartamento, apesar de listados no inventário.
Dessa forma teria que informar a administradora. Quis, porém, aproveitar a mensagem e pedir uma cópia extra da chave. Com uma segunda chave, teremos mais flexibilidade em nossas atividades que nem sempre serão a dois. Por fim, aproveitei a mensagem para perguntar qual a utilidade de um botão redondo que parecia um controle de algum equipamento elétrico, pois além de fixo à parede, ao lado da janela, estava ligado por um fio a uma tomada. São dois. Um na sala e outro no quarto.
Girei o botão para um lado. Depois para o outro. Aparentemente, nada aconteceu. Ao menos dentro do apartamento. Fiz isso na sala. Depois repeti os movimentos no quarto. Nada! Um mistério!
Tirei uma fotografia de um deles e anexei à minha mensagem peguntando para que serviam? Se era importante eu saber usá-los? Procurei até no Google. Descobri que são um tipo de controle muito comum em aparelhos elétricos que fazem um movimento giratório. Ventiladores, por exemplo. Mas, no apartamento não tem ventilador!
No dia seguinte, voltando de minha sala de trabalho, vi que as janelas dos apartamentos, inclusive o nosso, têm toldos. Alguns estavam abaixados, outros erguidos. Entrei no apartamento, fui até a janela da sala e virei o botão para um lado com uma seta apontando para baixo. Olhei para a janela. Bingo! O toldo estava abaixando. Virei para o outro lado com a seta para a cima. O toldo começou a subir. 
Logo depois mandei uma mensagem para a administradora:
_ Não se preocupe. Já sei para que serve o botão giratório (round switch).
Agora no final da tarde, ela informou que amanhã trará as tesouras. Quanto à chave, vai ver se há uma cópia extra.
Enfim, nem sempre as coisas são fáceis. Mas, com um pouco de paciência elas vão se resolvendo. Algumas de forma tranquila e outras com um pouquinho mais de dor. Mais duas injeções!

domingo, 21 de novembro de 2021

Crônicas na Holanda 5 - Burocracia e jeitinho é só no Brasil?

Depois de exatos 31 dias em Amsterdam, no último dia 18 nos mudamos para Utrecht. A princípio nossa estada em Amsterdam seria até 31 de dezembro. Neste período, eu iria para Utrecht por trem para desenvolver minhas atividades no pós doutorado.
Apesar da viagem rápida entre as duas cidades, vinte minutos apenas, com os deslocamentos de casa para a  estação Amstel em Amsterdam e da estação Central em Utrecht até a Utrech University School of Economics, a viagem duraria mais 50 minutos. Ou seja, nos trajetos de ida e volta, a cada viagem um total de duas horas e vinte minutos. Sem contar os gastos das passagens de ida e volta, em torno de sete euros por dia.
No entanto, mais do que o tempo de viagem e a despesa em euros, o que mais me incomodava na situação era uma sensação de transitoriedade. Ou um sentimento desconfortável de uma situação ainda provisória. Quase que diariamente, lidava com esse desconforto, quase angústia, com caminhadas pela Amsterdam que estávamos conhecendo. em especial na região do Oosterpark e às margens do Amstel.
Neste contexto, sentia dificuldades de focar em meu projeto. Apesar de minha forte disciplina e capacidade de concentração elevada, me sentia quase um turista em Amsterdam. Felizmente, meu cronograma de estudo previu 30 dias de revisão da literatura recente em meu tema de pesquisa. Consegui fazer novas leituras e rever outras em Amsterdam mesmo, embora tenha vindo algumas vezes para Utrecht. Me dediquei também à revisão de um livro no tema de meu pós doutoramento que será lançado em abril do ano que vem em Curitiba. Uma parceria com Rafael Stefenon e Edmundo Inácio Júnior, estimados amigos e dedicados estudiosos do empreendedorismo. Estas leituras, inclusive do livro inédito,  me permitiram pensar alguns ajustes no trabalho empírico que começarei em breve.
Ainda em Amsterdam, certo dia resolvi acessar o site da unidade de administração dos apartamentos da universidade que são alugados para períodos de curta duração. É o caso da minha estadia na Utrecht University. Localizei um apartamento disponível a partir do dia 18 de novembro. E melhor ainda, no mesmo prédio para onde nos mudaríamos em janeiro. Tentei reservar pelo próprio site, mas não consegui. Depois, tentei por correio eletrônico. Duas ou três mensagens. Também sem resposta. Por fim, decidi ligar. Sucesso! E ainda, com um pouco de flexibilidade. A princípio os períodos de aluguel se iniciam sempre na primeira terça-feira de cada mês. Mas, concordaram com nossa entrada antecipada no dia 18. Afinal, um pouco mais de renda com o aluguel não faz mal a ninguém! E aqui estamos.
Aliás este episódio me permitiu uma comparação cultural. Seria o jeitinho algo especificamente brasileiro? Ou há chances de um jeitinho holandês?
Quando estava começando os preparativos para este período de estudos na Holanda, o professor com quem estou trabalhando aqui, me colocou em contato com um funcionário da universidade e me disse:
_ Willem vai lhe ajudar com a burocracia holandesa.
Nossa interação foi por correio eletrônico. E, realmente, foi um processo lento e complicado de busca de documentos meus e de Edra que precisaram ser traduzidos, impressos, assinados, registrados em cartório e, por fim, digitalizados e enviados por correio eletrônico. Além de Willem e sua equipe na Utrecht University School of Economics, tive o apoio da equipe da unidade internacional da Utrecht University. Depois de muito esforço de preparação dos documentos, tradução para o inglês pela minha querida irmã Kilda Gimenez, tradutora juramentada a quem serei eternamente grato, aprovação pela imigração holandesa, ida ao consulado da Holanda em São Paulo, o processo foi concluído. Dez dias antes do prazo previsto para minha chegada em Amsterdam, recebemos os passaportes com os vistos aprovados e compramos a passagem para o dia 17 de outubro. 
A viagem teve alguns contratempos. Mas, isto você, talvez, já saiba se leu a primeira crônica desta série. Se não o fez, fica o convite para fazê-lo neste mesmo "batcanal"! (Batcanal é uma expressão que só os mais "experientes" conhecem).
Neste processo todo, havia uma etapa que me preocupava  muito. Ao chegar na Holanda, deveríamos nos registrar na municipalidade de Utrecht para termos um número de seguridade social. É um requisito essencial para uma permanência legalizada na Holanda por tempo superior a três meses. Para isso seria necessário ter um endereço na região de Utrecht, da qual Amsterdam não faz parte. Para nossa felicidade, não é que teve o jeitinho holandês! Fui informado que poderíamos ter um documento da Utrecht University com um endereço provisório. No entanto, não poderia dizer que estávamos em Amsterdam temporariamente. Com os documentos necessários, fizemos nosso registro e estamos legalizados na Holanda. Ninguém nos perguntou onde estávamos hospedados.
Mas, nem sempre o jeitinho holandês funciona! Devido à situação de pandemia da Covid 19, a Holanda e os outros países da União Europeia criaram um "corona pass" que deve ser mostrado em bares, restaurantes, museus e outros espaços públicos de entrada controlada. Isto é feito por meio de um aplicativo de celular. Mas, há um problema! O aplicativo usa o número de seguridade social para verificar se a pessoa já recebeu as duas doses de vacina na Holanda. Quem recebeu uma ou as duas doses em outro país, que não seja da União Europeia, deve agendar um atendimento presencial na unidade de saúde regional e apresentar o comprovante de vacinação do país de origem. Aparentemente simples, não é?
Mais ou menos, na verdade! O agendamento deve ser feito por telefone e o comprovante de vacinação tem que atender uma série de requisitos. A princípio nossa carteira de vacinação impressa ou do aplicativo da prefeitura de Curitiba atende aos requisitos. Chequei antes de fazer a ligação. Afinal, brasileiro já é escolado com burocracia, não é? Não importa se própria ou estrangeira, a gente aprende a vencer a "batalha do papel". Agora, nos tempos contemporâneos, a "batalha do arquivo digital".
Cheio de confiança, peguei meu celular e liguei com meu número holandês. Um pré-pago! Expliquei a situação: casal brasileiro, vacinados com duas doses de AstraZeneca, já com número de seguridade social e permissão de residência na Holanda até dia 18 de abril de 2022, querendo ter o corona pass.
Depois de responder uma grande quantidade de perguntas, a pessoa do outro lado da linha aceitou fazer meu agendamento. Eu sei que celular não tem linha, mas não importa! Você deve conhecer esta expressão brasileira sobre conversas telefônicas. Confirmada minha entrevista para segunda-feira pela manhã, indaguei:
_ Vamos agendar o atendimento de minha esposa?
_ Ela está aí ao seu lado?
_ Não. Estou em minha sala na universidade.
_ Então não posso fazer. Ela precisa confirmar que quer fazê-lo.
Não teve jeito, nem jeitinho! Ao final da tarde, contei para ela o acontecido. Tentei fazer o agendamento com ela a meu lado. Já tinha passado da hora de fechamento do atendimento. Ficou para o dia seguinte. Na manhã seguinte, conseguimos fazer o agendamento dela. No mesmo "batcanal", mas não na mesma "bathora". Ela será atendida na segunda à tarde. Tudo devidamente confirmado por correio eletrônico e mensagens no celular.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Crônicas na Holanda 4 - Espantos, encantamentos e demandas do cotidiano

Entre o espanto com o estrangeiro, o encantamento com a paisagem e as demandas da vida institucionalizada, um cotidiano aos poucos vai sendo construído. No país que nos acolherá por seis meses, se quiser precisão, leitora ou leitor, serão 183 dias e noites em terras holandesas. Entre a chegada no dezessete de outubro de dois mil e vinte e um e a partida prevista para o dezoito de abril de dois mil e  vinte e dois. Por extenso! Para enganar Cronos que faz o tempo ser tão curto face às demandas, desejos e planos que integram a vida.
Enquanto escrevo mais uma dessas crônicas na Holanda, a de número 4,  Cronos já nos consumiu 23 noites/dias. Como você pode conferir, leitora ou leitor da precisão, são 12,57% do tempo que nos cabe neste cronofúndio!
Entre ontem e hoje, vencemos duas batalhas institucionais que nos eram demandadas das autoridades holandesas. Ontem, na municipalidade, obtivemos nosso numero de registro que, entre outras coisas, garante a possibilidade de uma vida "legalizada" em Utrecht com endereço provisório fornecido pela Utrecht University. A partir do dia 18, estaremos em apartamento alugado no campus universitário. Apenas, três minutos de caminhada até minha sala de trabalho. Em que, ontem também, já trabalhei as primeiras horas em minha "desk". Ao menos, no deslocamento casa/trabalho, poderei ser mais rápido que Cronos (pura ilusão deste escriba, é claro!).
E hoje, a segunda batalha institucional vencida. Obtivemos nosso "residence permit", um cartão de identidade, fornecido pelo departamento de imigração. Será nossa identidade neste tempo que nos resta em terras holandesas. Até o dezoito de abril do próximo ano que é a data de validade registrada em ambos os cartões, de Edra e meu, nossos passaportes serão desnecessários nos Países Baixos.
Desde a chegada, vamos criando nossas rotinas. Leituras, escritas, refeições, passeios. Entre estas, vou tentando, por meio de site gratuito na internet, a aprendizagem do holandês. Não é obrigatório, já que a língua inglesa permite um diálogo com praticamente qualquer pessoa por aqui. Mas, desejo ser capaz de um mínimo de conversa em holandês. 
Entre alsjebliefts, goedemorgens e dank je wels (por favores, bons dias e obrigados), aos poucos vou construindo uma pouca competência linguística que pemite conseguir um sorriso como ocorreu ontem ao comprar um sanduíche e agradecer com "dank je wel". Além do sorriso, um estímulo com um "very good".
Ontem, enquanto conversava com dois jovens pesquisadores que dividirão a sala comigo, um deles peguntou-me se tinha planos de adotar a bicicleta como meio de transporte.
A princípio disse que não, pois estarei morando tão próximo ao prédio da Escola de Economia da Utrecht University onde realizarei o pós doutorado. No entanto confessei a ele e o outro colega o meu espanto com a velocidade em que os locais andam de bicicleta. São muto rápidos! Além do espanto, confessei meu medo também. Receio sofrer algum acidente por falta de competência no trânsito ciclístico de Utrecht.
Mas, quem sabe mais à frente, com um pouco mais de vida cotidiana em Utrecht, eu acabe criando coragem e tente essa modalidade de transporte. É um "mar" de bicicletas! 
Preciso ver se meu seguro cobre acidentes de trânsito com bicicletas. Mas, não tenha dúvidas, minha cara leitora e caro leitor: um dia vou experimentar. Depois lhes conto!

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Crônicas na Holanda 3 - Sobre pessoas, livros e valores

Hoje é o 18º. dia de estada em Amsterdam. Em duas semanas, estaremos morando em Utrecht. Nossa estada lá será pelos cinco meses restantes de meu pós-doutorado na Utrecht University. Minhas atividades de pesquisa começaram, formalmente, no dia 20 quando Erik Stam me recebeu para nossa primeira reunião na Utrecht University School of Economics. Nosso encontro estava agendado para as 13 horas. Eu cheguei meia hora mais cedo. Erik foi quase pontuou. Poucos minutos após a hora marcada. Como diria Fernanda, minha filha: Susse!

Foi nosso primeiro encontro presencial. Ele me cumprimentou de forma quase esfuziante, muito simpático e sorridente com um "Oi Fernando, finalmente nos encontramos pessoalmente. Seja bem-vindo a Utrecht e nossa universidade". Já havíamos nos falado em uma conversa online, quando conversamos sobre minha vinda para a Holanda, e nos encontramos, também online, em uma sessão de um evento científico, o Babson College Entrepreneurship Research Conference, edição de 2021.

Depois de nossas falas iniciais, Erik me perguntou se me incomodaria se fizéssemos um "walking lunch". Me informou que, em geral, os holandeses fazem um almoço leve. Obviamente, aceitei a sugestão e fomos caminhando até um pequeno restaurante próximo do campus onde realizarei meus estudos. No caminho, falamos um pouco sobre a situação da pandemia, tanto no Brasil quanto na Holanda, sobre as respectivas famílias e, naturalmente, sobre meu projeto de pesquisa.

Ao chegarmos ao restaurante, cada um de nós escolheu seu sanduíche que, após ficarem prontos, Erik pagou a conta e iniciamos nosso caminho de volta, conversando e comendo. Na volta, Erik fez um pequeno "tour" comigo no campus, me contando um pouco da história do lugar. Depois, voltamos para sua sala e trocamos as primeiras ideias sobre como avançar com minhas atividades de pós-doutorado. Pouco antes das 14 horas, ele me disse que tinha outros compromissos. Agradeci a atenção e simpatia dele, combinamos os próximos passos e pedi que ele me indicasse uma sala onde pudesse me sentar, pois dali meia hora teria uma entrevista online com Marja, a funcionária da unidade responsável pela recepção e orientação dos pesquisadores e estudantes estrangeiros que vêm para a Utrecht University.

Foi Marja quem me orientou pelo longo processo de preparação de documentos e procedimentos necessários para obtenção do visto holandês que foi, finalmente, concluído, cerca de duas semanas antes do dia que embarcamos para cá. Muito competente, Marja já havia me informado sobre o conteúdo que seria tratado em nossa conversa e passou por cada um dos tópicos, me dando as orientações e recomendações necessárias. Depois da reunião, me enviou uma mensagem de correio eletrônico com todas as informações e documentos que precisarei em minha vida na Holanda. Foi nessa reunião que Marja pediu o endereço de onde estamos ficando em Amsterdam e me disse que enviaria um pacote de boas vindas pelo correio (uma welcome box). Uma semana depois, o carteiro chegou com uma caixa em que havia, entre muitos folhetos, uma bolsa da Utrecht University, um cartão de transporte público já carregado com 20 euros para meu uso, e a 21ª. edição do Holland Handbook – The indispensable guide to the Netherlands.

Durante a entrevista, Marja me informou também que, quando nos mudarmos para Utrecht receberemos em nosso apartamento uma caixa com produtos de uso residencial e alimentos que será entregue por um supermercado. Aliás, quando a informei que consegui um apartamento para nos mudarmos já no próximo dia 18, ela perguntou se eu não me importaria de receber a caixa do supermercado no dia 20, um sábado, já que precisaremos ficar em casa até a encomenda chegar, pois não é possível agendar uma hora precisa. Foi uma recepção da qual não posso reclamar, não acha?

Dois dias atrás, comecei a ler o Holland Handbook. No primeiro capítulo, um pouco da história e dos costumes de vida nesse país em que estaremos por seis meses. Fiquei sabendo porque o país é chamado de Holanda, quando seu nome é Países Baixos (Netherlands). Tem a ver com a forte presença da região denominada Holanda (do norte e do sul) nos primeiros períodos de atuação no comércio mundial. Ou seja, a parte, Holanda, foi tomada pelo todo, Países Baixos. Aprendi sobre o sistema político, a monarquia, um pouco da economia., costumes em datas especiais e festividades.

Mas, o que mais me chamou a atenção foi um texto, já no segundo capítulo, escrito por Arnold Enklaar cujo título é Twelve clues to understanding Dutch mentality (Doze dicas para entender a mentalidade holandesa). No texto, o autor comenta sobre 12 princípios ou valores que fazem parte da cultura holandesa e como eles podem ajudar a entender seu povo. Os nove primeiros têm origem na religião cristã (Catolicismo e Protestantismo), enquanto os três últimos dizem mais respeito a um comportamento mais tipicamente holandês, pelo menos na visão do autor. Eles são: consenso, no sentido de que os holandeses, em geral, evitam conflitos e tentam buscar soluções de harmonia e compromisso entre as partes; igualdade, ou seja, não se deve pensar que somos melhores do que o outro; e autodeterminação, você é quem decide o que você faz e não seus pais, chefe ou governo. Apesar dos riscos de estereotipagem, sabe que fiquei positivamente impressionado com estes três princípios. Tem tudo a ver como minha visão de mundo!

Então, vou aprendendo sobre a Holanda, seja lendo, seja caminhando por lugares novos, seja interagindo com pessoas nas lojas em que tenho que fazer compras. Em geral, a forma atenciosa e gentil com que nos tratam me deixa muito alegre. Quando percebem que não falo holandês, imediatamente mudam para o inglês. Assim como Erik e Marja, em cada interação com as pessoas daqui recebo um tratamento respeitoso, educado e gentil. Por exemplo, outro dia fiquei confuso sobre como comprar um ticket em uma estação de metrô. Perguntei a um dos funcionários que estava no hall da estação. Ele foi comigo até a máquina e me orientou por todo o processo com muita gentileza e falando em inglês enquanto eu apertava os "botões" escritos em holandês!

Mas, para além da interação com pessoas, entre as muitas coisas diferentes que já vi, tem uma que me deixou encantado. Em vários lugares, percebi a existência de pequenas bibliotecas em frente a residências ou pequenas lojas. Há uma bem ao lado do prédio onde estamos morando. São bibliotecas de acesso livre, tanto para pegar livros, quanto para doar. Quem quiser pode pegar um livro e deixar outro. Se não tiver um para deixar, pode devolver o livro que pegou após terminar a leitura. Não é uma coisa específica da Holanda, mas me parece que, pelo menos em Amsterdam, é muito comum. Outro dia vi uma senhora escolhendo um livro. Ontem, vi um senhor organizando os livros na pequena biblioteca. É muito provável que seja o idealizador da biblioteca da Vrolikstraat, nome da rua onde estamos temporariamente residindo.

Ao passar por ele, fiquei curioso em saber qual seria a reação dele ao ver que, na pequena biblioteca já tem um exemplar do “Nos tempos do Gimenez”. Pois é, não resisti à tentação e, ao mesmo tempo obrigação, de deixar meu livro mais recente à disposição de algum leitor ou leitora que eventualmente domine nossa língua. Fiz isso, porque outro dia, fuçando nos livros da pequena biblioteca encontrei um livro de bolso com tirinhas do Snoopy e Charlie Brown que adorava ler em minha adolescência. É um exemplar publicado em 1971 por uma editora de Utrecht (olha a coincidência!). Afinal, preciso continuar meu esforço diário de aprender holandês. E neste livreto há uma vantagem: às vezes são só imagens, sem textos. Charles M. Schulz foi um mestre dos quadrinhos que dominava a arte de comunicar apenas com desenhos também!



quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Crônicas na Holanda 2 - Caminhadas e oliebollen: calorias em balanço?

Perto de onde estamos morando em Amsterdam, encontrei o Oosterpark. Seu canto mais próximo fica a 350 metros, bem em frente ao Bar Bukowski. Além da beleza, a proximidade do parque permite que eu mantenha o saudável hábito das caminhadas.
Quase que diariamente, as fazia em Curitiba. Ao redor do Passeio Público, às segundas quando fechado, ou dentro nos outros dias. Aos sábados, a caminhada era substituída pelas compras na feira de orgânicos que lá acontece pela manhã. Somente aos sábados. Aos domingos, o descanso e ócio merecidos. Afinal, é o sétimo dia!
O Oosterpark é maior que o Passeio Público. Mas, não muito. Já fiz caminhadas nele pela manhã, no meio da tarde e ao final do dia. Em média, duas voltas por seu perímetro interno a cada visita. Em ritmo um pouco acelerado. Afinal não é passeio, mas sim caminhadas.Não chego a suar, mas o corpo se aquece neste dias frios de outono em Amsterdam. Calorias são gastas. Sem dúvida!
Em direção oposta ao Oosterpark, também cerca de 300 metros de distância do apartamento, há um quiosque que vende algo típico da Holanda, os oliebollen. Da primeira vez que experimentei, ao perguntar à mulher que me atendia o que era, ela os descreveu como os donuts holandeses.
Me lembrou muito a massa dos sonhos, que desde minha infância, marcaram minhas idas a Curitiba com minha mãe, quando visitávamos tia Edy, tio Carlos e as primas Carmen e Maysa. São fritos e podem, na hora da compra, serem passados em um açúcar muito fino. Há os naturais e os com frutas (maçã, uva passa, banana). Há inclusive os com recheio de creme de baunilha que são idênticos aos sonhos. Mas, há uma diferença na consistência da massa e sua cor interna. É mais escura e menos dura, parece até um pouco crua. Porém, para mim, são deliciosos os olenbollen!
Então, após as caminhadas, um novo hábito vou adquirindo. Ao invés de voltar diteto do Oosterpark para casa, estico a caminhada até a Oliebollenkraam.  Já estou até arriscando um bom dia ou boa tarde em holandês e, é claro, também um muito obrigado nesta língua que estou aprendendo um pouco a cada dia.
Me parece um pequeno negócio familiar, pois muitas vezes vi um casal dividindo o atendimento aos clientes. Qualquer dia perguntarei sobre eles e o negócio. Mas, terá que ser em inglês! Quem me conhece, sabe que adoro conversar sobre pequenas empresas com seus criadores.
Voltando às caminhadas, minha esperança é que as calorias nelas gastas sejam, ao menos, na mesma quantidade das que recupero com cada oliebol.
Porém, ainda desejo diversificar o que consumo após as caminhadas. Qualquer dia, ao invés do oliebol, vou tomar uma ceveja ou uma taça de vinho no Bar Bukowsvi. Afinal, nem só com açúcar se recuperam calorias! Ou, nem só de açúcar vive um homem!

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Crônicas na Holanda 1 - Um flamingo no jardim

Nossa chegada em Amsterdam foi antecipada. Ao fazer o check-in online, ainda no hotel em São Paulo, me assustei. Eram quase meio-dia do sábado, com vôo previsto para as 19:45 do mesmo dia. No entanto, ao ler o cartão de embarque, a notícia: embarque previsto para dali a uma hora e vôo em duas horas!
Com o coração quase saindo pela boca, falei: Temos que ir para o aeroporto rápido! Anteciparam o vôo. Fechamos as malas, descemos, check-out do hotel já feito, corremos para a porta e embarcamos no primeiro táxi estacionado no hotel.
A caminho do aeroporto, duas constatações. A primeira é que o vôo havia sido atrasado. Não antecipado. Saíria as duas horas da madrugada do domingo. Alívio! Logo seguido por outro apuro. Olhei na mochila e não encontrei os testes negativos de Covid necessários para embarcar e entrar na Holanda. Paramos o táxi para checar se não estariam nas outras bagagens de mão que havíamos terminado de fechar no hotel. Nada! Voltamos ao hotel. Por sorte, estavam ainda dentro da sacola da farmácia, em que fizemos o teste, no chão do apartamento ainda não limpo após nossa saída.
Aliviados, voltamos ao táxi e, ao chegarmos no aeroporto, fomos imediatamente ao check-in. A atendente nos informou que poderia nos embarcar em um vôo com escala em Paris. Não precisaríamos esperar até a madrugada. Resultado? Chegamos uma hora mais cedo do que o previsto. Pouco mais de uma hora depois, apertei a campainha do apartamento que será nossa morada em Amsterdam até a mudança para Utrecht. João, que nos esperava para entregar as chaves, atendeu ao interfone e acionou a liberação da porta do prédio.
Para nossa surpresa, ao abrí-la, nos deparamos com uma escada estreita e íngreme. Nosso apartamento distante 48 degraus! Cada degrau da largura, no máximo, da metade de meus pés!
Subimos com cuidado e lentamente. Ofegantes, carregando as cinco peças de bagagem, ajudados por João, chegamos à porta do apartamento. Depois de um copo d'água, fomos apresentados às nossas acomodações. Muito boas! Aos fundos, à direita da cozinha, há uma sacada. Do alto do terceiro andar, olho para baixo. No jardim, aos fundos do prédio, em meio à vegetação ainda verde, se destacou um flamingo. Além do flamingo, que não é natural, apenas uma escultura de jardim, muitas folhas já amareladas pelo outono. Duas magpies, aves que nunca soube o nome em português e que hoje, na Wikipédia, descobri ser pega-rabuda, sobrevoaram o jardim e soaram o seu canto característico, exibindo seus corpos esguios em branco e preto. Como se nos dessem as boas-vindas. Ao mesmo tempo, mais distante, ouço o ruído da passagem de um trem. 
A cena me sossegou o coração. Feliz, voltei para dentro do apartamento. Na esperança de que a estada na Holanda tenha a diversidade das cores e sons deste primeiro momento. E que meus estudos por aqui sejam desafiadores, mas não tão difíceis quanto a escada de 48 degraus!

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Na biblioteca, um conto surreal

O relato de Arthur Gordon Pym, o solteirão nobre, foi sobre a mulher mais linda da cidade, Lucíola, a mulher do Silva. Eram histórias sicilianas, histórias de amor e de vagões e vagabundos.
O desejo pego pelo rabo, enquanto a noite não chega. Orgias em paraísos artificiais, amor de perdição entre a cidade e as serras, e sem plumas. Um escândalo na Boêmia.
O grande deflorador  e a mulher de trinta anos. Em uma casa de pensão, armadilha mortal, com a luneta mágica e o colar de veludo. Que loucura! Uma temporada no inferno de espumas flutuantes.
Aurélia, a moreninha, Iracema, a mensageira das violetas, Carmen, a ciclista solitária, e Marília de Dirceu, a bela adormecida liam cartas portuguesas. Dançar tango em Porto Alegre com Esaú e Jacó queria a viuvinha. Viva e deixe morrer, senhora, a propriedade privada é um roubo. Dizia a megera domada. O marido complacente, o gaúcho, teve sonho de uma noite de verão. Acordou e se despediu: adeus, minha adorada.
Em cinco minutos, no cortiço, a ilustre casa de Ramires, de repente acidentes. Uivo do alienista. O gato no escuro. Romeu e Julieta unidos para sempre. Os crimes do amor. O monstro da gruta.
Antes e depois, os bandoleiros, no Cassino Royale, sem gentidades, pediram ajuda ao pirotécnico Zacarias, o sertanejo. Causaram os sofrimentos do jovem Werther, o vampiro de Sussex.
Após dias e noites de amor e guerra, uma noite na taverna e o duelo. O triste fim de Policarpo Quaresma no vale do terror.  Enquanto isso, a mãe do Freud  abria a correspondência de Fradique Mendes e Teresa filósofa fazia um estudo em vermelho.
Em o livro dos sonhos,  notas de um velho safado. Don Juan, com sexo na cabeça: a flecha de ouro, a primeira coisa que botei na boca, a ninfomania, a mão e a luva.
Enfim, o primo Basílio, o mulato, implorou a Iaiá Garcia. Besame mucho!
Ou teriam sido apenas confissões de um comedor de ópio?

Conto montado com os títulos de 85 livros

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Alter ego

Observa a vida. Muitas vezes, desapercebido, fica horas calado em seu canto. Discreto. No vestir. No caminhar leve. No falar bem calmo. Em tom baixo, quase sempre. Quase inaudível para alguns. Exceto, quando com amigos. No calor da amizade, a fala se torna mais alta. Mas, na maior parte do tempo, embora presente, é como se não estivesse. Invisível, mas não por vontade própria. Vezenquando a exclamação: Você está ai! Não tinha visto.
A resposta é um arquear de ombros, espalmando as mão para a frente dos braços quase esticados. Um pouco curvados como se fossem um par de parenteses. Contendo o silêncio de uma resposta que, se dada, seria redundância pura: Claro. Não está vendo?
Apenas move ombros, braços e mãos. Logo se esquecem dele. Se mantém observando. Deveria ter se tornado um cientista.
Mas, os caminhos da vida são estranhos. Não. Não pense que falo de destino. Nada disso! Firme convicção na escolha própria. O problema é que, vezenquando, é a escolha do possível. Não do desejado. Como já disseram, o caminho se faz no caminhar. O destino é consequência do caminho. Às vezes alvo, às vezes ponto de chegada. Nem sempre coincidem. Ele tem um amigo, estrategista, que diria que é mistura de deliberação e emergência. Planejado e decidido conforme o caso. Deliberado antecipadamente e fruto de ajustes às circunstâncias de cada momento. Concorda com ele.
Algo parecido com o que aconteceu neste trecho. A ideia era falar do que se tornou. Oposto ao que as aparências indicavam. Porém, escrevi sobre o destino que se escolhe. Mas, também, que se nos oferece. Ao final e ao cabo, uma mescla de tudo.
Quer saber? Virou escritor. Penso que por vontade própria. Mas, também,  por premência da vida. Nessa quietude que lhe marca, a escrita se tornou a fala não dita. Bendita ou maldita? Uma mistura. Vezenquando uma. Outra, noutras vezes. Acho que sua escrita é uma resposta alternativa ao arquear de ombros e espalmar de mãos. Como se afirmasse: Estou aqui sim. Preste atenção.
Pode parecer, como disse Guimarães Rosa, ao descrever um personagem em "Tarantão, meu patrão", quieto como um copo vazio. Mas, vezenquando, as letras falam por ele. Enquanto elas não se juntam em orações, períodos e parágrafos, segue prestando atenção. É o seu destino. E também seu jeito. Afinal, escritor-observador.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Árvore genealógica

Rosivam foi filho de Roselina e Marcivam,  irmão de Rosemar e Marcelina. Casou-se com Juvandira e tiveram um casal de filhos,  Rosandira e Juvivam.
Juvandira, filha de Jurandir e Vanira, teve duas irmãs e um irmão,  Juvanira, Vandira e Vandir.
Vandira e Rosemar conheceram-se no casamento de Rosivam e Juvandira. Casaram-se seis meses depois. Vandira, grávida de gêmeos, deu a Rosemar os filhos: Vandro e Rosmira.
Marcelina e Vandir se amigaram depois do batizado dos gêmeos. Um ano depois, dessa união nasceu Vancelina.
Juvanira se engraçou com Vantuir que não era parente de qualquer conhecido. Como os nomes não combinavam bem, desistiu do namoro. Ficou pra titia!

terça-feira, 27 de abril de 2021

Três voltas, direita 41, esquerda 80, direita 9. Pronto!

As instruções estavam na memória dela. O problema? Há muito tempo, o acesso às suas lembranças era incerto. Vezenquando, contava coisas de antigamente. Tantos detalhes. Eu até pensava que era invenção dela. Mas uma das irmãs, minha tia, um pouco mais nova, confirmava. Foi assim mesmo! E, quando ela se distraía, me confidenciava, em tom de inquisição: Como pode ela se lembrar tão bem? É claro que não esperava que eu pudesse responder. Era mais uma exclamação. Com jeito de interrogação.
Certo dia, ela queria abrir o velho cofre. Que acompanhara ela e meu pai durante o tempo de comércio. Depois, os acompanhou nos três lugares (uma casa e dois apartamentos) em que residiram após o fechamento do comércio que fez parte da vida do casal por pouco mais de três décadas. Quase 35 anos, para ser um pouco mais preciso. Pero no mucho!
No total, convivera com o cofre por quase meio século. Provavelmente 48 anos, para ser um pouco mais preciso. Pero no mucho! O cofre a acompanhou, após enviuvar,  por mais 12 ou 13 anos.
Eu, no passado, lembrava do segredo. Eram quatro instruções. Quase cinco. A terceira tinha um detalhe importante. Tentei puxar a combinação de movimentos e números da memória. Qual o quê! Depois de muitas tentativas, desisti. Aproveitei a desmemória dela. Esquecera-se que pedira para eu abrir o velho cofre. Me perguntou o que eu queria. Eu disse que era só curiosidade. Ver o que tinha dentro. Ela riu. Só deve ter papel velho. Não sobra nada da pensão e da aposentadoria para guardar no final do mês.
Esquecera-se, também, que já não administrava seu próprio dinheiro. Meio a contragosto, dela, eu assumira esta função. No começo ela reclamava. Quando eu viajava de volta para minha casa, após visitá-la, ela reclamava. Deixa algum dinheiro comigo. Posso precisar para alguma urgência. Eu dizia que assim o faria. Logo depois, ela esquecia o assunto. Com o tempo, deixou de pedir. Teria desistido? Ou esquecido?
Em uma de minhas visitas, uma surpresa. O cofre estava aberto. Ela pedira a um dos outros filhos para chamar um chaveiro profissional. Ele abriu o cofre. As instruções de abertura foram anotadas. Ela o usava para guardar documentos e papéis. Já sem muito tirocínio, guardava o que pensava poder ter algum valor. Extratos bancários que ainda recebia pelo correio. Faturas de contas de telefone, energia e do condomínio. Documentos aos quais eu tinha acesso por email ou internet banking. Ih! Usei três palavras em inglês! Tem gente que acha que tem de escrever estas coisas do mundo digital em português. Está bem! Lá vai: correio eletrônico e banco virtual.
Guardava, também, cópias das inúmeras fotografias e documentos da família que, ao longo da vida, catalogou em inúmeros "albuns da vida". Tenho o meu. Precioso! Mas, não está em um cofre!
Depois de algum tempo, o cofre voltou a ser fechado. As instruções de abertura guardadas em algum lugar. Incerto. Ela as guardara para evitar que alguém pudesse abri-lo. Preocupava-se com aquilo que estava no cofre? Mais provável que fosse força do hábito. O segredo do cofre escondido por mais de 50 anos. Em sua memória. E em algum papel bem escondido. Nunca foi encontrado. 
Ao final de março de 2019, ela faleceu. Fiquei alguns dias em Londrina. Cuidar de detalhes iniciais das coisas que demandam atenção dos que sobrevivem à morte de um familiar. O cofre fechado. Teimoso, mais uma vez, tentei abri-lo. Claro que não consegui. Chamei um chaveiro profissional. Talvez, tenha sido o mesmo que veio da primeira vez. Quando veio abrir o cofre eu não estava. Foi atendido por Alda, empregada doméstica, que cuidou de meus pais por um longo tempo. Quando cheguei, me informou que o cofre estava aberto. Fui ver o que tinha dentro. Alguns passaportes antigos e um livro. De bolso. Este que aparece na fotografia ao final desta memória . Meu livro guardado por minha mãe em um cofre!
O cofre já não sei onde está. Sugeri que meu irmão caçula tentasse vendê-lo. Não sei se conseguiu. O cofre ficava no apartamento dela no Edifício Glória na rua Piauí. Herança que vendemos. Os passaportes e meu livro estão comigo. O segredo do cofre também. Hoje o encontrei. Na memória do celular em que escrevi esta memória. Decidi escrever esta memória. Ao contrário de minha mãe, não lembro de tudo. Porém, tenho a imaginação fértil. Alguns detalhes vieram dela.
Preciso registrar o segredo do cofre em outro local. Para que um dia, quando a memória começar a falhar, eu posso lembrar. Houve um cofre. Para abri-lo bastava seguir estes passos. Com cuidado. Nunca se sabia o que poderia conter: dar três voltas completas; depois girar à direita até 41; à esquerda até 80, passando pelo 41 uma vez; por fim, à direita até 09. Pronto!

domingo, 25 de abril de 2021

Mas, será o Benedito?

Fazia tempo que a vida corria sossegada para Lorde Kennedy e sua gangue. Passeios pelo bairro do bar do Nego pela manhã. De tarde, uma escapada até a Prainha. Alemão ia se encontrar com Lola. Os tutores dela haviam se mudado definitivamente para São Chico. Assim, a turma toda ia junto. Vezenquando, Lola escapava pelo portão esquecido aberto. Passeavam por ali mesmo. Até que a tutora surgia desesperada atrás de Lola. Ralhava com ela. Alemão ia junto com Lola para a casa dela. No final da tarde todos voltavam para o bar do Nego.
À noite, depois de comerem a comida preparada por Alzira, ficavam de papo até a hora de dormir. Era uma rotina diária, só quebrada pela ida ao centro nas segundas-feira na traseira da caminhonete de Nego. Era o dia de se divertirem na praça da catedral de São Francisco do Sul, enquanto Nego cuidava de seus negócios no centro.
Vezenquando, Alemão preferia ir encontrar-se com Lola. Nas outras vezes, ia junto com a gangue para o centro. No dia seguinte, ao chegarem na Prainha, encontravam Lola de cara fechada. Ciumenta, não gostava de saber que Alemão tinha preferido a companhia dos demais na segunda-feira. Mas, logo se abria com as brincadeiras de Chumbinho que garantia:
_ Alemão só tem olhos para você Lola. Fica tranquila.
China, Dama e Vina confirmavam. Logo depois, se o portão estivesse aberto todos iam para a beira do mar. Caso contrário, Alemão latia para chamar a atenção dos tutores de Lola e logo um humano aparecia. Foi em um dos dias em que Alemão ficou com Lola que o caso aconteceu.
Assim que chegaram à Prainha, bem ao lado do posto dos humanos salva-vidas, Lorde Kennedy estancou e disse:
_ Mas, será o Benedito?
O velho China logo indagou:
_ O que aconteceu meu chapa?
Lorde Kennedy respondeu:
_ Estão vendo aquele cachorro marrom escuro lá perto da estátua do surfista?
Ao que Vina perguntou:
_ Aquele junto com dois rapazes?
_ Sim. Aquele mesmo, foi a resposta de Kennedy.
Dama e Chumbinho falaram quase ao mesmo tempo:
_ Ele está olhando para cá, disse Dama.
_ Você o conhece? Perguntou Chumbinho.
Lorde Kennedy respondeu afirmativamente. E então contou sobre como tinha ficado com aquela cicatriz no pescoço. Dama, muitas vezes, já perguntara o que tinha acontecido. Porém, ele dizia apenas:
_ Não gosto de falar disso. E ficava um pouco amuado.
Os companheiros da gangue ficaram surpresos ao saber que Benedito e Lorde Kennedy se estranharam e brigaram quando ele ainda morava em Curitiba com a mãe do jovem professor de inglês e o namorado da mãe do jovem professor de inglês.
Lorde Kennedy contou que se encontraram nas escadas. E que ele levou a pior. Benedito conseguiu agarrá-lo com a boca pelo pescoço. Era bem mais forte que Lorde Kennedy. Benedito morava um andar acima de Lorde Kennedy e descia pelas escadas com um dos rapazes. Ele e a mãe do jovem professor de inglês iam em direção ao elevador. Os dois se atracaram. Se não fosse pela rapidez da mãe do jovem professor de inglês, que o tirou da boca de Benedito, talvez Lorde Kennedy não estivesse ali naquele dia para contar a história. Tomou remédios durante duas semanas. O pescoço ficou bem inchado. Depois de um tempo restou a cicatriz que os pelos encobriam um pouco.  Chumbinho logo falou:
_ Vamos lá dar uma sova no Benedito.
Dama e Vina se assustaram. Mas o velho China, lembrou o que seu tutor sempre dizia:
_ Não faça aos outros o que não deseja que façam a você.
E logo emendou:
_ Ele dizia para os outros marinheiros que era uma frase de Confúcio, um sábio chinês que deixara muitos ensinamentos para os humanos.
Lorde Kennedy concordou:
_ Isso mesmo! É coisa do passado. A única marca que sobrou é esta cicatriz. Agora Dama não precisa mais me perguntar sobre ela.
Logo depois, Benedito e os dois rapazes entraram em um carro. Passaram por Lorde Kennedy e sua gangue dirigindo a caminho da Enseada. Benedito ficou à janela olhando para os cinco cachorros com um ar triste. Nunca tivera a chance de se desculpar com Lorde Kennedy. Seus tutores não o deixavam se aproximar. E, tempos depois, ficou sabendo que Lorde Kennedy não morava mais no prédio. Mais uma vez, não pode se aproximar de Lorde Kennedy e se desculpar. Os outros seguiram o carro e Benedito com o olhar. Nem imaginavam o que ia pela cabeça de Benedito.


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