domingo, 28 de fevereiro de 2016

Domingo de Chuva

É uma chuva fininha. Intermitente. Cai um pouco. Para. Recomeça. Para de novo. Quando parece ter acabado, surge do nada. Garoa. Não chega a ser fria. É um prenúncio das águas de março? Acho que não. Estas, assim como o Carnaval, parecem ter chegado mais cedo esse ano. Choveu tanto em fevereiro!
É o último domingo de fevereiro. Não fosse bissexto, seria seu último dia. Nesse ajuste da contagem humana do tempo, um dia a mais para acomodar a passagem natural do tempo que não nasceu para ser marcado em anos, meses, dias, horas, minutos ou segundos. É fluxo. Como tal impossível saber onde começa ou acaba. Nós que passamos por ele. Continuará sem nós.
Um dia a mais em fevereiro. Que farei dele amanhã? Me lembro de um colega de doutorado. Vinte e cinco anos atrás lutávamos para dar conta dos seminários de filosofia da Administração. Leituras difíceis em uma segunda língua, o inglês. Ele nativo de um país do oriente médio, eu do Brasil. Havia outros estrangeiros no começo dos anos 90 naquela Manchester chuvosa.
Na segunda-feira ele apresentaria seu trabalho na aula do Professor Richard Whitley. No domingo acabara o horário de verão inglês. Os relógios foram atrasados em uma hora. Iniciou sua apresentação se vangloriando de ter tido uma hora a mais para tentar entender os textos que lhe couberam. A manipulação do tempo pelos homens lhe deu mais 60 minutos naquele domingo. Não adiantou muito!
Já não tenho mais que preparar seminários de doutorado. Nesse fim de fevereiro, tenho mais 1.440 minutos. Tenho dormido menos nessa altura da vida. No máximo seis horas por dia. 360 minutos. Sobram 1.080. Fazer o que com eles?
Apenas viver. É o que sei fazer de melhor. Nasci com essa habilidade. Você também. Aproveite essa ilusão do dia a mais na vida. O tempo é só um fluxo pelo qual passa nossa vida. Não adianta ser cronometrado. Em algum momento nos deixará para trás.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Trampolim

Todos já haviam pulado do trampolim. Só faltava ele. Os meninos e as meninas usavam as mesmas palavras para encorajá-lo:
_ Vai Artur.
_ Se joga sem medo.
_ Não olha pra baixo.
_ Você vai gostar.
Artur olhava de um lado. Depois para o outro. Caminhava até a beirada. Quando todos se animavam. Voltava para trás. Aí, a gritaria começava de novo. Pareciam até ensaiados:
_ Vai Artur.
_ Se joga sem medo.
_ Não olha pra baixo.
_ Você vai gostar.
E Artur se repetia. Depois de olhar para os dois lados, caminhava até a beirada do trampolim. E retornava. Os demais que aguardavam sua vez passavam por ele.
Depois da quinta tentativa frustrada, eu a vi embaixo da haste de madeira do trampolim. Era enorme. De um azul profundo, a cada movimento do trampolim movimentava as asas, mas não saía do lugar.
Artur repetia pela sexta vez sua falta de coragem. O avô já tinha até desistido. Se enfiara atrás do jornal. Azar o dele!
Não viu o momento mais belo de Artur. Se jogar do trampolim pela primeira vez. É nosso primeiro momento de autonomia. O momento em que, confiando nos demais, nos jogamos para a vida. Em busca de algo, mas sem saber ainda o que.
De repente, Artur se dirige à beira do trampolim. Ao mesmo tempo a borboleta alça vôo. Se encontram na beira do trampolim. Linda, ela está ao alcance das mãos de Artur. Ele tenta pegá-la. Ela se afasta. Ele dá um passo à frente. Salta atrás da borboleta. Ela continua seu vôo. Os meninos e as meninas explodem de alegria. Ofuscados pelo sol, às costas de Artur, não viram a borboleta. Só Artur e eu. Penso comigo:
_ Vai Artur. Mergulha na vida. Atrás do que é belo. Pra isso estamos aqui.
Na piscina, Artur diz:
_ Manero! E sai correndo da borda em direção ao trampolim.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Pipoca no cinema

Há filmes que não combinam com pipoca. Cinéfilo, continuo fiel à ideia de que o melhor lugar para assistir filmes é uma sala de cinema. Mesmo nas salas menores, a tela é grande o suficiente para dar uma sensação única que só o cinema pode proporcionar: entrar em um universo paralelo em que tudo vemos e ouvimos e não somos notados. Voyeur e cúmplice de tramas que, embora me afetem muito, ao acender das luzes desaparecem em um passe mágico. Volto ao mundo real que me afeta e demanda minha ação. Nem sempre voluntária. Às vezes bem sucedida.
Nessa altura você já deve ter percebido que para mim, ver um filme em sala de cinema funciona  como um refúgio. O domínio seguro em que lido apenas com minhas emoções e pensamento. Me deixo conduzir no mundo das imagens. Junto com minha mente, meu corpo reage às provocações das imagens: sorrio, tenho medo, meus olhos lacrimejam, me afundo na poltrona, me espanto, falo sózinho, fico preocupado e posso até gritar.
Nos tempos de infância e adolescência, quando essa paixão nasceu, talvez a única que não acabe ao longo da vida, as salas de cinema eram maiores e mais escuras. Propícias a muitos prazeres. Não falo apenas dos cinematográficos! Em cada sala de cinema havia uma bomboniére. Nelas podiam se comprar balas, caramelos, bombons e chocolates. Eu adorava os caramelos cobertos de chocolate da Pan. Os mais jovens não devem conhecer, mas os de minha geração com certeza sabem do que estou falando. Mastigar os caramelos da Pan era um desses prazeres. Depois, descobri outros menos solitários. Mas, isso é outra história.
Tenho quase certeza de que não havia pipoca à venda naquelas bomboniéres. Não vou afirmar, pois a memória tem suas artimanhas. Nem sempre responde a meus esforços de lembrança.
Ao contrário, hoje em dia, parece que em todo cinema se pode comprar pipoca nas salas de espera. E muitas outras coisas. É um espaço de lazer o cinema. O filme de entretenimento domina as salas de exibição. Pipoca, refrigerante e boa companhia. Além disso, com os celulares, fazem selfies e postam nas redes sociais! O cinema-refúgio já não existe mais.
Mas, como afirmei na primeira linha, há filmes que não combinam com pipoca. Quando vejo aqueles baldes enormes nas mãos das pessoas me desespero, mas me conformo. Apesar dos ruídos mastigatórios, o escurinho do cinema ainda é o melhor lugar para ver um filme. Será que alguém não pode inventar o pipocatório? O refeitório para pipocas. Um lugar onde as pessoas possam ver o filme e comer suas pipocas, deixando os outros em paz!
Pode ser até o contrário, um espaço pipoca free! Onde aqueles que acham que alguns filmes não combinam com pipoca vão ficar mais felizes. Não precisa ser grande. A quantidade de mãos carregando baldes de pipoca nas salas de cinema é cada vez maior. Acho que faço parte de uma nova minoria.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Auto-retrato

Auto-retrato
Míope. No sentido literal. Talvez, no figurado também. Afinal, credulidade somada a ingenuidade resultam em alto grau de miopia combinada com astigmatismo. Nessa altura, quase aos sessenta, presbiopia já presente. Literalmente. 
Também figurativamente. Algumas coisas só são nítidas de muito próximo. Antes eram percebidas à distância. Exemplo? Ironia. Cada vez mais difícil de enxergar. Mesmo de óculos!
Problemas com a imagem. Quando brincando é percebido sério, quando sério, o oposto. Não se incomoda.
Leva muito a sério a liberdade de escolha. Porém, tão obediente à hierarquia. Defeito de formação! Não é de nascença.
Pouco fala. Ri muito. Tempo houve de pouco riso. Problema nas articulações musculares da face. Estranha depressão paralisou os músculos. Já resolvida.
Tímido. Ninguém acredita. Irrequieto. Quase agoniado. Não consegue ficar muito tempo fazendo a mesma coisa ou quieto em um canto.
Organizado em sua desorganização. Difícil, mas quem não é?
Sonha mesmo acordado. Às vezes, pode ser inconsequente.
Lê. Escreve. Finge não ser vaidoso. Mau ator. Não convence ninguém. Tanto é que fez esse auto-retrato em preto e branco. É um desastre com as cores!
Otimista com a natureza humana. Poliânico!

Reunião

Chegaram ao mesmo tempo. Pura coincidência. Vinham de locais distintos, mas tinham algo em comum. Haviam conhecido aquela mulher por várias décadas. Sua mãe, seu pai, o marido e uma amiga da infância.
A primeira trazia uma rosa na mão. O segundo, um par de livros. O terceiro, um caderno. A última, além de seu sorriso maroto, uma aquarela que recém pintara.
A princípio ela estranhou. Há tempos não via os quatro juntos. Será que aconteceu alguma coisa? Hoje não é meu aniversário. Pensou e ficou intrigada.
Seu pai foi o primeiro a falar:
_ Lembra quando você foi representante do Clube do Livro? Encontrei esses dois no meio das minhas coisas. São de 1949. Você estava com 23 anos então. Achei que você gostaria de tê-los.
Depois foi a vez de sua mãe:
_ Filha, quando abri a janela de meu quarto hoje de manhã, vi esta rosa em botão. Me deu uma saudade de você. Resolvi vir te ver e a trouxe.
O marido falou em seguida:
_ Eu também estava com saudades. Já faz algum tempo comecei a registrar nesse caderno os bilhetes que lhe mandava. Aonde estou não tenho o que fazer. Parece estranho, mas me lembro de tudo. O primeiro que lembrei foi o que mandei pedindo para lhe encontrar pela primeira vez. Você não foi, mas eu insisti. Ainda bem! Olha quantos bilhetes escrevi naqueles anos todos.
A amiga, com o sorriso maroto, emendou:
_ Você me conheceu bem antes dele. Quase oitenta anos de amizade. Quanta festa fizemos juntas, hein! Essa aquarela, toda colorida, foi inspirada nelas. Trouxe pra você. Põe junto daquele retrato de você que pintei em 2000.
Ela respondeu:
_ Quanta coisa! E nem é meu aniversário. Pena que não estou boa. Queria passar um café, mas não consigo me levantar. Parece que todo mundo saiu. Deixa eu ver se tem alguém em casa.
_ Tem alguém aí?
Nesse momento, uma leve brisa movimentou as cortinas do quarto. Os primeiros raios de sol entravam pela janela. Deitada, ela se perguntou:
_ Será que foi sonho?

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Próxima Parada

Resolveu sair do trabalho meia hora antes do horário normal. Se aproveitou da ausência do chefe e da inexistência de controle de ponto. Era uma daquelas empresas moderninhas em que se pregava a ideia de que o trabalho é o momento de realização da pessoa. Os colaboradores, como eram chamados os empregados, deviam se sentir como donos da empresa. Mas, nunca tiveram participação no lucro.
Todo começo de semana tinham uma reunião de quarenta minutos quando o chefe expunha as metas da semana e estimulava o espírito de equipe. Ao final da reunião, o brado coletivo do lema inspirado nos "Três Mosqueteiros":
_ UM POR TODOS, TODOS POR UM.
Mal continha a vontade de gargalhar. Será que ninguém mais tinha aquela sensação de ridículo? Se perguntava.
Naquele dia, sentira um desconforto constante no peito. Pareciam gases. Mas, já fizera todos os movimentos usuais para se livrar deles. Ficara até de quatro durante um bom tempo no banheiro. Nada tirava aquele desconforto. Será que estava sofrendo um infarto?
Foi com essa dúvida que resolveu sair mais cedo. Mas, não queria ir para casa. Na estação tubo pegou o primeiro ônibus. Nem se importou em saber qual era. Fechou os olhos. Reabriu quando ouviu no sistema de som:
Próxima parada estação aeroporto.
Assustou-se. Deveria ter dormido. Aquela era a última parada. Todos tinham que descer. De repente, teve a ideia. A princípio pareceu maluca. Por outro lado, deveria existir alguma razão para o acaso ter lhe feito chegar até ali. Devia ser a vontade dos deuses!
Comprou uma passagem para o lugar mais distante. Teria que esperar duas horas até o momento de embarque. No caixa automático, fez aquele crédito pessoal que sempre aparecia na tela. Quinze mil reais. Sacou dois mil reais.
Quando chegasse ao destino compraria roupas e produtos de higiene pessoal. Se daria uma semana de férias. Na empresa, tinha certeza que entenderiam. Alguém cobriria sua falta. Afinal, eram um por todos e todos por um.
Tinha que testar os limites dessa empresa moderninha. Sentiu um alívio no peito. Os gases escaparam.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Três Meninos

O carrinho era de gêmeos. Tinha espaço para duas crianças. Puxado pela mão esquerda, ia um menino ao lado de um homem. Era um só menino. O homem empurrava o carrinho com a mão esquerda. Cheio de pacotes que ocupavam o lugar do menino e de outro bebê, caso houvesse. Pensei que não haveria, mas quem sabe? Na mão direita, o filho. Pareciam pai e filho. No fim da tarde curitibana eles atravessaram na faixa de pedestres em minha frente. Caminhavam na direção do Passeio Público. Pararam no meio do caminho, aguardando que o outro sinal ficasse verde novamente. No rosto do pai havia uma angústia. O filho sorria, caminhando ao lado do pai que caminhava em círculos enquanto o sinal não abria. 
O sinal abre para mim. Para eles também. Vejo os dois ficando para trás pelo retrovisor. À distância, ficam cada vez menores, mas ainda visíveis. Sem dificuldades, atingem a outra calçada. O pai faz círculos novamente. O menino sorri de novo. Parece gostar da brincadeira. Mas, no rosto do pai há uma angústia que o menino não vê. O pai olha para o Portal do Passeio, olha para a estação tubo, olha para a calçada do outro lado. Quer voltar, mas o sinal fechou. Vai ter que esperar.
O olhar angustiado do pai me persegue. Teima em não sair do retrovisor. Já virei a esquina há muito tempo, mas a imagem continua lá. Me faz lembrar de angústias esquecidas.
Em minha memória surgem meninos que vi. Um morto e um provavelmente morto. O primeiro foi em Londrina. Retornava de carro para a cidade, vindo de Curitiba. Na via expressa que liga a saída para Curitiba com a saída para São Paulo, no meio do caminho, um guri atropelado e morto. Era indígena. Provavelmente, tinha escapado da atenção do pai que estava sentado no meio fio. Não pude deixar de ver os olhinhos ainda abertos daquele menino. O único trajeto possível passava bem ao lado dele. Ninguém havia coberto aquela criança. Seus olhos me angustiaram.
O segundo foi em Maringá. Saio na sacada de um prédio no momento em que ele corre para a rua. Um carro em alta velocidade o atropela. Desesperado, o motorista sai do carro, acolhe a criança no colo, mas não encontra nenhum adulto perto dela. Pergunta de quem é a criança. Ninguém responde ou aparece. Entra no carro e a leva. Eu fico tremendo na sacada do apartamento. Sem ação! Sobrou uma angústia.
Anos depois, esse homem com um carrinho de gêmeos e um menino ao lado. Seriam reais? Na minha memória os dois meninos. Um morto, o outro talvez. Um me olhou, mas não me viu. O outro inerte nos braços de um homem desesperado. Quis o destino que eu os visse, mas eles não me viram. Foram reais. Deposito os dois no carrinho desse homem angustiado. Real ou não, como em um sonho, peço a esse homem:
_ Afasta de mim essa memória!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Felicidade

Ouve a chuva. Cai devagar sobre o telhado. Vem acompanhada da brisa. Suaves, as duas refrescam o começo da noite de mais um sábado de verão.
Fecha os olhos. Divaga. Dez anos atrás estava do outro lado do mundo. Enfrentava o inverno do hemisfério norte. Era a primeira vez que via neve. Naquele momento, a neve juntou-se à solidão. Foi à praça central daquele vilarejo minúsculo escondido no norte da Espanha. Deitou-se sobre a neve de barriga para cima. Agitando braços e pernas imprimiu seu perfil no solo. Caiu na gargalhada. Desde criança queria fazer isso. Vira o desenho de uma criança fazendo o mesmo em um livro da escola. Praticamente aos setenta, realizou o sonho infantil.
Com uma janela que bateu retorna ao tempo presente. Daqui um mês completará oitenta anos. Haveria algum desejo de infância ainda não satisfeito? A pergunta faz com que se lembre da cidade natal.
Saíra de lá há mais de sessenta anos. Aos dezoito anos, fugira do orfanato das irmãs de caridade. Esta fora sua casa desde os primeiros dias de vida. Uma criança abandonada junto ao portão dos fundos. Ao lado da horta, bem junto aos alfaces.
Não conhecera muito da cidade. Era uma cidade interiorana em Minas Gerais. Até os 18 anos, além do orfanato, conheceu o colégio em que estudou do primário até o ginásio. A partir dos 14, ajudava na cozinha do orfanato. Não fez amizades. Na escola só teve colegas. As irmãs do orfanato não permitiam que saísse. No orfanato, era a última criança que fora admitida. Só porque havia sido abandonada. As outras crianças já estavam se tornando adolescentes quando lá entrou. Aos cinco anos passou a ser a única criança no meio das freiras.
A fuga foi fácil. Toda segunda-feira ajudava o quitandeiro a descarregar as compras. Ele fazia entregas com uma velha caminhonete. Em um dia de chuva, enquanto o quitandeiro tomava um café na cozinha, aproveitou que ninguém olhava e se esgueirou para baixo da lona que cobria as caixas de frutas, verduras e legumes na carroceria da caminhonete. Chovia fino. O barulho da chuva na lona acalmou seu coração que quase saía pela boca.
Perto da rodoviária, ao lado do colégio onde estudara, conseguiu descer. Comprou uma passagem para São Paulo com parte do dinheiro que fora guardando ao longo dos seis meses em que planejara a fuga.Surrupiava os trocados que irmã Anunciação deixava sobre o armário. Esta fingia não notar.
Em São Paulo, nas proximidades da rodoviária, se ofereceu para ajudar na cozinha de um pequeno bar. Dormia em um canto, atrás de um balcão. Dez anos depois conseguiu comprar o bar do antigo proprietário. Nunca se casou. Teve uma vida solitária. Conseguiu construir uma rede de lanchonetes participando de licitações do serviço de alimentação em rodoviárias do país todo. A única vez que saiu do Brasil foi quando esteve no norte da Espanha. Tinha lido sobre o caminho de Santiago de Compostela. Resolveu percorrer parte dele no inverno.
Mas, e agora, quase aos oitenta, teria algo da infância que ficara na memória como um desejo não satisfeito? Tinha tudo que o sucesso empresarial podia proporcionar. O que faltava?
Em sua solidão lembrou de um brinquedo que ganhara do quitandeiro: um pião de metal que girava quando se pressionava para baixo uma haste em seu centro. O pião sumiu no mesmo dia em que ganhou. Guardou na memória o giro do pião colorido que ficava quase branco ao ganhar velocidade.
Será que esse tipo de brinquedo ainda existe? Precisava encontrar um. Queria sentir aquilo que sentira na neve dez anos atrás. Tinha sido a primeira vez que se sentira verdadeiramente feliz. Precisava repetir essa sensação. Às vezes, sentia a cabeça girar. As cores da sua vida sumiam em brancos cada vez mais frequentes. Mas, não era como o pião.

Praia


Pac, pac, pac, pac, pac. O barulho tira minha atenção do livro que leio na Prainha em São Francisco do Sul. Um casal jogando frescobol. À distância, no mar, um barco de pescadores é seguido por um bando de gaivotas. Ao mesmo tempo, outro tanto de gaivotas sobrevoa a beira da praia. Céu nublado. O mar, sempre em movimento, ecoa o título da auto biografia de Oliver Wolf Sacks - Sempre em Movimento - minha leitura momentaneamente abandonada. Trocada pela vontade de escrever que me seduz. Escrevo, então.
Razão ou emoção? Qual delas será minha guia hoje? Impossível saber antes que o texto se conclua. Meus textos têm vontade própria. Não sou eu que coloco o ponto final. Este surge de repente. Eu, apenas obedeço a sua vontade.
Às vezes, quero ir além. Esforço inútil. Talvez, em minha escrita, eu prenuncie que também na vida, o ponto final não será uma escolha própria. Minha escrita se assemelha á vida de mais uma forma. A vida também não fui capaz de abreviá-la.
Alguns anos atrás, doente, pensei que daria a ela um ponto final. Não queria ir além. Achava que já tinha tido o suficiente. Mas, na hora agá, pedi socorro. Primeiro a Sara, depois a Paloma e Fernanda, as filhas, depois Kilda, minha irmã. Não era a hora do ponto final. Era a hora das reticências...
Muita coisa ainda por vir. Pac, pac, pac... Em um ritmo mais acelerado, junta-se o som do vendedor de algodão doce ao frescobol...
A vida ainda tem muito a me fazer ver e ouvir...