quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Entre a luz e a escuridão

Fazia tempo que ela vinha avisando a todos. Não acreditavam. Ela dizia. E completava. Esse dia ainda vai chegar. A maioria duvidava. Ela está fora de seu juízo. A conclusão da maioria ia nessa direção. Mas, havia uns poucos que levavam a sério os alertas de Durvalina.
Isto tudo aconteceu antes do sumiço dela. No dia seguinte à chegada do velho andarilho e seu cão de olhos vermelhos. Durvalina, você sabe, foi a única que acolheu a dupla em casa. Mas, isso não importa. O importante é o que ela passou a dizer desde então. O sumiço dela só aconteceria nove meses após a chegada de ambos. Mas, isto também você já sabe.
O primeiro que foi alertado era um muleque. O pequeno Rodrivaldo. Filho de Ronaldo, o coveiro, e neto de Andriela, a mais antiga parteira da região. A mãe quis que o nome do filho combinasse o do pai com o da avó. Morreu no parto. Respeitaram sua vontade. Mais de uma centena de viventes tinham visto a luz primeiro nas mãos de Andriela. Ronaldo enterrou a mulher. Mãe e filho nas pontas do ciclo da vida no vilarejo. O começo e o fim.
Rodrivaldo passava em frente à casa de Durvalina. A anciã viu o muleque. Chamou por ele. Rodrivaldo tinha medo da velha. Saiu correndo quando da boca de Durvalina ouviu a profecia. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Sem entender, contou ao pai. Este só respondeu que deixasse a velha pra lá. É maluca!
Da outra vez, foi com a própria Andriela. A parteira voltava da casa de Rosália e Marinelvo. Trabalho dobrado. Gêmeos. Cansada, a parteira parou em frente à casa de Durvalina. Sua casa ainda distava uns 150 metros. Na mesma rua. Durvalina veio à porta e repetiu. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
Uma semana depois, foi a vez de Ronaldo. Ia em direção à casa da mãe. No caminho, viu Durvalina à janela. Madalena, a gata, a seu lado. A anciã com o cachimbo na boca, deu uma baforada. E alertou o coveiro que lhe acenara. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O homem fez o sinal da cruz. Apressou o passo. Na casa de Andriela contou à mãe o que ouviu da outra mulher. A mãe lhe disse que também ouvira de Durvalina a mesma coisa. Ronaldo lembrou e comentou que Rodrivaldo também ouvira. Andriela encerrou o assunto. Que deixasse a velha pra lá. É maluca!
A partir desse dia, todo e qualquer cristão que encontrasse Durvalina era avisado. Alguns riam. Troçavam da velha. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar. Era o aviso. Chamavam de caduca. Outros apressavam o passo. Se benziam.
Com o passar dos dias, muitos começaram a evitar Durvalina. Se afastavam quando notavam que se aproximava. Desviavam de caminho para não passar em frente a sua casa. Mas, às vezes, alguém era surpreendido pela anciã. Ela chegava de mansinho. E gritava. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia ainda vai chegar.
O tempo passou. Até aquele dia... Andriela acordou com contrações muito fortes. Da noite para o dia, uma barriga imensa se formara. Gritava. Muito. Alto. Vizinhos escutaram. Assustados, foram atrás de Ronaldo. Ele entrou no quarto da mãe. De quatro, de suas entranhas saía uma massa disforme. Vermelha de sangue. Sem pé. Sem cabeça. Como se fosse uma bola de carne. Ao ver o que acontecia, Ronaldo amparou a mãe. Desfez-se da massa disforme na privada da casa. Ao voltar para o quarto da mãe, caiu duro para trás. Morto.
Nuvens escuras esconderam o sol. Andriela se recuperou. Pegou o filho. Enrolou em um lençol. Teve ajuda dos vizinhos e de Rodrivaldo. Ainda no escuro, o cortejo foi em direção ao cemitério. Andriela enterrou o filho. Na volta para casa, ouviu do neto. Entre a luz e a escuridão, um dia se inverterão o fim e o começo. Esse dia chegou. Nesse momento, Durvalina e Madalena surgiram à janela.

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