terça-feira, 25 de outubro de 2016

O cinéfilo solitário

Se viu no espelho. Os cabelos brancos desalinhados revelavam, além da idade, os efeitos do vento forte. Naquela tarde abafada, a ventania anunciava uma chuva forte.  Ela o pegou no meio do caminho. Conseguiu se proteger da chuva nas marquises dos prédios antigos da cidade. Esgueirou-se entre as árvores e chegou pouco molhado à entrada do cinema. 
Era o último cinema de rua. Um sobrevivente à sanha das imobiliárias que buscavam novos espaços para as igrejas que se multiplicavam quase que de forma incontrolável. Isso o incomodara bastante. Mas, com o passar dos anos, percebeu que era uma transformação inevitável. Logo, aquele cinema seria outro templo religioso. O incômodo vinha de acontecimento marcante em seu passado. Em algum momento entre a infância e a adolescência trocou a missa da manhã dominical pelas matinês do cinema em sua cidade natal. Durante muitos anos, não entrou mais em uma igreja para rezar. Perdera a fé que nunca tivera.
Depois de muito tempo, voltou a entrar em igrejas. Como turista. Ou então em casamentos. Algumas vezes como padrinho. Não pode evitar alguns pedidos de parentes ou amigos. A ocupação das salas de cinema pelas religiões lhe soava como uma vingança de deus. Se existisse.
O cinema esteve presente em vários momentos significativos de sua vida. Mas, não se tornara um ganhapão. Teve essa ilusão na juventude. Mas, acabou seguindo outros caminhos. O cinema se tornou um refúgio. Mas, você quer saber de hoje, não é? O passado longínquo não lhe interessa. Ele se viu no espelho. E daí? É o que você quer saber. Vamos lá, então.
Ele passou a mão direita sob o cabelo. Tentou ajeitá-lo. Percebeu a umidade em pequenas gotas que, sob a luz, refletiam-se prateadas. Reproduziam o grisalho do cabelo. No espelho, percebeu também as manchas da pele da mão. Cada vez mais pintada de um castanho claro. Outra marca da passagem do tempo.
Entrou na sala. Já escura. O filme não foi capaz de acompanhar. Em sua mente, outro filme se exibia. Uma a uma, as mulheres que afetara na vida foram surgindo. Não foram muitas. Elas falavam, mas ele não ouvia. Pelos gestos que faziam, percebia a raiva que acompanhava as falas. A única que não falava nada era a que tinha lhe ensinado a beijar. Aos 19 anos, ainda virgem, ele a conheceu nas aulas de matemática da universidade. Não faziam o mesmo curso, mas a disciplina era do ciclo básico. Ela passou um sábado inteiro com ele. Prometeu voltar no domingo. Não apareceu. Na segunda-feira, na aula de matemática, ela disse que lhe usara para fazer ciúmes ao namorado. No domingo fizeram as pazes. Ele achou graça. Nunca esqueceu de Maria. Acordou sorrindo. Nunca as ouvira. Só podia estar só naquela altura da vida. Na tela do cinema passavam os créditos do filme ao som de uma marchinha:
A e i o u dabliou na cartilha da Juju...
Deu tempo de ver que era de Lamartine Babo e Noel Rosa. Do filme pouco viu. Era sobre uma mulher e um homem que conversavam, mas pareciam não se escutar. Já conhecia essa estória. De longa data.
Já passara dos oitenta. Há alguns anos mudara para aquela cidade. A carga da mudança foi pequena. Uma mala de roupas. Alguns objetos pessoais que guardara ao longo da vida. Alugou um pequeno apartamento mobiliado modestamente. Seu plano de saúde tinha validade nacional. Conveniente para os checkups anuais. Continuava com uma saúde invejável. Para ele parecia outra vingança divina.

domingo, 16 de outubro de 2016

A psicóloga cega, o bebê com uma só meia e um filme argentino

Tomás tem um passado que volta à tona em seus pesadelos. Ao se esconder em uma pequena cidade do interior argentino encontra Nancy. Uma paixão desperta entre os dois. Mas, entre eles há um mundo de violência que não permitirá que fiquem juntos, a não ser em algum futuro distante. Essa trama é parte de Kóblic, filme argentino, em que Ricardo Darín é o protagonista que tenta construir uma vida escondida dos militares durante a ditadura argentina. Ele fora piloto de aviões da marinha argentina e participara, mesmo que involuntariamente, do derrame dos corpos dos opositores do regime militar argentino. Presos e torturados no auge da violência ditatorial, eram descartados em alto mar. Na angústia da memória, um lampejo de felicidade no encontro do casal. Na verdade, essa paixão é apenas um detalhe na trama do filme. Mas, é o que se conecta com os outros personagens do título desse texto.
A essa altura, você deve estar curioso sobre qual a conexão que pode haver entre um bebê, uma psicóloga e um filme argentino. Para poder compreender, creio que devo voltar aonde tudo começou. O filme argentino se juntou aos dois personagens no meio da tarde. 
Antes disso, houve um almoço em um restaurante em um shopping curitibano. Foi lá que, em meio a uma conversa, ouvi que uma mulher estava perdendo a visão. Um comentário entreouvido me revelou que ela é psicóloga clínica. Imediatamente pensei na conveniência dessa situação para um paciente envergonhado precisando revelar algo do passado. Com uma psicóloga cega, não precisaria enfrentar o olhar de outro, mesmo que profissional, no momento da revelação de um pecado, mesmo que não capital.
Lembrei-me de minhas idas a uma psicanalista vinte anos atrás. Ela não era cega. Tinha que expor minhas memórias a alguém cujo olhar cruzava com o meu. Envergonhado. Minhas memórias poderiam explicar o que tentara. Depois de alguns meses, decidi terminar o tratamento. Propus minha própria alta à profissional que me acompanhara em uma crise. Eu percebera que as sessões passaram a ter um ensaio prévio em minha mente. Já sabia o que diria e já sabia, de antemão, o que me seria dito. Manipulava a psicanalista, que, tenho certeza, competente como era, já percebera isto também. Ela não hesitou quando propus encerrar a terapia. Carregaria comigo as memórias e as rugas da vida. Como todos nós.
Na próxima cena, não do filme, ainda no restaurante, olho em diagonal para uma mesa de onde viera o som de um choro de criança. Vejo uma jovem mãe, com um bebê no colo, com poucos meses de idade. A criança tinha apenas uma meia em um dos pés. O outro, descalço, liso, sem nenhuma ruga. com aquele tom entre o vermelho e o rosa que a pele das crianças exibe, pricnipalmente nas extremidades. As rugas do nascimento já desaparecidas nos poucos meses de vida, pouco mais de ano se contarmos os meses de gestação no ventre da mãe. Praticamente sem memórias ainda. A mais grave, talvez, a da violência do nascimento. Essa criança não teria nada para contar à psicóloga cega. Carregava ainda poucas rugas e nenhuma vergonha.
Foi então que, depois do almoço, parto em busca de um filme para rechear o meio da tarde de sábado. A sessão começaria em trinta minutos. Tempo suficiente para ir ao banheiro e depois, com mãos lavadas, tomar um machiatto e folhear o jornal. Nesses trinta minutos pensei na psicóloga cega e no bebê com uma só meia. Imaginava como poderiam estar conectados. Tempo esgotado, entro na sala de cinema. O café já havia pago ao pedi-lo.
Nos primeiros momentos do filme, imediatamente o personagem de Darín se conecta aos outros dois. São elos de uma corrente cujas conexões são imperceptíveis. São como os elos de uma corrente que surge de uma impressora 3d. Vi uma assim em reportagem sobre esta invenção humana. Era impossível detectar qualquer sinal de interrupção nos elos que se juntaram naquela corrente. Era como se tivessem nascidos assim.
Os três personagens se juntam aos elos de minhas memórias. Impossível ver a separação entre eles. São parte de minha trajetória. Juntam-se às memórias de quase 60 anos de vida. Se incorporam nas rugas da pele que revelam o passar dos anos. Seguem comigo. Povoarão, ainda, em alguns momentos, sonhos ou pesadelos que surgem nos momentos do sono.

domingo, 9 de outubro de 2016

O outro

Se olhou no espelho. Era outro. Quer dizer, era ele mesmo. Mas, não se reconheceu. Ou melhor, não queria se reconhecer. Queria ser outro. 
Era esta a verdade. Não havia nada de errado ou mágico naquele espelho. O que via era a mesma pessoa da fotografia no celular. Não fazia nem uma hora que fizera a selfie. Não gostou do que viu. Foi atrás do espelho. A imagem refletida era dele mesmo. Se imaginava outro. Subitamente, esmurrou o espelho.
Junto aos estilhaços no chão gotas de sangue. No fragmento maior, o outro olhou para ele. Na ponta do nariz, uma mancha vermelha. O sangue. Viu um nariz de palhaço. Riu. Franziu os olhos. Enxergou melhor. Não era um palhaço. Deixou de sorrir. Saiu do quarto. Bateu a porta. Exclamou:
_ Idiota!
Sempre que passava por um espelho, a esperança renascia. Ver o outro. Nunca conseguiu. Às vésperas da morte, instruiu os amigos:
_ Quero um caixão com um espelho na parte interna da tampa. Se eu abrir os olhos, pode ser que veja outro. Os amigos atenderam o pedido. O mais cínico, justificou-se:
_ A esperança é a última que morre. Vai que...