segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Rolando

Ele estava exausto. Dirigira por aquela estrada que subia e descia montanhas o dia todo. A cada hora, hora e meia, uma breve parada. Não mais que cinco minutos. Em algum trecho de reta um pouco mais longo. Sem acostamento, a estrada era perigosa. Embora, pouco movimentada. Vezenquando, um caminhão transportando porcos passava em direção oposta à sua.
Era uma região de granjas suínas. Vai que um viesse da outra direção. Na reta seria visto mais facilmente. Mas, entre as oito paradas na estrada apenas uma vez, passou alguém. Um jipe velho. Nada de caminhão.
Lembrou-se de um primo de seu pai. Tinha um jipe também. O primo e o pai moravam em cidades diferentes. Separadas por 60 quilômetros. Certa vez, quando criança, o pai disse para ele ir ficar com o primo e a mulher uns dias. No domingo, o pai o buscaria. Memória antiga. Foi na parte de trás do jipe. A mulher e o primo do pai nos bancos da frente. A parte de trás não tinha almofada. Em cima do motor, sentiu a bunda queimar a viagem toda. Curta, mas quente! O primo do pai ficava rindo. Troçando dele.
O pior aconteceria na casa deles. De noite. Já dormindo, sentiu alguém ao lado da cama. O quarto escuro. Sentiu uma mão no seu pinto. Subia e descia. Em silêncio. Ele paralisado. De repente, o jorro quente e úmido.
De manhã, o primo do pai e a mulher olharam para ele de forma estranha. Nunca soube qual dos dois! Desde então, durante o sono, tinha um sonho que era recorrente. Nú em uma estrada. Em busca de uma luz. Vermelha. Inalcançável.
A viagem foi entre seis da manhã e sete da noite. Um trajeto de 350 quilômetros. Estrada de barro e sinuosa. Ao chegar ao vilarejo impossível não sentir um certo alívio. 
No meio do caminho, a única parada mais longa. A nona parada do trajeto. Em ordem cronológica, foi a quinta. Meio de caminho. Um antigo posto, com um casebre ao lado. Na porta do casebre, a placa escrita informava: comida cazeira, converssa fiada e presso baixo. Tinta branca, sobre a madeira crua.
Achou graça dos erros de grafia. Mas, naquele fim de mundo quem se incomodaria com a escrita incorreta. Ele? Nem pensar. Naquela altura do dia, alem do cansaço, a fome era o maior incômodo. Cazeira ou caseira? Lhe era indiferente. Que fosse boa e barata. Tinha medo era da conversa fiada. Um temor estranho. Será que aguentaria. Pensou em não entrar. Pagou ao moleque que enchera o tanque. E arriscou:
_ A comida é boa mesmo?
_ Mãe que faz. Não há de ser, uai?
Achou graça da resposta. A fome era grande. O cansaço também. Não tinha pressa. Fez outra pergunta:
_ E a conversa?
O moleque deu de ombros e falou:
_ Cada um fala o que que!
Menino esperto. Pensou ele. Pelo tamanho e jeito, devia ter a idade dele quando foi para casa do primo do pai. Entre dez e onze anos.
De novo, essa memória. De mais de 60 anos. Por que isso agora? Se perguntou. Chacoalhou a cabeça, como se quisesse tirar ela da mente. Deixou o carro ao lado da bomba. Caminhou em direção ao casebre.
Empurrou a porta entreaberta. Casa de chão batido. Uma mesa e três cadeiras. Em uma delas, um homem. Com jeito de ser o pai do menino. A mulher na beira do fogão. À lenha. Como o que tinha na casa de sua avó.
Com um movimento de cabeça, a mulher lhe indicou uma cadeira. Logo depois, trouxe um prato feito. Arroz, feijão, bisteca de porco, chuchu e um ovo frito. Comeu de se lambuzar. Enquanto comia, o homem falava. Do tempo. Da chuva que prometia cair no fim da tarde. De como não parava ninguém por ali. Da criação de porco. Nenhuma palavra sobre o moleque.
E fazia perguntas. De onde vinha? Para onde ia? Se já conhecia a estrada? Por que sozinho? Não tinha medo?
Ele respondia com má vontade. Estranhou a última pergunta. Não soube o que dizer. Apesar do espanto,  depois que pagou, brincou:
_ A placa lá fora não mente.
A mulher riu, o homem fechou a cara. Nisso, o moleque entrou e pediu:
_ Me dá carona até o vilarejo? O senhor vai passar por lá.
Ele olhou para a mulher e o homem. Nada disseram. Como não se importassem. Constrangido pelo silêncio, não conseguiu negar. O moleque saiu. Foi em direção ao carro.
O moleque quase não falou nada a viagem toda. Nas paradas, não saía do carro. Era como se não estivesse acompanhado. O moleque respondeu três daa quatro perguntas dele. Respostas curtas.
Nome? Rolando.
Idade? Onze.
Estudava? Não.
O que ia fazer no vilarejo? Silêncio.
Chegaram pouco antes da sete. Não mais do que quinze casas. Ao redor de uma praça quadrada. Em um dos lados a igreja. Pequena. Um pouco mais afastado, o cemitério. Sem muro ou cerca.
Parou o carro na praça. O moleque desceu. Caminhou em direção à igreja. Ele chamou:
_ Rolando, sabe se tem lugar onde eu possa passar a noite?
O moleque se virou. Apontou uma das casas. Correu em direção à igreja. Ele foi na direção da casa. Bateu à porta. Uma mulher muito velha, corcunda, com um cachorro preto de olhos vermelhos, abriu a porta.
Ele pediu pouso. Perguntou o preço. No pequeno quarto, uma cama, uma cômoda e uma cadeira. Perguntou do banheiro. A velha mostrou a casinha no quintal dos fundos da casa. Mais tarde, ele perguntou se ela faria alguma coisa para ele comer. A velha esquentou um pouco de arroz com feijão. Além disso, tinha umas linguiças. Fritou uns pedaços para ele.
Depois que comeu. Foi para o quarto. Foi um sono agitado. O mesmo sonho recorrente.  Sonhava que andava nú em uma estrada. Tarde da noite. Não via ninguém. Vezenquando, enxergava uma luz. Vermelha. Caminhava em direção à luz. Esta, ao mesmo tempo, se afastava dele. De repente, sumia. Ele caía. Em um buraco profundo. Acordava com o susto. Suado. Adormecia. O sonho voltava. Foi assim a noite toda.
De manhã, acordou tarde. O sol já ia alto. Na casa da velha, ninguém. Foi para a praça. Vazia. Sem viva alma.
A porta da igrejinha aberta. Entrou. Um padre estava arrumando o altar. Perguntou de Rolando. O padre disse que não conhecia. Contou sobre a carona para o moleque do posto. Que Rolando fora para a igreja. Que este lhe indicara a casa da velha para passar a noite. Do cachorro de olhos vermelhos. Que Rolando viera do posto. Do casal e da comida no meio da estrada.
O padre ficou espantado. Se benzeu três vezes com o sinal da cruz. Perguntou em que casa ele dormira. Depois da resposta, se benzeu mais três vezes. E disse:
_ Esta é a casa de Durvalina. Está fechada há muitos anos. Depois que ela foi embora com seu cachorro. Era preto e de olhos vermelhos. O casal do posto não tem filho.
E se benzeu mais três vezes.

domingo, 23 de agosto de 2020

Lembranças de Ananisa e Arlindo

 Aos irmãos e primos que compartilham comigo a descendência de Ananisa e Arlindo

Na casa de minha avó materna tinha um fogão a lenha. Tinha também, no quintal, algumas árvores frutíferas. Lembro-me da mangueira, do abacateiro e da gabirobeira. Talvez, a memória me engane. Das três árvores, a única certeza é a última. Porém, ao menos uma das outras existiu naquele quintal. Meu avô usava uma vareta comprida com uma lata amarrada em uma das pontas para pegar as frutas no alto das árvores. Seriam mangas? Abacates? Ambas as frutas? 

Na casa tinha também uma varanda com vermelhão. Gostava, quando criança, de me deitar sem camisa naquela varanda. O frescor do piso de vermelhão contrastava com o calor do verão londrinense. Era uma sensação na pele que me confortava. 

Eles vieram para Londrina em 1940. Tiveram uma pensão na rua Minas Gerais, quase esquina com a Sergipe. No centro de Londrina. Uma noite a pensão se consumiu em um incêndio. Depois de muitos anos mudaram-se para esta casa na Espírito Santo, que minha mãe mandara construir ainda solteira, antes de conhecer seu Gimenez. Estas são memórias que me contaram. As outras são minhas.

Do alto de uma das árvores, a gente alcançava o telhado.  Em cima da varanda. Aventura de crianças que deixava meu avô bravo. Mandava descer. Era um bom refúgio quando ele cismava de cortar nossas unhas. Cortava bem rente. As pontas dos dedos latejavam. A gente tentava escapar. Nem sempre conseguíamos.

Memórias. Até que ponto aconteceram? Em que medida são fruto da imaginação ou de sonhos mal lembrados? Sonho, imaginação ou história? Que importa? Ao virem à mente, é como se tivessem ocorrido. A mim, só me resta narrá-las. Vamos  em frente então!

Ananisa e Arlindo povoam memórias de minha infância e adolescência. Ele nascido em 1899, em Santo Antônio da Platina. Ela em 1900, em Brazópolis em Minas Gerais. Se conheceram quando ela veio passar um tempo com a irmã, Maria Negrão que se casara e mudara para Santo Antonio da Platina. Se casaram em 1920. Estas memórias relembrei nos álbuns de vida familiar que minha mãe registrou ao longo de sua vida lúcida. Trabalho de memorialista que parece ter se entranhado em meu sangue!

Certa vez, quando meu avô já estava esclerosado, eu o vi, à distância, na esquina da Espírito Santo com a Paranaguá. Eles moravam quase na esquina da primeira com a Antonina, agora Juscelino Kubitschek. Eu, com meus pais e irmãos, na Paranaguá. Quase esquina com a Goiás. Já morávamos na casa quase em frente ao Supermercado Gimenez. Estava em frente de casa. Portanto, vi meu avô a quase 100 metros de distância.

Para quem não conhece Londrina, a Goiás e a Espírito Santos são paralelas. Descendo a Paranaguá, à esquerda de minha casa, tinha primeiro a Espírito Santo, em seguida a Alagoas. Subindo a Paranaguá, tinha a Goiás, Pará e Piauí. Paralelas à Paranaguá, havia para baixo a Antonina e, para cima a Santos, a Belo Horizonte e a Higienópolis. Eram quadras homogêneas e regulares. Ainda permanecem assim, embora poucas casas daquele tempo ainda existam. A maioria foi substituída por prédios. Mas, isto é outra história!

Continuando pela Paranaguá, à direita de quem saía de minha casa, depois da Piauí, vêm a Pio XII, a Tupi, a Fernando de Noronha, alcançando depois a Mossoró. Ocupando toda a quadra entre a Mossoró e a Santos, o Colégio Londrinense com o ginásio de esportes Colossinho. Na outra direção, quando a Juscelino faz uma curva, chegávamos ao clube Canadá, depois de passar pelo Instituto Filadélfia e pelo ILECE. Esta região fez parte de minhas andanças enquanto criança e adolescente. Para a escola, para a casa de amigos, para os treinos de basquete, para as idas à piscina e para andanças sem destino. Um pouco acima da casa de meus avós, havia uma data vazia. Data é como chamamos terreno em Londrina. Me lembro de, com alguns amigos, antes de chegar à casa de meus avós, brincar nesta data que terminava na Alagoas, no outro lado. Memórias de muitas goiabeiras nesta data. Mas, esta também é outra história!

Volto á lembrança com meu avô. Ele caminhava rápido. Eu fui atrás dele. Devia ter escapado dos olhos vigilantes de minha avó. Não muito tempo depois ele viria a falecer. Isto foi em 1972. Só consegui alcançá-lo já passado da Belo Horizonte, um pouco antes da esquina com a Higienópolis. Tive que correr. Segurei meu avô por um dos braços e disse:

_ Oi vô, aonde está indo?

Ele me reconheceu. Por sorte. Naquela época, com a doença, às vezes não reconhecia alguém. Me respondeu:

_ Tenho que ir ao Bosque, fechar um negócio. Vem comigo Fernando.

De alguma forma, consegui convencê-lo a voltar para casa comigo. Na memória me restou essa lembrança de meu avô.

Em outra ocasião, era minha avó que já estava perdendo a lucidez. Final dos anos 70. Ela faleceu em 1980. Eu tinha muita curiosidade em saber quem eram meus antepassados. Já contei isto em outro texto. Mas, repito aqui. Estávamos em nossa casa na Paranaguá. Comecei a lhe perguntar sobre seus pais, suas irmãs e outros parentes. De repente, ela olhou para mim e disse:

_ Fernando, você me faz tanta pergunta que eu já estou ficando confusa. Já não sei nem quem foi minha mãe.

E, nós demos uma risada gostosa.

Arlindo e Ananisa. Hoje bateu saudades dos dois. Nesse domingo frio de Curitiba. Me aqueço um pouco com as lembranças do carinho que recebi deles. Saudades de neto. Olhos molhados ao final do texto. Hora de levantar e fazer um café.

Terminando esse registro, algumas fotografias reproduzidas do Álbum da Vida de Arlindo Ribeiro do Prado, organizado por Kilda Gomes do Prado. Neste ela não assinou Gimenez. Curioso! Logo ela que sempre foi tão cuidadosa com nomes e sobrenomes. Mas, esta deve ser outra história também! 

Ananisa é a primeira à esquerda sentada, aos 15 anos, ao lado dela sua mãe Amélia Baptista de Paiva e depois suas irmãs, Maria e Adalgisa. Atrás dela, seu pai, João Gomes de Faria, depois Altamiro da Costa Negrão, casado com Maria, e José Belino Negrão (sem registro de qual era o parentesco)

Arlindo, ao lado da irmã Delminda Ribeiro do Prado e do irmão Aristides Rodrigues do Prado (c. 1905/1906)

Os dois em Londrina

50 anos de casados, 1970

Na Igreja da Avenida Higienópolis (Paróquia Coração de Maria). Atrás meus avós, encobertos, tio Carlos e tia Edy, depois meu pai e minha mãe.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Entre a luz e a escuridão

Fazia tempo que ela vinha avisando a todos. Não acreditavam. Ela dizia. E completava. Esse dia ainda vai chegar. A maioria duvidava. Ela está fora de seu juízo. A conclusão da maioria ia nessa direção. Mas, havia uns poucos que levavam a sério os alertas de Durvalina.
Isto tudo aconteceu antes do sumiço dela. No dia seguinte à chegada do velho andarilho e seu cão de olhos vermelhos. Durvalina, você sabe, foi a única que acolheu a dupla em casa. Mas, isso não importa. O importante é o que ela passou a dizer desde então. O sumiço dela só aconteceria nove meses após a chegada de ambos. Mas, isto também você já sabe.
O primeiro que foi alertado era um muleque. O pequeno Rodrivaldo. Filho de Ronaldo, o coveiro, e neto de Andriela, a mais antiga parteira da região. A mãe quis que o nome do filho combinasse o do pai com o da avó. Morreu no parto. Respeitaram sua vontade. Mais de uma centena de viventes tinham visto a luz primeiro nas mãos de Andriela. Ronaldo enterrou a mulher. Mãe e filho nas pontas do ciclo da vida no vilarejo. O começo e o fim.
Rodrivaldo passava em frente à casa de Durvalina. A anciã viu o muleque. Chamou por ele. Rodrivaldo tinha medo da velha. Saiu correndo quando da boca de Durvalina ouviu a profecia. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Sem entender, contou ao pai. Este só respondeu que deixasse a velha pra lá. É maluca!
Da outra vez, foi com a própria Andriela. A parteira voltava da casa de Rosália e Marinelvo. Trabalho dobrado. Gêmeos. Cansada, a parteira parou em frente à casa de Durvalina. Sua casa ainda distava uns 150 metros. Na mesma rua. Durvalina veio à porta e repetiu. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Uma semana depois, foi a vez de Ronaldo. Ia em direção à casa da mãe. No caminho, viu Durvalina à janela. Madalena, a gata, a seu lado. A anciã com o cachimbo na boca, deu uma baforada. E alertou o coveiro que lhe acenara. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O homem fez o sinal da cruz. Apressou o passo. Na casa de Andriela contou à mãe o que ouviu da outra mulher. A mãe lhe disse que também ouvira de Durvalina a mesma coisa. Ronaldo lembrou e comentou que Rodrivaldo também ouvira. Andriela encerrou o assunto. Que deixasse a velha pra lá. É maluca!
A partir desse dia, todo e qualquer cristão que encontrasse Durvalina era avisado. Alguns riam. Troçavam da velha. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar. Era o aviso. Chamavam de caduca. Outros apressavam o passo. Se benziam.
Com o passar dos dias, muitos começaram a evitar Durvalina. Se afastavam quando notavam que se aproximava. Desviavam de caminho para não passar em frente a sua casa. Mas, às vezes, alguém era surpreendido pela anciã. Ela chegava de mansinho. E gritava. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O tempo passou. Até aquele dia... Andriela acordou com contrações muito fortes. Da noite para o dia, uma barriga imensa se formara. Gritava. Muito. Alto. Vizinhos escutaram. Assustados, foram atrás de Ronaldo. Ele entrou no quarto da mãe. De quatro, de suas entranhas saía uma massa disforme. Vermelha de sangue. Sem pé. Sem cabeça. Como se fosse uma bola de carne. Ao ver o que acontecia, Ronaldo amparou a mãe. Desfez-se da massa disforme na privada da casa. Ao voltar para o quarto da mãe, caiu duro para trás. Morto.
Nuvens escuras esconderam o sol. Andriela se recuperou. Pegou o filho. Enrolou em um lençol. Teve ajuda dos vizinhos e de Rodrivaldo. Ainda no escuro, o cortejo foi em direção ao cemitério. Andriela enterrou o filho. Na volta para casa, ouviu do neto. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia chegou. Nesse momento, Durvalina e Madalena surgiram à janela.

domingo, 9 de agosto de 2020

Duas Caras

Dias conturbados foram aqueles em que Duas Caras apareceu na rua do Bar do Nego. O cachorro veio junto com um morador de rua. Sandoval e Duas caras chegaram na hora do almoço. O homem pediu uma ajuda a Nego. Alzira viu os dois conversando.
Nego propôs que Sandoval fizesse a limpeza do terreno que ficava aos fundos do bar. Negócio fechado. Nego pediu que Alzira servisse o almoço a Sandoval. Depois do almoço, Sandoval começou o trabalho. Além de um valor em dinheiro, teria três refeições por dia - café da manhã, almoço e janta. Era serviço para dois ou três dias.
Enquanto isso, Duas Caras ficaria com a gangue de Lorde Kennedy. Pelo menos, esta era a intenção dos humanos. Mas, logo na chegada, Chumbinho e Duas Caras se estranharam. Chumbinho não gostou da forma como Duas Caras se aproximou de Vina. Ciúme bateu forte. Os dois se peitaram, rosnaram, quase foram às vias de fato. Mas, Alemão e China contornaram as coisas. Foi cada um pra um canto. Vina se juntou a Chumbinho. Feliz da vida! Gostou da demonstração de amor que Chumbinho deu.
Duas Caras era um cão de porte médio. Um pouco menor que Alemão, mas maior do que os demais. Tinha o pelo curto, branco pela maior parte do corpo. As patas tinham manchas pretas. E a cabeça, era branca de um lado e preta do outro. Os dentes de baixo ficavam à mostra. Isto dava um ar ameaçador a Duas Caras. Sandoval o pegou desde pequeno e lhe deu o nome.
Nos três dias que Sandoval levou para fazer o serviço, Lorde Kennedy e sua gangue saíram para suas andanças matutinas e vespertinas. Na primeira tarde, com o clima tenso, Duas Caras ficou com Sandoval. Na manhã seguinte, Lorde Kennedy convidou Duas Caras a se juntar a eles. Chumbinho ficou chateado. Disse que não sairia naquela manhã. Mas, o velho China o convenceu:
_ Deixa disso, meu chapa. Vamos lá. Vina vai ficar feliz se você for.
Lá se foram os sete pela rua, em direção à Enseada. Na formação usual, apenas com um mais. Dama e Lorde Kennedy à frente, seguidos por Vina e Chumbinho. Fechando o cortejo os outros três. Naquela tarde foi quase tudo tranquilo. Passaram a tarde na Enseada. No começo da noite, voltaram. A comida já tinha sido servida por Alzira. Depois de comer, Duas Caras foi dormir junto à Sandoval. Como sempre fazia desde pequeno.
Mas, antes disso fez uma piada com o velho China. Este não gostou e partiu para cima do forasteiro. Alemão ficou olhando. Depois que Duas Caras levou uns sopapos do China, Alemão apartou os dois. Botou Duas Caras pra fora. Duas Caras até enfrentou o China, mas nunca tinha brigado com um cão tão ágil como China.
No dia seguinte, a gangue ia bem cedo para a Praia do Forte. Duas Caras foi junto. Ninguém convidou, mas ele se juntou ao outros. Na volta, em uma casa no meio do caminho, viram um casal de idosos com um cãozinho pequeno. O portão estava aberto. Duas Caras avançou sobre eles. Só por farra. Lorde Kennedy lhe chamou a atenção, mas ele não se fez de rogado. Começou a mexer com Dama. Dessa vez, foi Alemão que lhe deu um corretivo. Duas Caras pôs o rabo no meio das pernas e seguiu o grupo à distância. Quando chegaram, foi direto atrás de Sandoval. Nem comeu sua comida que Alzira já tinha servido a todos.
O dia seguinte seria o último do convívio forçado entre eles. Sandoval terminaria o serviço. A gangue ficou na região do bar do Nego. Nenhum com vontade de sair e ter que aguentar a companhia do traste. No meio da tarde, Vina e Dama foram dar um rolê até a praça. Esta fica duzentos metros distante do Bar do Nego. Ninguém quis ir com elas. De repente, Duas Caras apareceu junto delas. No mesmo instante, em um dos cantos da praça elas viram Brutus e seus dois capangas. Eles vinham em direção a elas. Fazia tempo que os três malvados não eram vistos na região. Chegaram e comecaram a ameaçar:
_ As duas estão só com esse amiguinho novo? Perguntou Brutus.
Pedroca ajuntou:
_ Que pena! Hoje que íamos nos vingar daquele falso Lorde.
E Zarolho, indo pra cima delas, ameaçou:
_ Mas a gente pode aproveitar das duas agoras.
Nesse momento, Duas Caras se colocou em frente às duas. Zarolho e ele rosnaram. E se enrolaram. Brutus e Pedroca foram ajudar o colega. Mas, Duas Caras era muito forte e valente. Disse para as duas:
_ Corram. Eu seguro eles aqui. E avançou contra Brutus e Pedroca.
As duas fugiram. Assim que chegaram e avisaram os outros, todos foram para a praça. Lá chegando, viram Duas Caras ensanguentado, mas em pé. Os outros cachorros tinham fugido. Duas Caras foi mancando em direção a eles. Alemão e o velho China apoiaram o forasteiro. Devagar voltaram para o quintal do Bar do Nego. Sandoval já tinha terminado o serviço. Cuidou de seu cão.
De noite, depois que todos tinham comido e estavam se preparando para dormir, Lorde Kennedy disse para Duas Caras:
_ Você podia fazer parte de nossa gangue.
Os demais concordaram. China, brincando com Duas Caras, comentou:
_ De vez em quando, você precisa de uns corretivos. Mas, é um cachorro leal.
Ao que Duas Caras respondeu:
_ Não, meus amigos. Meu lugar é ao lado de Sandoval. Aonde ele for, eu vou. Ele precisa de meus cuidados.
E, na manhã seguinte, todos se despediram de Duas Caras e Sandoval.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Durvalina e o cão de olhos vermelhos

No começo fez-se a escuridão. Repentina. Estavam, todos, na cozinha. A mesa posta em cada casa do vilarejo. Recém sentados. Mal começaram a se servir, as luzes se apagaram. Todas ao mesmo tempo. As nuvens negras impediram que a lua cheia abrandasse a completa falta de luz. O vilarejo às escuras.
À escuridão, seguiu-se o silêncio. Sepulcral. Estranhamente, nenhum som se ouviu. Permaneceram calados. Imóveis. Os lábios de cada um, firmemente cerrados. Assustados. Incapazes de qualquer balbucio. Lá fora também! Silencioso, o vilarejo parecia ter deixado de existir. Como se o tempo parasse. Acontecera como o ancião previra. Mas, somente Durvalina sabia.
Nove meses atrás. Ele chegara ao vilarejo. Acompanhado de um enorme cachorro. Olhos negros, como a pele do cachorro. Os do cão, vermelhos. A vasta cabeleira grisalha do homem se estendia até a cintura.
Na sua chegada, quase todos ficaram ressabiados. A figura estranha, arqueada com uma corcunda enorme. A pele branca e enrrugada. Apareceu na praça. De repente. Como se tivesse surgido do nada. Uma aparição. No meio da tarde. Muitos correram para casa. Os que já estavam em casa, fecharam portas e janelas.
Durvalina foi a única que não se preocupou com o forasteiro. Ela havia sonhado na noite anterior. Com gravidez. Aos 90 anos, longos cabelos grisalhos contrastando com o negrume dos olhos. No sonho ela vira uma cadela prenha. Da cachorra, nasceu apenas um enorme cão preto de olhos vermelhos, acolhido por um ancião corcunda. Era premonitório o sonho. Sonhar com mulher grávida é prenúncio de chegada. O que será, ninguém sabe. Sempre surpresa. Mas, certa.
Durvalina acolheu o ancião e seu cão em casa. Passava pela praça no momento da aparição. Jesualdo e Chico. Chico ficou no quintal. Juntou-se a Madalena, a velha gata que escolhera morar com Durvalina. Se estranharam a princípio. Jesualdo acariciou Madalena, ao mesmo tempo que ralhou com Chico. Gata e cachorro sossegaram.
Jesualdo entrou e foi direto ao quarto de Madalena. O único da casa. Com uma cama de viúva. Deitou-se. Adormeceu profundamente. Acordou apenas na manhã seguinte. Sol alto. Quase dez horas da manhã. Nem percebeu que Durvalina dormiu a seu lado. Pelo menos, foi o que ela pensou.
Na cozinha, Durvalina começava os preparativos do almoço. Arroz, feijão, frango a passarinho, salada de tomate. Jesualdo entrou. Se serviu do café na garrafa térmica. Morno. Fez uma careta. Saiu pro quintal. Chico e Madalena esticados no último degrau da pequena escada que unia a porta da cozinha ao nível do solo. Quatro degraus. De vermelhão.
Depois do almoço, Jesualdo chamou Chico e partiu. Do portão, avisou Durvalina. Daqui nove meses ficará escuro e fará silêncio. Não se assuste. Mesmo no escuro, caminhe até a praça. Nada te impedirá.
Durvalina lembrou do aviso de Jesualdo. Tateando no escuro, caminhou em direção à praça. Ao chegar, a lua surgiu entre as nuvens. Iluminou o centro da praça. No coreto, de uma cachorra nascia um cão preto, grande, de olhos vermelhos. Ao mesmo tempo, em Durvalina, cresceu uma corcunda.
Ela acolheu o cão. Seguiu em direção à estrada. Em busca de seu destino. Sua missão estava começando. A premonição do sonho. Surpresa, mas certa. Ela pensou que era o ancião e seu cachorro. Estava enganada. 
Enquanto caminhava, as nuvens se afastaram, a lua cheia clareou a noite. As luzes se acenderam nas casas. Sons foram ouvidos.
Na manhã seguinte, perceberam a ausência de Durvalina. Madalena, esticada no topo da pequena escada junto à porta da cozinha, se aquecia ao sol.

domingo, 12 de julho de 2020

Alzira

Lorde Kennedy estava deitado. Com a cabeça recostada em um velho travesseiro. Um dos quatro de que Nego se desfizera quando comprou novas roupas de cama. Foi quando Alzira se juntou a ele. Uma mulata mineira que chegara de Belo Horizonte. O sol da manhã aquecia o corpo de Kennedy. Os demais cães da gangue tinham se refugiado do sol sob a mangueira no quintal dos fundos do bar do Nego. Um sol de inverno. Aquecia o corpo e, talvez, a alma. Vai que os animais têm alma. Vai saber!
Quando ela entrou pela primeira vez no bar do Nego, este mal pode conter o sorriso. Viera de férias para São Chico. Funcionária aposentada da prefeitura de BH. Buscava um canto para desfrutar das economias que fizera durante um quarto de século. Sózinha no mundo. Se encantou com o sorriso e os olhos brilhantes de Nego. Era um dia de pouco movimento no bar. Nego se derreteu por Alzira. Duas semanas depois, ela se mudou para lá. Ligou para o pai. Viúvo. Ficara em BH. No apartamento da filha. Esta só falou:
_ Cuida de minhas coisas. São Chico é um paraíso. Vou ficar por aqui.
O pai, aos 75 anos, sentiu a felicidade na voz de Alzira. Também tinha sua aposentadoria. Mais do que suficiente. A maior parte usada para pagar o plano de saúde. O restante lhe garantia os pequenos prazeres da vida. Uma cervejinha com os amigos no final de semana. As pequenas apostas no jogo semanal de cacheta na casa de Juvenal. Um cinema de vez em quando. E, a cada qiinze dias, motel com Rogéria. Amante de vinte anos. Mulher de Juvenal. Ele só disse:
_ Seja feliz filha. Não se preocupe comigo. Quem sabe no próximo verão vou lhe visitar em São Francisco do Sul.
Ao mesmo tempo, falou para si mesmo:
_ Não vou precisar mais gastar com motel. Vou contar a novidade para Rogéria.
Para sorte de Lorde Kennedy e sua gangue, Alzira adorava cães. No apartamento nunca pudera ter um. A convenção do condomínio não permitia. Lorde Kennedy e seus companheiros só estranharam quando, ao final da tarde, no dia anterior, ela chegou com coleiras e guias para todos. Tentou colocar a novidade neles. Foi aquele fuzuê! A cachorrada corrrendo como doidos pelo quintal. Alzira teve que desistir.
Quando Alzira contou para Nego que queria passear com os cães. Nego caiu na gargalhada. Disse:
_ Meu bem, essa cachorrada veio da rua. São livres. Não dá pra prender com coleiras e guias.
Alzira só comentou:
_ Que pena! Queria tanto a companhia deles em minhas caminhadas diárias.
Naquela manhã, enquanto Lorde Kennedy se aquecia ao sol, Chumbinho comentava com o velho China:
_ Essa mulher do Nego pensa que a gente é cachorro de madame. Viu o que tentou ontem.
China confirmou:
_ Pois é! Querer amarrar a gente. Onde já se viu!
Os demais entraram na conversa. Dama comentou:
_ Nego está tão feliz com ela.
Alemão e Vina concordaram. O velho China, com seu jeito calmo, refletiu:
_ A gente tem que ajudar ele a ficar com ela.
Nesse momento, Lorde Kennedy abriu um dos olhos e disse:
_ Vamos levar ela até a Prainha. Mostrar que gostamos dela. Da próxima vez que ela sair no final da tarde, vamos juntos. Ela só quer companhia.
Nada como a sabedoria canina, para compreender os humanos.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Degenerados ou Hospício de Geômetras

No hospício, um sujeito se pensava um ponto, mas os amigos diziam que ele era um circulo. Não devia degenerar.
No entanto, seus amigos eram todos elipses que pensavam ser círculos como ele. Por isso, ele estava na mesma ala dos amigos.
Chateado, o sujeito foi reclamar com o diretor. Este lhe disse:
_ Não dá bola pra eles meu amigo. Aqui todos têm tendência a degenerar.
Diante do espanto do sujeito, o diretor arrematou:
_ Eu quando aqui cheguei, me sentia uma parábola. Mas, depois de algum tempo degenerei nessa reta que você está vendo.
E se você pensar em ir reclamar pro bispo, não vai adiantar. O bispo é um retângulo que degenerou em segmento. Na vida, somos ou seremos todos degenerados um dia.

Para entender o mini conto, talvez lhe ajude acessar este link: 
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Degenera%C3%A7%C3%A3o_(matem%C3%A1tica)

Inspirado na leitura de "A assinatura das coisas. Peirce e a literatura", de Lucia Santaella, quando aprendi um novo significado para degenerado. Da geometria.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Dupla negação

Ela me contou um história. Ou seria estória? Ou terá sido mais de uma? Então, ela me contou, ao menos, uma estória ou, ao menos, uma história.
Eu acho que foi, ao menos, uma estória. Se fosse, ao menos, uma história, historiadora seria. Nunca me disse ser historiadora. Também não disse não o ser.
Ih! Uma dupla negação! Alguém me disse que dupla negação não é elegante. Acho que foi ela. Agora me lembro. Sim. Foi ela.
Ela que me contou, ao menos uma estória. Como eu sei? Porque ela não seria historiadora. Uma historiadora jamais diria que uma dupla negação não é elegante. Afinal, na história já se viu muita dupla negação! É um tal de eu não disse que não disse, mas também não disse que disse. Estes personagens da história! Sempre negando o negado ou o não negado.
A gente não consegue não ficar irritado!
Olha aí. Mais uma dupla negação.
Agora, se ela for escritora, como ela é, ela pode ter dito que uma dupla negação não é elegante. Ou ela poderia não ter dito.
É tudo uma questão de memória! A minha. Pensando bem, acho que não foi ela. Não! Foi alguém que disse que em estórias policiais, uma dupla negação confunde quem lê ou quem assiste.
Então, foi um escritor ou foi um roteirista. Se bem que roteirista escreve. Então pode ser um escritor. O roteirista. Não quem disse que dupla negação confunde o leitor. Ou confunde quem assiste?
Está confuso? Eu também. Mas, fique tranquilo. Se você contar pra alguém, eu não nego que não disse. Tampouco, nego que não pudesse ter dito. Afinal, é tudo uma questão de vício. Sou viciado em dupla negação.
O pior é que pode ser que ninguém me disse nada. Eu que li em algum lugar. Ou não li em nenhum lugar. Duplamente negado. Não falei? Esse vicio!

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Enxurradas em Londrina

Hoje me veio à lembrança as enxurradas da infância. Morávamos na esquina da Goiás com a Paranaguá. Na época da Casa Gimenez. A mercearia. Antes de se tornar supermercado. Era em Londrina.
Nossa casa era grudada à mercearia. Havia uma porta que ligava a mercearia à sala da casa. Não tenho certeza. A porta existia. A que espaço da casa dava acesso é que ficou incerto na lembrança.
Lembro, ainda, do jardim da casa. Saía para a rua Goiás. Uma escada de três ou quatro degraus. A porta da rua ficava no topo da escada. Tinha portão. Um jardim com flores e uma parte de calçada. 
Não era um jardim grande. Mas, tinha muito tatuzinho. Aqueles bichinhos que viravam bolinhas quando se bolia com eles.
Da janela da sala, se via o jardim. A calçada vermelha do jardim. Os degraus também. De vermelhão. Tingia minha calça quando sentava no chão. Era tempo que muleque usava calças curtas. Vermelhas, as rosas também. Lembrança ou imaginação?
A Goiás já tinha a descida uma quadra acima. Na esquina com a Santos. Quando chovia forte vinha a enxurrada. Lá de cima. Descia a Goiás a partir da Santos. Barrenta. A rua já era asfaltada. Mas, a enxurrada era barrenta. Estranha memória. Parece mentira. Mas, era assim.
Faz tanto tempo que não vejo uma enxurrada! Será que só dá enxurrada na infância?
Gostava de ver folhas e galhos descendo rápido. Iam se juntar lá no final da Goiás. Pra baixo da Antonina. Rua Antonina que virou JK. Da janela da sala eu via a enxurrada. Vezenquando, sentava no meio fio e esticava as pernas. A enxurrada subia. Espumava nas pernas. Até arrastava. Uma vez perdi um sapato. Lembrança ou imaginação?
Bem que podia passar uma enxurrada hoje. Tanta coisa pra ser arrastada. Podia até ser um sapato. Mas, já não sou criança. As enxurradas estão só na lembrança. Que pena!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Hora do almoço

Então ele veio ao meu encontro. Irado. Como se tudo fosse minha culpa. Tudo mesmo! Eu fiquei na minha. Deixei ele botar tudo pra fora.
Tinha alguma coisa a ver com o nosso passado. Mas, ele além de irado, estava confuso. Não falava coisa com coisa. Até palavrão saiu da boca do puto. Só não entendi o que eu tinha feito. Nem quando!
Eu só ouvindo. Fingindo atenção. Idiota! Enquanto, ele se exaltava, eu pensava no almoço. Já era mais de onze horas. Aquela fome começando a incomodar. Eu ia prestar atenção nele? Idiota! Claro que não! Com fome quem liga pra gente nervosa? Você? Nem eu.
Ainda mais no dia que eu acordo mais cedo. Toda terça. Seis da manhã, de banho tomado. Aquele café com leite morno e um pão borrachudo. Sem manteiga. Já imaginou como estava a fome naquela hora, né?
Aí, de repente, ele aquietou. Caladinho! Com uma baba escorrendo no canto direito da boca. Nojento! Os olhos arregalados. Cara avermelhada. Ofegante. Eu só olhando. E pensando. No quê? Na fome, ué! Em que mais?
Ele? Foi acalmando. Me olhando sério. Limpou a baba do canto da boca com a mão esquerda. O vermelhão da cara roseando. Depois, branqueando. As fuças se acalmando.
Eu só olhando. E pensando. No quê? Ah, você já sabe né? No que seria? A fome, pô!
De repente, ele me pergunta: você não vai falar nada?
_ Rapaz, tô com uma fome que você não imagina! E saltei fora.


domingo, 29 de março de 2020

Culpa de Clarice!

Na reclusão de um domingo, véspera de uma segunda-feira a ser vivida recluso, a ele assombravam as lembranças.
Já havia notado antes. Mas, nesse domingo, a angústia bateu forte. Culpa de Clarice! A cada conto cuja leitura concluía, nascia a angústia.
Nesse domingo lera A Mensagem em Todos os Contos, coletânea dos textos curtos de Clarice. Lembranças de um avô lhe interrompiam, a cada página, a concentração. Até parecia uma concertação dos deuses. Mas, qual o quê! Deuses não existem. Era sua memória. Claro! A lembrança trazia a angústia. Culpa de Clarice!
Como quase todos, tinha dois avôs. O materno e o paterno. Do primeiro lhe ocorriam memórias da infância e adolescência. Do segundo, mais distante, poucas memórias. Uma, contudo, lhe doía.
Não moravam na mesma cidade. A essa altura da vida, o avô já não vivia. Mas, a lembrança persistia. Uma lembrança de um quarto de século atrás. Fazia anos que pensava tê-la esquecido. Ela brotou forte. Culpa de Clarice! Gêmea da angústia. Forte também. Mas, isso já disse.
O motivo da viagem não lembrara. Fora com o pai. Visita à terra natal do pai. Retorno à casa materna do pai. Da avó. Do avô. Ele ficara sem ir àquela cidade por quase uma década. Difícil precisar! Talvez mais. Se menos, muito pouco. O seu pai não! Certamente, estivera na cidade natal algumas vezes naquela década.
Mas, ele não. A vida os distanciara. Tinha vivido em outros locais. Viajara muito. Não à cidade do avô paterno. Isso não fora culpa de Clarice. Naquela época não a lia.
Por motivo que não recordava, tinha sido o motorista do pai naquela viagem. Na chegada, como sempre, tímido. Ele. Não o pai. O pai nunca foi. Nisso era diferente do pai. Em outros aspectos, muito parecidos. O mesmo jeito de sentar. Um mesmo humor debochado. Coisas da genética! Só cientistas para explicar.
Da timidez, nasce um aperto de mão com o avô. Um boa tarde quase inaudível. Um como vai o senhor formal. Distante. Avô e pai se abraçam. Isto à porta da casa. Praticamente na calçada. A porta da casa abria direto na calçada. Entram enfim. Sentam-se ao sofá. Engraçado que na memória não surge a avó. É provável que o avô já fosse viúvo. Ele não se recorda. Culpa de Clarice?
Depois de alguma conversa, veio do avô a pergunta. Dirigida ao pai. Ele ao seu lado. Quieto. Outra qualidade que o diferia do pai. Uma pergunta inesquecível:
_ Quem é esse homem que veio com você?
Depois da resposta. Um abraço apertado. De avô em neto. Mais inesquecível ainda! Guardado na memória. Ele pensava esquecido. Renasceu naquele domingo. Culpa de Clarice.


domingo, 16 de fevereiro de 2020

Quase

No ônibus. Ela já embarcada. Ele embarcou na estação central. Nenhum lugar disponível. Se encostou em um canto. Na diagonal dela. À esquerda.
Os olhares se cruzaram. Assim que o coletivo se pôs em movimento. Ele desviou o olhar.
Ela continuou a fitá-lo. Minutos depois, ele olha de novo. Percebe que ela continua a olhá-lo. Com olhos azuis. Intensos. O da direita levemente manchado de cinza na parte inferior.
Mais uma vez, ele desvia o olhar. Sente uma queimação na nuca. É como se o olhar dela irradiasse calor. Intenso.
Ele não resiste. Olha de novo. Ela firme com o olhar em sua direção. Ele tenta encarar. Não consegue. Desvia de novo.
O ônibus se aproxima da próxima estação. Incomodado, ele decide desembarcar. Ela sai do ônibus logo depois dele. Sem jeito, ele vai para a saida da estação. Pretendia apenas esperar o próximo ônibus. Ela desce os degraus da estação. Passeio Público. Vai em direção ao portal. Passa por ele. Ele vai atrás. Enfeitiçado por aqueles olhos azuis. Intensos.
No Passeio, as novas fontes de água ainda estão ligadas. No final da tarde, elas estão envoltas por uma névoa fraca. As luzes amarelas se refletem na névoa e na água das fontes. Os dois seguem pelo passeio. Ela à frente.
Já passaram pelo canto dos jogadores de dominó e truco. Logo em seguida, pelo posto policial. Ela se dirige à saída. Olha para trás. Para. Ele para também. Os olhares se cruzam. Pela última vez.
Ela segue pela rua lateral do Passeio. Ele continua dentro do Passeio. Caminha às marges do pequeno lago.
As fontes de água param de jorrar. As luzes se apagam. Os dois continuam. Sós. Separados pela cerca do Passeio.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Vingança

Como foi que aquilo começou? Esta pergunta estava na mente de todos. A resposta só ela sabia. Não contaria a ninguém. Nem mesmo à outra.
Assim, eu não pude narrar nada. Também não sabia a resposta. Poderia fingir. Foi sua sugestão. Contar qualquer estória. Mas, e se ela ficasse sabendo de minha estória. Será que ficaria quieta? Me desmentiria?
Carreguei essa dúvida. Por anos. Ela manteve o silêncio. Eu também. Você, no começo, me cobrava. Às vezes, brutal até! A sua fala me doía. Você não inventa estórias? Era sua pergunta. Com aquele olhar cínico e sorriso velado.
Nao sabe como doía. Também não tem como saber. Afinal, quem já foi capaz de narrar a dor? Se alguém já foi, que me diga como! Eu ainda não sei como. Mas, esse caminho não interessa. Pelo menos nessa estória. Talvez em outra.
Estranhei quando você diminuiu a frequência da cobrança. Mas, quando eu menos esperava, você retomava a questão. Eu me calava. Não tinha o que lhe dizer. Teve momentos que quase inventei algo. Mas, o medo da reação dela me continha.
Hoje resolvi contar como tudo aquilo começou. Contei para todos. Na frente dela. A outra também estava lá. Só você não ouviu. Era seu velório.
Você, se pudesse ouvir, não acreditaria. Sabe o que ela disse? É isso mesmo. Pensei que só eu soubesse.
Se lhe serve de consolo, há outros que também não sabem como foi que aquilo começou. Mas, um dia eu me vingo de você e escrevo a narrativa. Aí, todos saberão. Menos você. Tinha que morrer tão cedo?