domingo, 16 de outubro de 2016

A psicóloga cega, o bebê com uma só meia e um filme argentino

Tomás tem um passado que volta à tona em seus pesadelos. Ao se esconder em uma pequena cidade do interior argentino encontra Nancy. Uma paixão desperta entre os dois. Mas, entre eles há um mundo de violência que não permitirá que fiquem juntos, a não ser em algum futuro distante. Essa trama é parte de Kóblic, filme argentino, em que Ricardo Darín é o protagonista que tenta construir uma vida escondida dos militares durante a ditadura argentina. Ele fora piloto de aviões da marinha argentina e participara, mesmo que involuntariamente, do derrame dos corpos dos opositores do regime militar argentino. Presos e torturados no auge da violência ditatorial, eram descartados em alto mar. Na angústia da memória, um lampejo de felicidade no encontro do casal. Na verdade, essa paixão é apenas um detalhe na trama do filme. Mas, é o que se conecta com os outros personagens do título desse texto.
A essa altura, você deve estar curioso sobre qual a conexão que pode haver entre um bebê, uma psicóloga e um filme argentino. Para poder compreender, creio que devo voltar aonde tudo começou. O filme argentino se juntou aos dois personagens no meio da tarde. 
Antes disso, houve um almoço em um restaurante em um shopping curitibano. Foi lá que, em meio a uma conversa, ouvi que uma mulher estava perdendo a visão. Um comentário entreouvido me revelou que ela é psicóloga clínica. Imediatamente pensei na conveniência dessa situação para um paciente envergonhado precisando revelar algo do passado. Com uma psicóloga cega, não precisaria enfrentar o olhar de outro, mesmo que profissional, no momento da revelação de um pecado, mesmo que não capital.
Lembrei-me de minhas idas a uma psicanalista vinte anos atrás. Ela não era cega. Tinha que expor minhas memórias a alguém cujo olhar cruzava com o meu. Envergonhado. Minhas memórias poderiam explicar o que tentara. Depois de alguns meses, decidi terminar o tratamento. Propus minha própria alta à profissional que me acompanhara em uma crise. Eu percebera que as sessões passaram a ter um ensaio prévio em minha mente. Já sabia o que diria e já sabia, de antemão, o que me seria dito. Manipulava a psicanalista, que, tenho certeza, competente como era, já percebera isto também. Ela não hesitou quando propus encerrar a terapia. Carregaria comigo as memórias e as rugas da vida. Como todos nós.
Na próxima cena, não do filme, ainda no restaurante, olho em diagonal para uma mesa de onde viera o som de um choro de criança. Vejo uma jovem mãe, com um bebê no colo, com poucos meses de idade. A criança tinha apenas uma meia em um dos pés. O outro, descalço, liso, sem nenhuma ruga. com aquele tom entre o vermelho e o rosa que a pele das crianças exibe, pricnipalmente nas extremidades. As rugas do nascimento já desaparecidas nos poucos meses de vida, pouco mais de ano se contarmos os meses de gestação no ventre da mãe. Praticamente sem memórias ainda. A mais grave, talvez, a da violência do nascimento. Essa criança não teria nada para contar à psicóloga cega. Carregava ainda poucas rugas e nenhuma vergonha.
Foi então que, depois do almoço, parto em busca de um filme para rechear o meio da tarde de sábado. A sessão começaria em trinta minutos. Tempo suficiente para ir ao banheiro e depois, com mãos lavadas, tomar um machiatto e folhear o jornal. Nesses trinta minutos pensei na psicóloga cega e no bebê com uma só meia. Imaginava como poderiam estar conectados. Tempo esgotado, entro na sala de cinema. O café já havia pago ao pedi-lo.
Nos primeiros momentos do filme, imediatamente o personagem de Darín se conecta aos outros dois. São elos de uma corrente cujas conexões são imperceptíveis. São como os elos de uma corrente que surge de uma impressora 3d. Vi uma assim em reportagem sobre esta invenção humana. Era impossível detectar qualquer sinal de interrupção nos elos que se juntaram naquela corrente. Era como se tivessem nascidos assim.
Os três personagens se juntam aos elos de minhas memórias. Impossível ver a separação entre eles. São parte de minha trajetória. Juntam-se às memórias de quase 60 anos de vida. Se incorporam nas rugas da pele que revelam o passar dos anos. Seguem comigo. Povoarão, ainda, em alguns momentos, sonhos ou pesadelos que surgem nos momentos do sono.

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