sexta-feira, 17 de abril de 2020

Dupla negação

Ela me contou um história. Ou seria estória? Ou terá sido mais de uma? Então, ela me contou, ao menos, uma estória ou, ao menos, uma história.
Eu acho que foi, ao menos, uma estória. Se fosse, ao menos, uma história, historiadora seria. Nunca me disse ser historiadora. Também não disse não o ser.
Ih! Uma dupla negação! Alguém me disse que dupla negação não é elegante. Acho que foi ela. Agora me lembro. Sim. Foi ela.
Ela que me contou, ao menos uma estória. Como eu sei? Porque ela não seria historiadora. Uma historiadora jamais diria que uma dupla negação não é elegante. Afinal, na história já se viu muita dupla negação! É um tal de eu não disse que não disse, mas também não disse que disse. Estes personagens da história! Sempre negando o negado ou o não negado.
A gente não consegue não ficar irritado!
Olha aí. Mais uma dupla negação.
Agora, se ela for escritora, como ela é, ela pode ter dito que uma dupla negação não é elegante. Ou ela poderia não ter dito.
É tudo uma questão de memória! A minha. Pensando bem, acho que não foi ela. Não! Foi alguém que disse que em estórias policiais, uma dupla negação confunde quem lê ou quem assiste.
Então, foi um escritor ou foi um roteirista. Se bem que roteirista escreve. Então pode ser um escritor. O roteirista. Não quem disse que dupla negação confunde o leitor. Ou confunde quem assiste?
Está confuso? Eu também. Mas, fique tranquilo. Se você contar pra alguém, eu não nego que não disse. Tampouco, nego que não pudesse ter dito. Afinal, é tudo uma questão de vício. Sou viciado em dupla negação.
O pior é que pode ser que ninguém me disse nada. Eu que li em algum lugar. Ou não li em nenhum lugar. Duplamente negado. Não falei? Esse vicio!

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Enxurradas em Londrina

Hoje me veio à lembrança as enxurradas da infância. Morávamos na esquina da Goiás com a Paranaguá. Na época da Casa Gimenez. A mercearia. Antes de se tornar supermercado. Era em Londrina.
Nossa casa era grudada à mercearia. Havia uma porta que ligava a mercearia à sala da casa. Não tenho certeza. A porta existia. A que espaço da casa dava acesso é que ficou incerto na lembrança.
Lembro, ainda, do jardim da casa. Saía para a rua Goiás. Uma escada de três ou quatro degraus. A porta da rua ficava no topo da escada. Tinha portão. Um jardim com flores e uma parte de calçada. 
Não era um jardim grande. Mas, tinha muito tatuzinho. Aqueles bichinhos que viravam bolinhas quando se bolia com eles.
Da janela da sala, se via o jardim. A calçada vermelha do jardim. Os degraus também. De vermelhão. Tingia minha calça quando sentava no chão. Era tempo que muleque usava calças curtas. Vermelhas, as rosas também. Lembrança ou imaginação?
A Goiás já tinha a descida uma quadra acima. Na esquina com a Santos. Quando chovia forte vinha a enxurrada. Lá de cima. Descia a Goiás a partir da Santos. Barrenta. A rua já era asfaltada. Mas, a enxurrada era barrenta. Estranha memória. Parece mentira. Mas, era assim.
Faz tanto tempo que não vejo uma enxurrada! Será que só dá enxurrada na infância?
Gostava de ver folhas e galhos descendo rápido. Iam se juntar lá no final da Goiás. Pra baixo da Antonina. Rua Antonina que virou JK. Da janela da sala eu via a enxurrada. Vezenquando, sentava no meio fio e esticava as pernas. A enxurrada subia. Espumava nas pernas. Até arrastava. Uma vez perdi um sapato. Lembrança ou imaginação?
Bem que podia passar uma enxurrada hoje. Tanta coisa pra ser arrastada. Podia até ser um sapato. Mas, já não sou criança. As enxurradas estão só na lembrança. Que pena!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Hora do almoço

Então ele veio ao meu encontro. Irado. Como se tudo fosse minha culpa. Tudo mesmo! Eu fiquei na minha. Deixei ele botar tudo pra fora.
Tinha alguma coisa a ver com o nosso passado. Mas, ele além de irado, estava confuso. Não falava coisa com coisa. Até palavrão saiu da boca do puto. Só não entendi o que eu tinha feito. Nem quando!
Eu só ouvindo. Fingindo atenção. Idiota! Enquanto, ele se exaltava, eu pensava no almoço. Já era mais de onze horas. Aquela fome começando a incomodar. Eu ia prestar atenção nele? Idiota! Claro que não! Com fome quem liga pra gente nervosa? Você? Nem eu.
Ainda mais no dia que eu acordo mais cedo. Toda terça. Seis da manhã, de banho tomado. Aquele café com leite morno e um pão borrachudo. Sem manteiga. Já imaginou como estava a fome naquela hora, né?
Aí, de repente, ele aquietou. Caladinho! Com uma baba escorrendo no canto direito da boca. Nojento! Os olhos arregalados. Cara avermelhada. Ofegante. Eu só olhando. E pensando. No quê? Na fome, ué! Em que mais?
Ele? Foi acalmando. Me olhando sério. Limpou a baba do canto da boca com a mão esquerda. O vermelhão da cara roseando. Depois, branqueando. As fuças se acalmando.
Eu só olhando. E pensando. No quê? Ah, você já sabe né? No que seria? A fome, pô!
De repente, ele me pergunta: você não vai falar nada?
_ Rapaz, tô com uma fome que você não imagina! E saltei fora.