terça-feira, 22 de novembro de 2016

Cena portuguesa

No Bar da Estação em Olhão. Um cachorro, um bebê de um mês no carrinho, a mãe do bebê a fumar à porta, o velho proprietário, dois clientes locais, um jovem loiro ao celular em uma das oito mesas. Entra um brasileiro. Faz um cafuné no cachorro que está no meio do caminho. Espera o velho vir atendê-lo. Pede um café. Pergunta o preço. Paga setenta centavos de euro. Conta as moedas com dificuldades, pois ainda não liga valor a tamanho.
Um turista francês lendo Tendre est la nuit de F. Scott Fitzgerald em formato de bolso. Bebe café e fuma sentado junto a uma das quatro mesas externas. Em outra, duas mulheres, talvez mãe e filha. Pelo diálogo com o velho parecem freguesas habituais.
Manhã de céu azul e sol. Quase nenhuma nuvem. Chega o trem para Vila Real de Santo Antonio. O brasileiro embarca. Assim como quase duas dezenas de passageiros. São onze e quarenta e cinco. A viagem deve durar cerca de uma hora. Pouco mais.
Na primeira estação, Fuseta, um passageiro desembarca antes que o fiscal consiga verificar seu bilhete. Ao menos é o que sugere seu olhar furtivo e a pressa com que desce. Impressão reforçada por seu constante olhar para trás enquanto caminha em direção à saída da estação.
No vagão, o brasileiro observa e ouve os demais. À exceção dos que conversam, tenta adivinhar entre os calados, quais são locais e quais são turistas. Aquele homem de meia idade, barba por fazer e carrancudo, será português? Aposta que sim. Parece um exercício fútil. Mas, o que não é? A imaginação humana cria propósitos para uma sequência aleatória de eventos. Apenas para manter a sanidade. Mas, a quem queremos enganar, senão a nos mesmos. O brasileiro segue a vida. Ou é a vida que segue o brasileiro? Parece ouvir alguém dizer:
_ Corta!
Foi um longo plano sequência. A estação é Tavira. No vagão, além do brasileiro, restaram uma idosa e uma linda jovem negra. Embarcada na estação anterior. Nas suas orelhas brilham brincos perolados. O contraste com a pele da moça é magnético. O brasileiro não pode deixar de olhar na sua direção. Encontrar a beleza seria este o propósito? O brasileiro tenta se enganar mais uma vez. Não se conforma com a inexistência deste. Quando ergue os olhos, vê a jovem negra se afastando da estação. Ele nem percebera a parada. Foi um baixar de olhos tão rápido. Escreveu algo ao celular. Desolado,  sem compreender bem o que sente, segue sua busca. Não chegou em sua estação final.
Quase chegando a seu destino. Uma força o faz redefini-lo. Desconhecida. Irá cruzar o rio para pisar mais uma vez em terras espanholas. Parte em busca do barco que o levará ao encontro de algo. Não sabe o que. Se vê refletido na divisória transparente do vagão. Atrás de si, algo que não reconhece. Um vulto desaparece assim que percebe ter sido notado. O brasileiro desvia o olhar. 
_ Mais um fruto da sua imaginação. Diz para si mesmo. O que não é?

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pressupostos

No restaurante, um casal é servido de suas bebidas. A garçonete coloca o suco de laranja à frente da mulher. Em seguida, traz o vinho verde e serve uma taça para o homem. Assim que ela se vira, as bebidas são trocadas pelo casal.
A garçonete, ao invés de perguntar, supôs que o vinho teria sido a escolha do homem. Um pressuposto guiado pelas práticas sociais usuais. Mas, nem sempre acertamos em nossos pressupostos.
Ao servir os pratos, a garçonete foi mais cautelosa. As escolhas tinham sido: picanha e olho de bife. Ao trazer a picanha, ela perguntou para quem era. Da mulher. O homem escolhera o olho de bife.
Estou em Portugal, no aeroporto de Lisboa. A essa altura você deve estar imaginando que o homem dessa história sou eu. E, com certeza, se perguntando quem seria a mulher. Minha esposa deve ser a resposta que surge em sua mente.
Mais uma vez, se você imaginou assim, se enganou. Mais um pressuposto deve ter lhe encaminhado a uma conclusão errada. Com tantos detalhes, só quem viveu a história poderia narrá-la. É como você poderia justificar sua imaginação.
Eu comi lombo de bacalhau e tomei cerveja. Sozinho. Enquanto espero minha conexão, tenho tempo de sobra para observar o movimento ao meu redor.
Como em um filme, vejo o que se enquadra em meu campo de visão. O que está fora do campo, não posso enxergar, mas posso imaginar. O piscar de olhos de um e o sorriso da outra são o que vejo. Ela muito jovem. Ele perto dos cinquenta. O que imagino não vale a pena revelar. Provavelmente, meus pressupostos me enganarão!