terça-feira, 22 de novembro de 2016

Cena portuguesa

No Bar da Estação em Olhão. Um cachorro, um bebê de um mês no carrinho, a mãe do bebê a fumar à porta, o velho proprietário, dois clientes locais, um jovem loiro ao celular em uma das oito mesas. Entra um brasileiro. Faz um cafuné no cachorro que está no meio do caminho. Espera o velho vir atendê-lo. Pede um café. Pergunta o preço. Paga setenta centavos de euro. Conta as moedas com dificuldades, pois ainda não liga valor a tamanho.
Um turista francês lendo Tendre est la nuit de F. Scott Fitzgerald em formato de bolso. Bebe café e fuma sentado junto a uma das quatro mesas externas. Em outra, duas mulheres, talvez mãe e filha. Pelo diálogo com o velho parecem freguesas habituais.
Manhã de céu azul e sol. Quase nenhuma nuvem. Chega o trem para Vila Real de Santo Antonio. O brasileiro embarca. Assim como quase duas dezenas de passageiros. São onze e quarenta e cinco. A viagem deve durar cerca de uma hora. Pouco mais.
Na primeira estação, Fuseta, um passageiro desembarca antes que o fiscal consiga verificar seu bilhete. Ao menos é o que sugere seu olhar furtivo e a pressa com que desce. Impressão reforçada por seu constante olhar para trás enquanto caminha em direção à saída da estação.
No vagão, o brasileiro observa e ouve os demais. À exceção dos que conversam, tenta adivinhar entre os calados, quais são locais e quais são turistas. Aquele homem de meia idade, barba por fazer e carrancudo, será português? Aposta que sim. Parece um exercício fútil. Mas, o que não é? A imaginação humana cria propósitos para uma sequência aleatória de eventos. Apenas para manter a sanidade. Mas, a quem queremos enganar, senão a nos mesmos. O brasileiro segue a vida. Ou é a vida que segue o brasileiro? Parece ouvir alguém dizer:
_ Corta!
Foi um longo plano sequência. A estação é Tavira. No vagão, além do brasileiro, restaram uma idosa e uma linda jovem negra. Embarcada na estação anterior. Nas suas orelhas brilham brincos perolados. O contraste com a pele da moça é magnético. O brasileiro não pode deixar de olhar na sua direção. Encontrar a beleza seria este o propósito? O brasileiro tenta se enganar mais uma vez. Não se conforma com a inexistência deste. Quando ergue os olhos, vê a jovem negra se afastando da estação. Ele nem percebera a parada. Foi um baixar de olhos tão rápido. Escreveu algo ao celular. Desolado,  sem compreender bem o que sente, segue sua busca. Não chegou em sua estação final.
Quase chegando a seu destino. Uma força o faz redefini-lo. Desconhecida. Irá cruzar o rio para pisar mais uma vez em terras espanholas. Parte em busca do barco que o levará ao encontro de algo. Não sabe o que. Se vê refletido na divisória transparente do vagão. Atrás de si, algo que não reconhece. Um vulto desaparece assim que percebe ter sido notado. O brasileiro desvia o olhar. 
_ Mais um fruto da sua imaginação. Diz para si mesmo. O que não é?

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pressupostos

No restaurante, um casal é servido de suas bebidas. A garçonete coloca o suco de laranja à frente da mulher. Em seguida, traz o vinho verde e serve uma taça para o homem. Assim que ela se vira, as bebidas são trocadas pelo casal.
A garçonete, ao invés de perguntar, supôs que o vinho teria sido a escolha do homem. Um pressuposto guiado pelas práticas sociais usuais. Mas, nem sempre acertamos em nossos pressupostos.
Ao servir os pratos, a garçonete foi mais cautelosa. As escolhas tinham sido: picanha e olho de bife. Ao trazer a picanha, ela perguntou para quem era. Da mulher. O homem escolhera o olho de bife.
Estou em Portugal, no aeroporto de Lisboa. A essa altura você deve estar imaginando que o homem dessa história sou eu. E, com certeza, se perguntando quem seria a mulher. Minha esposa deve ser a resposta que surge em sua mente.
Mais uma vez, se você imaginou assim, se enganou. Mais um pressuposto deve ter lhe encaminhado a uma conclusão errada. Com tantos detalhes, só quem viveu a história poderia narrá-la. É como você poderia justificar sua imaginação.
Eu comi lombo de bacalhau e tomei cerveja. Sozinho. Enquanto espero minha conexão, tenho tempo de sobra para observar o movimento ao meu redor.
Como em um filme, vejo o que se enquadra em meu campo de visão. O que está fora do campo, não posso enxergar, mas posso imaginar. O piscar de olhos de um e o sorriso da outra são o que vejo. Ela muito jovem. Ele perto dos cinquenta. O que imagino não vale a pena revelar. Provavelmente, meus pressupostos me enganarão!

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O cinéfilo solitário

Se viu no espelho. Os cabelos brancos desalinhados revelavam, além da idade, os efeitos do vento forte. Naquela tarde abafada, a ventania anunciava uma chuva forte.  Ela o pegou no meio do caminho. Conseguiu se proteger da chuva nas marquises dos prédios antigos da cidade. Esgueirou-se entre as árvores e chegou pouco molhado à entrada do cinema. 
Era o último cinema de rua. Um sobrevivente à sanha das imobiliárias que buscavam novos espaços para as igrejas que se multiplicavam quase que de forma incontrolável. Isso o incomodara bastante. Mas, com o passar dos anos, percebeu que era uma transformação inevitável. Logo, aquele cinema seria outro templo religioso. O incômodo vinha de acontecimento marcante em seu passado. Em algum momento entre a infância e a adolescência trocou a missa da manhã dominical pelas matinês do cinema em sua cidade natal. Durante muitos anos, não entrou mais em uma igreja para rezar. Perdera a fé que nunca tivera.
Depois de muito tempo, voltou a entrar em igrejas. Como turista. Ou então em casamentos. Algumas vezes como padrinho. Não pode evitar alguns pedidos de parentes ou amigos. A ocupação das salas de cinema pelas religiões lhe soava como uma vingança de deus. Se existisse.
O cinema esteve presente em vários momentos significativos de sua vida. Mas, não se tornara um ganhapão. Teve essa ilusão na juventude. Mas, acabou seguindo outros caminhos. O cinema se tornou um refúgio. Mas, você quer saber de hoje, não é? O passado longínquo não lhe interessa. Ele se viu no espelho. E daí? É o que você quer saber. Vamos lá, então.
Ele passou a mão direita sob o cabelo. Tentou ajeitá-lo. Percebeu a umidade em pequenas gotas que, sob a luz, refletiam-se prateadas. Reproduziam o grisalho do cabelo. No espelho, percebeu também as manchas da pele da mão. Cada vez mais pintada de um castanho claro. Outra marca da passagem do tempo.
Entrou na sala. Já escura. O filme não foi capaz de acompanhar. Em sua mente, outro filme se exibia. Uma a uma, as mulheres que afetara na vida foram surgindo. Não foram muitas. Elas falavam, mas ele não ouvia. Pelos gestos que faziam, percebia a raiva que acompanhava as falas. A única que não falava nada era a que tinha lhe ensinado a beijar. Aos 19 anos, ainda virgem, ele a conheceu nas aulas de matemática da universidade. Não faziam o mesmo curso, mas a disciplina era do ciclo básico. Ela passou um sábado inteiro com ele. Prometeu voltar no domingo. Não apareceu. Na segunda-feira, na aula de matemática, ela disse que lhe usara para fazer ciúmes ao namorado. No domingo fizeram as pazes. Ele achou graça. Nunca esqueceu de Maria. Acordou sorrindo. Nunca as ouvira. Só podia estar só naquela altura da vida. Na tela do cinema passavam os créditos do filme ao som de uma marchinha:
A e i o u dabliou na cartilha da Juju...
Deu tempo de ver que era de Lamartine Babo e Noel Rosa. Do filme pouco viu. Era sobre uma mulher e um homem que conversavam, mas pareciam não se escutar. Já conhecia essa estória. De longa data.
Já passara dos oitenta. Há alguns anos mudara para aquela cidade. A carga da mudança foi pequena. Uma mala de roupas. Alguns objetos pessoais que guardara ao longo da vida. Alugou um pequeno apartamento mobiliado modestamente. Seu plano de saúde tinha validade nacional. Conveniente para os checkups anuais. Continuava com uma saúde invejável. Para ele parecia outra vingança divina.

domingo, 16 de outubro de 2016

A psicóloga cega, o bebê com uma só meia e um filme argentino

Tomás tem um passado que volta à tona em seus pesadelos. Ao se esconder em uma pequena cidade do interior argentino encontra Nancy. Uma paixão desperta entre os dois. Mas, entre eles há um mundo de violência que não permitirá que fiquem juntos, a não ser em algum futuro distante. Essa trama é parte de Kóblic, filme argentino, em que Ricardo Darín é o protagonista que tenta construir uma vida escondida dos militares durante a ditadura argentina. Ele fora piloto de aviões da marinha argentina e participara, mesmo que involuntariamente, do derrame dos corpos dos opositores do regime militar argentino. Presos e torturados no auge da violência ditatorial, eram descartados em alto mar. Na angústia da memória, um lampejo de felicidade no encontro do casal. Na verdade, essa paixão é apenas um detalhe na trama do filme. Mas, é o que se conecta com os outros personagens do título desse texto.
A essa altura, você deve estar curioso sobre qual a conexão que pode haver entre um bebê, uma psicóloga e um filme argentino. Para poder compreender, creio que devo voltar aonde tudo começou. O filme argentino se juntou aos dois personagens no meio da tarde. 
Antes disso, houve um almoço em um restaurante em um shopping curitibano. Foi lá que, em meio a uma conversa, ouvi que uma mulher estava perdendo a visão. Um comentário entreouvido me revelou que ela é psicóloga clínica. Imediatamente pensei na conveniência dessa situação para um paciente envergonhado precisando revelar algo do passado. Com uma psicóloga cega, não precisaria enfrentar o olhar de outro, mesmo que profissional, no momento da revelação de um pecado, mesmo que não capital.
Lembrei-me de minhas idas a uma psicanalista vinte anos atrás. Ela não era cega. Tinha que expor minhas memórias a alguém cujo olhar cruzava com o meu. Envergonhado. Minhas memórias poderiam explicar o que tentara. Depois de alguns meses, decidi terminar o tratamento. Propus minha própria alta à profissional que me acompanhara em uma crise. Eu percebera que as sessões passaram a ter um ensaio prévio em minha mente. Já sabia o que diria e já sabia, de antemão, o que me seria dito. Manipulava a psicanalista, que, tenho certeza, competente como era, já percebera isto também. Ela não hesitou quando propus encerrar a terapia. Carregaria comigo as memórias e as rugas da vida. Como todos nós.
Na próxima cena, não do filme, ainda no restaurante, olho em diagonal para uma mesa de onde viera o som de um choro de criança. Vejo uma jovem mãe, com um bebê no colo, com poucos meses de idade. A criança tinha apenas uma meia em um dos pés. O outro, descalço, liso, sem nenhuma ruga. com aquele tom entre o vermelho e o rosa que a pele das crianças exibe, pricnipalmente nas extremidades. As rugas do nascimento já desaparecidas nos poucos meses de vida, pouco mais de ano se contarmos os meses de gestação no ventre da mãe. Praticamente sem memórias ainda. A mais grave, talvez, a da violência do nascimento. Essa criança não teria nada para contar à psicóloga cega. Carregava ainda poucas rugas e nenhuma vergonha.
Foi então que, depois do almoço, parto em busca de um filme para rechear o meio da tarde de sábado. A sessão começaria em trinta minutos. Tempo suficiente para ir ao banheiro e depois, com mãos lavadas, tomar um machiatto e folhear o jornal. Nesses trinta minutos pensei na psicóloga cega e no bebê com uma só meia. Imaginava como poderiam estar conectados. Tempo esgotado, entro na sala de cinema. O café já havia pago ao pedi-lo.
Nos primeiros momentos do filme, imediatamente o personagem de Darín se conecta aos outros dois. São elos de uma corrente cujas conexões são imperceptíveis. São como os elos de uma corrente que surge de uma impressora 3d. Vi uma assim em reportagem sobre esta invenção humana. Era impossível detectar qualquer sinal de interrupção nos elos que se juntaram naquela corrente. Era como se tivessem nascidos assim.
Os três personagens se juntam aos elos de minhas memórias. Impossível ver a separação entre eles. São parte de minha trajetória. Juntam-se às memórias de quase 60 anos de vida. Se incorporam nas rugas da pele que revelam o passar dos anos. Seguem comigo. Povoarão, ainda, em alguns momentos, sonhos ou pesadelos que surgem nos momentos do sono.

domingo, 9 de outubro de 2016

O outro

Se olhou no espelho. Era outro. Quer dizer, era ele mesmo. Mas, não se reconheceu. Ou melhor, não queria se reconhecer. Queria ser outro. 
Era esta a verdade. Não havia nada de errado ou mágico naquele espelho. O que via era a mesma pessoa da fotografia no celular. Não fazia nem uma hora que fizera a selfie. Não gostou do que viu. Foi atrás do espelho. A imagem refletida era dele mesmo. Se imaginava outro. Subitamente, esmurrou o espelho.
Junto aos estilhaços no chão gotas de sangue. No fragmento maior, o outro olhou para ele. Na ponta do nariz, uma mancha vermelha. O sangue. Viu um nariz de palhaço. Riu. Franziu os olhos. Enxergou melhor. Não era um palhaço. Deixou de sorrir. Saiu do quarto. Bateu a porta. Exclamou:
_ Idiota!
Sempre que passava por um espelho, a esperança renascia. Ver o outro. Nunca conseguiu. Às vésperas da morte, instruiu os amigos:
_ Quero um caixão com um espelho na parte interna da tampa. Se eu abrir os olhos, pode ser que veja outro. Os amigos atenderam o pedido. O mais cínico, justificou-se:
_ A esperança é a última que morre. Vai que...

sábado, 24 de setembro de 2016

Manhã de Sábado

Anna é apresentadora de um noticiário de algum canal de tv na Dinamarca. Com Erik, arquiteto e professor, é mãe de Freja, uma adolescente, entre quatorze e quinze anos. Os três vão ver a casa que Erik herdou com a morte do pai. A princípio a ideia é vende-la. Mas, Anna convence que devem morar na casa. Fazer uma comunidade de amigos. Erik resiste à ideia. Anna diz que já falou com Ole, amigo do casal.
Assim começa o filme dinamarquês "Comunidade" que assisti hoje de manhã no cinema. A comunidade vai se formando aos poucos. O último a se juntar a ela é Allon. Imigrante, se comunica com dificuldade na língua do país. A mesma dificuldade que enfrenta em conseguir trabalho. Sua renda vem de trabalhos avulsos e incertos. Questionado por que quer se juntar à comunidade, de forma surpreendente e incompreensível para todos, responde e logo após começa a chorar:
_ Eu preciso chegar.
Mais uma vez, como já me aconteceu antes, penso comigo:
_ Esta pequena frase vai me fazer escrever algo.
O que eu não podia prever, a essa altura do filme, é que, mais à frente, em outra cena, mais uma pequena frase se juntaria a esta.
Erik se mostra ser um professor arrogante. Após ter humilhado um aluno durante uma aula, é procurado e questionado por Emma. Terceiro-anista que cursava sua disciplina sobre Arquitetura Racional. Não faço a mínima ideia do que isso seja.
Depois de questionar Erik, Anna quer discutir seu projeto com o professor. Algo inspirado na arquitetura de Le Corbusier. De forma, de novo, aparentemente arrogante, Erik afirma que não deve ter nada dela no projeto. No entanto, mesmo um professor arrogante, pode ser um educador eficaz. Nem sempre, é minha opinião. Na verdade, raras vezes. Erik a questiona:
_ O que a empolga?
_ Não sei, Emma responde.
A pergunta de Erik, mais do que a resposta de Emma, junta-se à fala de Allon. O filme, que já ganhara minha simpatia nas cenas iniciais, me seduz por completo. É um filme que instiga a reflexão sobre a vida.
Terminado o filme, nessa manhã de sábado, o primeiro da primavera de 2016, caminho em direção à Praça Ozório, no centro de Curitiba. Penso em algum lugar para almoçar. A princípio, busco algum lugar com comida japonesa. Ao chegar à praça, me decido pela feijoada light do Arrumadinho. Outra opção seria a comida árabe do Armazém Califórnia. Mas, já estive lá outro dia. Por uma feliz coincidência encontrei Thálita, Marcos e Eduardo. Doutorandos em Administração da UFPR. Tornaram menos solitário meu almoço naquele dia. Companhia agradável de jovens inteligentes que essa vida de professor me permite encontrar.
Há treze dias estou sózinho em Curitiba. Sara foi para Maringá fazer companhia à mãe que teve um problema de saúde. Amanda viajou tambêm. Sobramos Tobias, um gato persa, e eu. Entre os miados dele, tento adivinhar se tem fome ou quer um cafuné. Adora um cafuné. Eu não durmo sem lhe dar um pouco. Sempre sobe à cama quando me deito. De vez em quando ainda está lá quando acordo.
Mas, volto a esta manhã de sábado. Peço meia feijoada. O garçom me informa que será 70 porcento do preço da inteira. O que fazer? Não vou dar conta de uma inteira. Uma caipirinha foi pedida antes. Essa é inteira!
No caminho do cinema até o Arrumadinho me vejo refletido na vitrine de uma loja. Todo de azul. Calça jeans e camisa azul de mangas compridas. Ao sair de casa, a manhã de primavera ainda estava um pouco fria. Até os aros de meus óculos são azuis. Gosto do azul, mas os óculos foram escolha de Sara. Compondo com o azul, o grisalho de cabelos e barba. Não me pareceu uma figura feia. Na verdade, me surpreendi com o que vi.
Não sei por que, minha memória me levou para algum período entre 1974 e 1976. Nesses anos, entre os 17 e 19 de idade, vivi em São Paulo, primeiro, e depois, São José dos Campos. Muitas vezez me desloquei, sózinho, para a região da Consolação e Paulista. Ia ao cinema. Sempre sózinho. A paixão pelo cinema, que começou na adolescência, aumentou nesses anos.
Desde então, me parece, que assim como Allon, preciso chegar. Mas, não sou um imigrante. Aonde preciso chegar? 
Ao que me empolga. Esta é a resposta. Diferentemente de Emma, creio saber a resposta. O bom disso tudo é saber que a vida é o que me empolga. Nada pode ser melhor.
E, enquanto professor, vivo a esperança de poder ser útil na descoberta do que pode empolgar aqueles que estudam comigo. 
Depois da segunda caipirinha é hora de pagar a conta. Preciso comprar a ração do Tobias. Hoje pela manhã, antes de sair, servi a última porção. Se não comprar, terei certeza que à noite, mais do que cafuné, o miado significará fome. Ou saudade da Sara, que nunca deixa faltar a ração.
Pena que não sei miar. Saudades de Sara

domingo, 18 de setembro de 2016

Estranho

Foi tudo muito rápido. Acordou na mesma hora de sempre. Depois do banho, um café com leite e um pãozinho com manteiga que comprara no final da tarde do outro dia. Em menos de meia hora saiu para o trabalho. O pão estava borrachudo. Do jeito que gostava. Era um sujeito estranho em alguns gostos. Gostava de ver o pão esticando enquanto puxava a mão a cada mordida.
Acordou assustado naquela manhã. Mais uma vez um sonho sem saída. Via-se caminhando em uma cidade desconhecida. Na calçada, irregular e estreita, uma multidão caminhava em sentido contrário ao seu. Resistia ao fluxo, seguia adiante, mas acabava em um beco sem saída. Quando tentava retornar, a mesma multidão vinha contra ele. Resistia novamente e chegava ao mesmo beco sem saída. Na quinta vez, acordou sobressaltado. Sentia o rosto molhado de suor. O gato, que subira na cama, lambia seu rosto. Sentiu-se aliviado ao ver-se seguro na cama. Espreguiçou-se ao mesmo tempo que o gato saltava fora da cama. No relógio, antigo, os ponteiros marcavam seis e quinze. Outro gosto estranho. Nunca conseguiu dormir com as luzes piscantes de um relógio digital. O tique-taque do antigo embalava seu sono.
No meio do caminho, que fazia sempre a pé, o inesperado. Sete e quinze. Morava perto do trabalho. Não mais do que um quilômetro.Uma multidão caminhava em sua direção. Se indagou se ainda sonhava. Mas, certamente não. A calçada era ampla e regular. Não era a do sonho. Olhou para baixo. A viu sobre o pé esquerdo. Enrolada em seu sapato de verniz branco e preto. Era um sujeito de gosto estranho.
Na sua frente as pessoas continuavam passando. Era uma massa uniforme e coesa. Uma barreira quase intransponível. Espremeu-se no canto da farmácia, encostado na porta metálica ainda fechada. Sobre o único degrau que dava acesso a ela quando aberta. Queria agitar o pé para livrar-se dela. Não tinha espaço. Não tinha saída. Sentiu ela enroscar-se em sua canela. Fria e gosmenta. Ela subia lentamente por sua perna. Sem saída, jogou-se embaixo da multidão que continuou uniforme e coesa. Agora, ao movimento ritmado juntara-se um pequeno deslocamento vertical. Para cima. Para baixo. Ritmo imperturbado.
Acordou em uma cama. Pensou que estava sonhando. Não. Era de hospital. A enfermeira ao seu lado sorria de forma estranha. Lambeu os beiços com uma língua bipartida. Viperina. Mas, não no sentido figurado. Mirou em sua canela e deu o bote.
Estranhamente, ele teve um orgasmo. Tinha gostos estranhos. No caixão manteve um leve sorriso. Estranho. Mas, assim era ele.

sábado, 10 de setembro de 2016

Três frases ouvidas em ônibus

Me sinto cronista do transporte coletivo. A proximidade com o outro, embora apenas física, estimula minha audição que, por sua vez, de vez em quando, dispara minha imaginação.
À semelhança de um voyeur, mas sem a conotação sexual, ao menos assim imagino, pode ser que esteja me tornando um ecouteur. Brinco com o verbo ecouter, ouvir, do francês. Escuto e tenho prazer na escuta. Muito diferente do sexo, mas bom também.
Uma frase solta, em um meio de conversa, já me transportou para o mundo da imaginação solta e livre. Foi o que aconteceu quando, indo para o trabalho na universidade, ouvi uma voz feminina exclamar:
_ O problema é o menos infinito!
Dessa frase construí um breve texto que está em alguma parte de minha página do facebook e, também, em meu blog brevestextos.blogspot.com.
Aliás, me delicio com as tecnologias de comunicação de que dispomos. Qualquer um pode se tornar um editor de seus próprios textos nos dias atuais. Publico o que escrevo sempre que quero. Livre e autônomo, assim como é @ eventu@l leit@r que encontrar um de meus blogs. Lê o que quer e quando quer. Experimente você também. Em meus quatro blogs, mais de trinta mil acessos a meus textos já aconteceram. Usufruo meus quinze minutos de fama no mundo virtual.
Voltando ao ônibus. Desde então, adquiri o hábito de tentar ouvir o que se fala nos ônibus. Me tornei um ecouteur. Passei a registrar as frases soltas em meu celular. Pode ser que se transformem em novos textos. Ficam, assim como embriões, incubadas em meu processador de textos esperando o momento de se desenvolverem e ganharem um corpo em forma de escrita.
As três primeiras que anotei foram:
_ Não curto muito meu pai.
_ Já comeu ela?
_ Se você vai descer no próximo eu aceito.
Estranhamente, compartilham o fato de tratarem da relação entre humanos. Distintas relações que revelam fragmentos do que somos.
A primeira soou dolorosa para mim. Uma jovem assim falou para um rapaz. Não curtir muito o pai! Me pareceu triste!
A segunda soou deliciosamente escrachada. Retrato da banalidade das relações? Ou apenas um efeito da dinâmica hormonal de três adolescentes indo de casa para a escola?
Por fim, a última um retrato pouco usual da cordialidade que ainda habita o transporte coletivo. Um passageiro ofereceu seu lugar a uma idosa. Esta recusou. Ele disse que desceria na próxima estação. Nesse caso, ela aceitou.
Assim sigo meus trajetos nos ônibus curitibanos. De ouvidos bem abertos. Um ecouteur! Sempre atento ao que me ensinam frases entreouvidas e que, apenas aparentemente, são desconexas. Ao contrário, todas conectadas nesta jornada humana que não me canso de admirar. E escutar.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Em que mares?

Alexander tem dificuldades de falar com Dirk, seu amigo que capitaneia um navio transportando carga de um museu em algum mar qualquer. A conexão da internet é instável. Ele vê o amigo, mas este só ouve sua voz. Dirk quer esquecer o passado. Falar só do presente. A conexão é perdida. Alexander lamenta:
_ Foi tão rápido. Nem pude lhe perguntar em que mares navega.
Assim começa Francofonia, documentário de Alexander Sokurov, uma produção franco-germano-holandesa que assisti hoje. Belíssimo passeio pelo Museu do Louvre e parte de sua história durante a ocupação nazista de Paris.
O lamento de Alexander me leva ao passado recente. Ontem. Final da tarde. Pouco mais de cinco horas. Peço ajuda de Leandro, doutorando em Administração, sobre como preparar dados em uma planilha para análise de redes. Rodrigo, também doutorando, ao lado de Leandro, comenta:
_ Navegando outros mares, professor.
Rodrigo se refere a passagem de um livro de Rubem Alves que usei em um de nossos encontros na disciplina de Empreendedorismo no semestre passado. Rubem Alves se refere ao professor como um navegante de muitos mares que tenta ensinar aos alunos o que sabe sobre os mares. Mas, em algum momento, alguém pergunta sobre um mar desconhecido para o professor. O professor, então, reconhece a ignorância e diz:
_ Esse mar não conheço. Mas, posso lhe dizer como explorei mares não conhecidos. Assim, você pode explorar também mares que não navegou.
Nessa passagem Rubem Alves ilustra, com uma imagem tão bela, a segunda fase da vida do professor que Roland Barthes chamou da fase de ensinar o que não sabe. Sugerir caminhos para que o estudante, de forma autônoma, construa seu próprio conhecimento. Assim, interpreto o que me dizem Alves e Barthes.
O episódio de ontem me lembra que os jovens também são navegantes que me ajudam a navegar mares desconhecidos. Ainda bem que a conexão não se perdeu.
Generosos, Leandro e Rodrigo, me guiam por mares que desejo explorar. Entro na terceira fase da vida do professor que Barthes chamou da fase do esquecer o que sabe. É o esquecimento que permite o rearranjo da forma de ver o mundo. Esse rearranjo depende de explorar novos mares. Muitos mares!
Sigo nessa viagem. Quase sempre bem acompanhado de outros marinheiros que compartilham comigo seus saberes.
Que a conexão não seja tão instável quanto a de Alexander e Dick é o que desejo. À falta de uma bússola, me guio pelos que já exploraram mares desconhecidos.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Amor, vou caçar pokemon.

Planejava aquilo há muito tempo. O casamento que começara no paraído chegara ao inferno. Não se entendiam mais. Depois de dez anos, nem o sexo era capaz de sustentar a união. No vigor dos trinta anos, os dois ainda transavam. Muito. Os dois gozavam e viravam pro lado. 
O casamento foi devido à uma gravidez precoce. Não vingou. Seis meses depois, o aborto. Decidiram ficar juntos assim mesmo. Não houve outra gravidez.
Não fumava nem bebia. Não praticava esporte. Era da casa pro trabalho. Do trabalho pra casa. Aos finais de semana, um cineminha. No meio da semana, a ida ao culto. De vez em quando, uma pizza com um casal de amigos. A vida seguia cada vez mais insossa.
Mas, chegou a temporada de caça aos pokemons. Cada um com seu celular. Redescobriram a cidade. Iam a toda parte atrás deles. Sempre juntos. Parecia que algo os unia novamente. Chegou a esquecer do plano.
A última vez foi no Jardim Botânico. Muita gente, além dos eventuais turistas. De repente, tirou os olhos do celular. Alguém fez a mesma coisa. Os olhares se cruzaram. Algo despertou daquela troca de olhares.
No seu dia de folga, sabia que estaria só o dia todo. No café da manhã, avisou:
_ Hoje vou caçar pokemon.
Nunca mais voltou. Perambula pela cidade. Tem a esperança de uma nova troca de olhares. Graças ao pokemon, conseguiu escapar do inferno.
Encontrará outro paraíso? Difícil. Ninguém consegue erguer a cabeça. Elas estão sempre curvadas. Na direção do celular.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Chuva na rodoviária

Dois pardais fogem da chuva. Farelos no chão, embaixo dos bancos da rodoviária, são um banquete. Duas pombas se juntam ao festim.
As quatro aves não se incomodam com o movimento dos passageiros. Devem ser comensais habituais. É provável que tenha me enganado. Não fogem da chuva. Seu comportamento me sugere que, faça chuva ou faça sol, frequentam esse espaço regularmente. Ao menos, mais frequentemente do que eu. Passo por aqui a cada duas ou três semanas.
A chuva se torna mais forte. Deixo de observar os pássaros. A fauna humana que se junta é mais variada. O número de pessoas vai aumentando. Provavelmente, alguns serão minha companhia no ônibus que parte às dez horas. Idosos, jovens, casais, solteiros, baixos, altos, gordos, magros, grisalhos, morenos e imberbes. Sou o único com barba.
Para uns a viagem deve ser de retorno. Meu caso, que volto para casa. Alguns devem ir para voltar em breve. Hoje ninguém chora. Não deve haver ninguém que se destine a lugares longínquos ou que parta em definitivo.
Poucos passageiros com muitas malas. A maioria deve voltar logo. Mas, são só hipóteses. Sempre pode haver alguém que resolveu deixar tudo para trás. Tem um ali falando sozinho. Ou está acompanhado por alguém que só ele vê.
Nenhuma lágrima. A única água que cai é a chuva. Seu ruído na cobertura é cada vez mais forte. Algumas goteiras surgem. Evidenciam as falhas do telhado. As humanas nem sempre são tão expostas. Principalmente as de caráter. Mas, aqui não é o espaço para falar disso. Hoje, estou operando no modo descritivo apenas.
Uma trabalhadora enxuga as poças que se formam. Acho que vai ter que repetir o gesto muitas vezes hoje. A chuva não dá sinais de querer ir embora. Na rodoviária, assim como o motorista, a chuva não é passageira.
Eu sou. Meu ônibus chegou. Vou deixar a chuva por aqui. Assim espero.

Meu Tio Christiano

A vida é imprevisível. Tio Christiano, o irmão mais novo de minha mãe, faleceu hoje. O caçula de sete irmãos, tio Christiano foi um homem que defendia suas ideias com paixão. Como dizia minha mãe, era um esquentadinho. Ao mesmo tempo, sempre foi justo e procurava o bem comum de todos.
Aliás, felizmente, este jeito de ser é uma marca dos Prado. Herança da forma como todos foram criados por Vó Ananisa. Ela, também, foi uma mulher justa. Alguns anos atrás, quando comemorei 50 anos, escrevi um texto - Lembrança de Ananisa - em que registrei a crença nos valores que ela nos transmitiu que me permitiam não me arrepender do que fiz no passado e acreditar em um mundo melhor no futuro. Muito religiosa, católica, buscava a seu jeito um mundo mais justo.
Sem fé nenhuma, tento seguir seus passos nessa vida que vou levando. Às vezes guiado pela paixão, às vezes guiado pela razão. Como um Prado.
Tio Christiano, quando nos reencontrávamos, me abraçava e me beijava no rosto. Fazia isso com todos. Passava um afeto especial. Fará falta.
Da minha infância me lembro de um momento único com ele. Tinha uma lambreta e, certa vez, foi dar uma volta com um monte filhos e sobrinhos. Tinha criança pendurada em tudo o que é lugar daquela lambreta. Uma aventura inesquecível!
Em Londrina, pensando em como dar essa notícia triste para minha mãe, comecei este texto. Ainda não sei como daremos a notícia a ela. Forte, sei que ela sofrerá, mas terá ânimo para seguir sua jornada que já passa dos 90 anos.
Também não sei como terminar este texto. Queria ter a crença em uma vida após a morte. Se a tivesse, imagino Tio Christiano com sua lambreta dando voltas com um monte de crianças sorrindo... Fazendo suas peripécias. Por aqui fará muita falta!

Crônica de uma desmemória anunciada

De repente ela se deu conta de que está perdendo a memória. Me perguntou:
_ Você vai comprar lazanha? Ou vai fazer?
Antes que respondesse, emendou:
_ Ah! Já almoçamos.
E continuou:
_ Estou perdendo a memória. Esqueço e tenho consciência que esqueço.
A partir daí me contou sobre um episódio com seu pai que ficara completamente esclerosado. Certo dia, um velho conhecido, que não o via há mais de quarenta anos, passou no supermercado de meu pai indagando sobre seu Arlindo. Meu pai lhe respondeu que era seu genro.
O homem manifestou a vontade de rever o velho amigo. Meu pai alertou que ele não seria reconhecido. O homem insistiu. Minha mãe, então, o levou até a casa de meus avós que não distava muito de nossa, cerca de 150 metros. Ela também comentou que meu avô já não reconhecia ninguém.
Lá chegando, o homem se apresentou para minha vó como um velho conhecido de meu avó. Novamente, ele foi alertado da situação de meu avó. Assim mesmo, o homem quis rever o amigo do passado. Quando entrou no quarto, meu avô se dirigiu a ele:
_ Oi Fulano. Quanto tempo a gente não se vê.
Para surpresa de todos, a conversa continuou:
_ Você me conhece Arlindo?
_ Claro. Trabalhamos na roça juntos há mais de quarenta anos.
Ao terminar de me contar esta história, minha mãe arrematou:
_ Será que eu duro mais dez dias sem perder toda a memória.
Minha resposta não podia ser outra:
_ Claro. Ainda vai nos contar muita história. Como esta que acabou de lembrar.
Ela arrematou a conversa:
_ Só me lembro do passado.
Esta é a crônica de uma desmemória anunciada. Que ela demore a chegar completamente.
Mas, assim como ocorreu com meu avô, haverá momentos que a lembrança do passado desmentirá a falta de memória.
Enquanto isso, sigo minha sina de escriba dessas memórias que ela vai lembrando. Registro para que, no futuro, a desmemória não impere.

Rádio, latim, poesia e namoro na Londrina dos anos 40.

Essa conversa foi a três. Pouco depois de ter constatado sua consciência sobre o esquecimento de fatos recentes, ela disse:
_ Agora vou te contar algo que nunca falei pra ninguém.
_ O que é?
_ O Antonio da rádio Londrina quis me namorar.
Tia Almey, que havia chegado, meia hora antes, comentou:
_ Isso nem eu sabia.
_ Você era muito criança na época. Não lembra de muita coisa.
_ De alguma coisa eu lembro, retrucou minha tia.
A partir daí, ela contou sobre como o Antonio, que apresentava um programa musical na rádio Londrina, todo dia anunciava:
_ Esta música é para a senhorita Kilda Gomes do Prado.
Ela disse que não namoraram. Tia Almey perguntou:
_ Mesmo?
Ela continuou negando. Lembrou dos casais de namorados do tempo do ginásio Londrinense: Paulina e Pedro; Dorotéia e Jair. Escondidos dos pais, que à época eram muito temidos. Tia Almey lembrou de outro casal:
_ Teve a Silvandira e o Milton.
Ela concordou e continuou lembrando. Era o começo da década de 40. Londrina, fundada em 34, ainda na infância. A turma do ginásio Londrinense tinha um programa na rádio Londrina. Os ginasianos faziam discursos, debates, comentários. Alguns declamavam. Paulina e Kilda gostavam de declamar poesias. Ela contou:
_ A gente sentava em frente ao locutor e declamava no microfone. O espaço era pequeno.
Antonio deve ter se encantado com aquela senhorita de 15 ou 16 anos declamando Olavo Bilac e Castro Alves. Ela declamava com alma. Logo começaram as oferendas musicais. Mas, não passou disso. Enfrentar seu Arlindo, dono da pensão, não era tarefa fácil.
Nenhum dos namoros foi em frente. Foram paixões juvenis que fazem parte da vida.
Da rádio Londrina a conversa foi para o professor de Latim, dr. Clímaco, um dos primeiros médicos de Londrina, um negro vindo da Bahia. Foi deputado também. O professor de Latim tinha um carro e ministrava sempre a última aula. Ao final, os rapazes se aboletavam no carro e ele levava cada um em sua casa. Até que um dia as moças deixaram o professor em uma situação difícil. Em coro falaram:
_ Professor, o senhor só leva os rapazes. Nós, as mulheres, mais fragéis, temos que caminhar.
Dr. Clímaco não titubeou. Botou a rapaziada pra fora do carro e levou as moças.
Tia Almey lembrou outra do Dr. Clímaco. Ele sempre dava nota 100 para as moças e nota 90 para os rapazes. Um dia, entregando as provas, tinha uma com 100 para um rapaz. Ele se enganara e não teve dúvidas. Pegou de volta e disse:
_ Tem erro nisso. Sua nota é 90. E corrigiu.
Segundo elas, ninguém reclamava. 90 era uma nota ótima para o Latim.
Foi assim, nessa conversa a três, que eu aprendi um pouco mais da história da família Prado que veio para Londrina em 1940.

domingo, 31 de julho de 2016

NOVE VEZES NOVE

Quando se deu conta, havia chegado aos 81 anos. Os últimos vinte e um passaram rápido. Pareceram vinte e um meses. Para a estatística previdenciária ele já significava prejuízo a qualquer sistema. Sete anos além da média de vida esperada.
Desde os 36 acostumou-se a pensar sua vida em ciclos de nove anos. Naquela idade, refletindo sobre as passagens marcantes da vida, observou que a cada nove anos acontecia uma reviravolta. Aos 36 foi o desencanto com o primeiro amor.
Se conheceram quando estava com dezoito. Virgem ainda. Romântico, pensava que sexo sem amor não fazia sentido. Os amigos não se conformavam por ele nunca ter ido à zona. Mas, desde criança, foi muito dono da sua vontade. A primeira vez com ela foi desajeitado! Ela já tivera sua primeira vez. Foi compreensiva e paciente. A princípio não acreditou que nunca fizera sexo. Foi assim que, aos 18, perdeu a virgindade. Apaixonado. Aos 36, desacreditou do amor eterno. Só então entendeu Vinicius: que seja eterno enquanto dure. Ela achou outro amor. Ele foi atrás do tempo perdido na adolescência e juventude. Experimentou todas as formas do sexo.
Mas, me antecipo nessa história. Ela é melhor contada em ordem cronológica. Foi assim que ele contou. Voltemos aos nove anos.
O que pode marcar uma criança de forma tão indelével que sete décadas depois ainda esteja fresco na memória de um octagenário? Para ele foi a perda de um brinquedo. Aos nove, no dia de seu aniversário, ganhou de presente de um de seus tios, um aviãozinho que, movido a pilhas, girava as hélices e se movia. Ficou encantado com o brinquedo. Foi à rua brincar com os amigos. Era noite. Brincaram muito com todos os brinquedos. A última lembrança que tem do aviãozinho foi de tê-lo visto encostado na raiz de uma árvore na calçada. As hélices giravam ainda. Mas, o aviãozinho estancara na raiz. Não se movia. No dia seguinte, o avião não estava junto com os outros brinquedos. Não comentou com ninguém. Carregaria consigo esse primeiro desencanto. Esta seria uma marca da vida. Foi o batismo na solidão. Alguns acontecimentos nunca seriam compartilhados. Este foi o primeiro.
Aos dezoito, conheceu o luto de perto. Um amigo de infância mudou-se da cidade um ano antes. Voltou em um caixão lacrado. Ninguém estava autorizado a abri-lo. O amigo morrera em um acidente de avião. Ficara irreconhecível. Naquele dia lembrou-se da última vez que se viram. Encontraram-se em São Paulo. O amigo quis levá-lo a um puteiro. Poucos meses antes do acidente. Era um sábado. Recusou o convite. Ainda era o romântico virgem. A perda da virgindade, muito diferente da perda do amigo, ocorreria alguns meses depois. Engraçado como uma mesma palavra pode se referir a sentimentos tão distintos.
Aos vinte e sete, uma descoberta. Alguém lhe disse que era adotado. Sempre se achou diferente dos demais irmãos. Ficou curioso sobre seus reais antepassados. Descobriu que nascera na santa casa da cidade no mesmo dia em que sua mãe adotiva deu à luz um natimorto. Uma irmã de caridade ficou sabendo e convenceu uma jovem solteira que recém lhe parira a doá-lo. A jovem topou. Foi atrás da irmã na santa casa, mas esta já tinha morrido. Ninguém mais sabia da história. Aos vinte sete soube da mãe que nunca teve. Não disse nada para ninguém mais. O que adiantaria? Pensou e guardou a notícia para si. Ao lado do aviãozinho em algum canto da memória.
Aos 36, o fim do casamento. Não tiveram filhos. Ambos esteréis. Ela quis adotar uma criança. Mas, a ideia ocorreu na mesma época em que se descobriu adotado. Disse a ela que pensaria no assunto. Nunca mais disse nada. Ela também não. Sempre carregou a dúvida: será que ela sabia que fora adotado ainda recém-nascido? Nunca perguntou. Nem ela disse espontaneamente. Parece que foi a partir desse silêncio que começaram a se afastar. Ele passou a ser cada vez mais calado. Temia que ela tocasse no assunto. Até que aos 36, ela revelou: me apaixonei de novo. Outro cara. Ele quer adotar um filho. O que você nunca quis. Ele entendeu. Saiu de casa. Mudou de cidade. Conseguiu um emprego novo. Um forasteiro em uma cidade maior em que não conhecia ninguém. Foi recuperar o tempo perdido na adolescência, juventude e parte da idade madura. Parecia até um ex-seminarista. Bem devasso. Uma vez uma moça disse que tinha engravidado dele. Riu na cara dela. Outra vez, um garoto de programa lhe perguntou: sabe por que homens como você nos procuram? Não, ele respondeu. Saudade do que já foram. Foi a resposta. Dessa vez, não riu. Nunca mais teve um relacionamento amoroso. Passou a usar os serviços profissionais. Afinal, era só sexo que buscava. Não poderia ser compreendido por ninguém. Não compartilhava sentimentos.
Aos 45, continuava viril. Mas, o sexo lhe entediava. Tinha uma profissional fixa que encontrava uma vez por semana. Ela lhe chamava de querido e dizia gostar de seu perfume. Às vezes, queria que passasse a noite com ele. Dizia que não tinha marcado nenhum programa mais. Tinha reservado a noite para ele. Mas, ele não aceitava. Percebeu que ela estava se apaixonando. Se encontraram mais algumas vezes. Ele sempre recusava o convite para passar a noite. Depois ela sumiu. Passados dois meses, recebeu uma ligação de um policial. Ela tinha sido encontrada morta. Seu número de celular estava registrado no dela. Identificado por Querido perfumado. Eram muitos números. Deu as informações que o policial pediu. Uma semana depois viu nos jornais que ela se suicidara. Teria sido por sua causa? Mais uma pergunta que ninguém poderia responder.
Aos 54, já aposentado, decidiu gastar as economias dos últimos nove anos em uma viagem. Partiu para a Europa. Queria visitar todas as capitais. O dinheiro foi suficiente para 120 dias de viagens. Na volta encontrou o aviso de que os quatro primeiros meses da aposentadoria estavam disponíveis em uma agência de banco oficial. Ele tinha que comparecer pessoalmente para abrir uma conta ou informar uma já existente. Resolveu cortar todos os laços familiares, que quase já não existiam. Há muito tempo não procurava nenhum dos irmãos ou outros familiares. Mais uma vez, mudou de cidade. Foi morar no litoral. Seguiu o clichê do sonho de boa parte daqueles que pensam em se aposentar: morar na praia. Mas, era alérgico à areia. Fugia da beira do mar. Ficou assíduo da biblioteca. Nunca gostou muito de ler. Lia os jornais, mas um dia leu um livro de Herman Hesse - O lobo da estepe. Descobriu que era um livro que fizera sucesso quando era adolescente. Estava atrasado uns quarenta anos. Ficou impressionado com a história. Passou a acreditar que tudo seria diferente se tivesse lido aquele livro quando jovem. Entrou em depressão profunda. Procurou ajuda profissional.
Passou os próximos nove anos fazendo análise. Quando completou 63, descobriu-se apaixonado por sua analista. Era uma mulher madura, com pouco mais de 50 anos, para quem contara quase toda sua vida. Exceto, as partes sobre o aviãzinho, a adoção e a perda da virgindade aos 18. Inventou um monte de coisa. Afinal, em nove anos de terapia deu pra falar muita coisa. Não conseguiu se declarar para a analista. Ela era casada. No dia que tentou, gaguejou um pouco e acabou dizendo: é melhor a gente encerrar nossa terapia. Venho aqui já sabendo o que vou dizer e o que você vai comentar. Já deu. Vamos acertar as contas. Pagou e nunca mais voltou.
Aos 72 anos reencontrou um amigo que fizera aos dezoito. Os dois estudaram juntos no primeiro ano da faculdade. Depois, o amigo desistiu do curso. Nunca mais se viram. O amigo era um ano mais velho. Parecia um fantasma. Magro, pálido, com olheiras profundas. Se encontraram na sala de espera de um médico. Ele reconheceu o amigo, quando a assistente anunciou o nome dele para entrar para ser atendido. Esperou o amigo sair. Se apresentou. O amigo esperou ele sair da consulta. Foram a um bar à beira-mar. Ficaram horas conversando e bebendo. Trocaram telefones. No dia seguinte, recebeu uma ligação. Era uma voz feminina. A mulher do amigo informando que este falecera de madrugada. Chegara em casa, contara do reencontro e deitara. Por volta das cinco, ela ouviu um ronco estranho, virou-se para o lado do marido, e ele estava morto. Ela achou o número do telefone e resolveu lhe ligar.
A morte do amigo mexeu com ele. Passou a fazer exames periódicos de seis em seis meses. Tinha uma saúde invejável. Dera sorte nos anos de orgia. Nunca se protegeu. Nunca ficou doente. Aos 81, acabara de voltar de mais uma consulta com o geriatra. A bateria de exames não revelou nada. Tudo em ordem. Mas, algo não ia bem. Ele chegava ao nono ciclo de nove anos com algo lhe incomodando. Sonhara que não conseguiria completar outro ciclo. Tinha que decidir se pagava pra ver. Isto é, deixaria a vida correr ou seria, mais uma vez, dono de seu destino. Para ajudar na decisão, pegou uma caneta e um caderno. Escreveu o título antes de tudo: nove vezes nove (memórias de um lobo solitário). E começou: no dia que completo 81 anos, faço este relato de coisas que jamais compartilhei...
Encontrei o caderno junto ao seu corpo três dias depois. Os vizinhos estranharam o mal cheiro que exalava do seu apartamento. Abri e li o título e as primeiras linhas. Guardei o caderno comigo sem que ninguém percebesse. Só eu sei a história toda.
Sempre quis ser escritor, mas não levo jeito pra coisa. O destino colocou uma história inédita em minha mão. Foi meu primeiro livro. Um sucesso.
Será que vou me inspirar e escrever outro? Escrever é tão complicado. Por isso, fico seguindo velhinhos solitários que vejo por aí. Quem sabe encontro outra história...

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Caleidoscópio: uma boa imagem para a educação?

Nos últimos anos, tenho refletido muito sobre minha ação enquanto educador. Reflexo de muitas coisas, pensar sobre meu agir faz parte de uma inquietação constante, de um desassosego permanente, de uma dúvida persistente, de um questionamento inadiável...
Facetas de minha vida que se configuram em um vir a ser que nunca se finda, mas que assim mesmo, a cada momento compõem uma vontade de ser, ao mesmo tempo, aprendiz e mestre. De dificil síntese, essas facetas se resumem, talvez, à busca do significado que desejo seja mais verdadeiro para mim e, também, mais eficaz para aqueles que temporariamente, seja de forma breve ou mais alongada no tempo, se juntam a mim nessa jornada, os estudantes.
Esse significado se prende, portanto, à ideia de uma experiência de educação que seja um momento transformador da potência de ação não só dos estudantes. Nela devo encontrar instâncias que me aproximem de um sentimento que, nunca completo, é essencial nesse vir a ser que é a vida. O sentimento de autorealização que surge do agir em que fica evidente uma mudança positiva na forma de encarar o mundo, nosso papel e a possibilidade de nele atuar.
Meu agir enquanto educador, assim acredito, tem por princípio uma visão positiva do outro que se junta a mim. Costumo usar uma metáfora cinematográfica que expõe de forma simbólica este princípio: cada e todo estudante é o protagonista de seu enredo de aprendizagem. Eu sou apenas um figurante. Uso essa metáfora reproduzindo algo que aprendi em meus estudos de cinema. O protagonista de um filme, em geral, é aquele que passa pela maior transformação durante o decorrer da fábula fílmica. Assim, cada e todo estudante tem que ser o protagonista de sua história. A mim cabe o papel secundário de figurante, com maior ou menor presença, em cada e todo enredo.
Hoje me veio à mente outra imagem que se ajusta à minha crença na educação como um processo mais emergente que deliberado, no qual o conhecimento assume configurações distintas para os envolvidos em uma experiência de aprendizagem. Me refiro ao caleidoscópio, imagem que já utilizei para me referir ao estudo das configurações organizacionais, perspectiva de análise que adoto em meus estudos.
Essa ideia, para mim, faz sentido. O processo de aprendizagem em que se respeite o estudante como protagonista é um constante olhar pelo caleidoscópio. As experiências de aprendizagem, nos diversos espaços que ocorrem, são como olhar pelo caleidoscópio e enxergar o arranjo que os conceitos multicoloridos configuram conforme cada e todo estudante reflete e pensa sobre o que viu.
Mas, ao contrário do caleidoscópio material, em que não temos controle dos fragmentos multicoloridos que o compõem, no caleidoscópio educacional é o protagonista que escolhe os fragmentos que comporão suas imagens. A mim enquanto figurante resta o papel de auxiliar na busca dos vidrilhos coloridos e na construção de cada e todo caleidoscópio.
Que cada e todo estudante seja o artesão de seu caleidoscópio e que eles sejam sempre diversos e multicoloridos!

Aforismos sobre a dúvida

Tem tanta falsidade no mundo que, às vezes, até disso duvida.
Foi tão sincero que nem ele mesmo acreditou.
O sorriso era tão artificial quanto as próteses que usava na boca.
Jurava lealdade até debaixo d'água, mas não resistiu quando lhe molharam as mãos.
Preferia ser surdo a ter que ouvir certas promessas.
O que é melhor: uma dúvida certa ou duas incertas?

Desamor Tecnológico

Abraçados, em pé, pareciam apaixonados. Muito jovens, seguiam no mesmo ônibus que eu. Irradiavam uma felicidade incomum. Com um dos braços envolto na cintura dela, ele buscou o celular no bolso direito da calça com a mão esquerda. Com certo esforço e alguma contorsão muscular foi bem sucedido.
Ela quis saber quem era. Mensagem de um amigo respondeu ele. Um pouco corado no rosto, embora quase imperceptível na sua pele mulata. 
Ela percebeu. Talvez tenha sentido o súbito e tênue aumento de temperatura que causara o leve rubor.
Quis ver. Ele relutou, fuçou um pouco mais no celular. Ela esbravejou. Ele cedeu.
Enquanto ela fazia a busca no celular, ele pediu o dela. Se julgou com o mesmo direito.
Lembrei-me de uma amiga que certa vez me disse: quem procura acha.
Ao passar-lhe o celular, ela também enrubesceu. O batom exageradamente vermelho, cor de pitanga madura, não foi suficiente para atenuar a mudança de cor nas bochechas brancas da moça loira.
Formavam um belo casal. Aos poucos o humor foi se transformando em um mal estar. Quase ao mesmo tempo, os dois falaram: é só um(a) amigo(a).
A felicidade se evaporou rapidamente. O braço dele escorregou bruscamente da cintura dela. Viraram o rosto. Quando o sinal "fechando portas" soou, ele saltou fora do ônibus. Ela não conseguiu segui-lo.
Uma lágrima em cada rosto, dela e dele, me encheram de tristeza. Eram um belo casal. De felicidade incomum e efêmera. O ônibus seguiu seu trajeto comum. Indiferente ao desamor que nele brotara.

Vida Surreal

Aos 17 anos, gabava-se com o amigo:
_ Não consigo pegar mina da minha idade. Parecem crianças. Quando eu tinha 12, namorei uma de 17.
_ Ela deve ter te traído. Tenho certeza, comentou o amigo.
Os dois da mesma idade voltavam para casa ou iam para a escola. Impossível dizer com certeza, mas os uniformes escolares sugeriam as alternativas.
Na conversa dos dois, dilemas do homem que parecem independer da idade: amor e sexo, fidelidade e traição.
Muitos homens mais velhos dizem ou desejam fazer o contrário. fogem das mulheres de sua idade. Mas, como já virou piada:
"Correm o tempo todo atrás da Chapeuzinho Vermelho e acabam, por fim, comendo a vovozinha".
As gerações mais novas que a minha parece que tinham resolvido estes dilemas. Vinte anos atrás ouvi uma jovem colega de profissão me explicar o significado de ficar. Eu perto dos 40, ela se avizinhando dos 30. Achei a novidade um pouco estranha, mas promissora. Pensei comigo mesmo, sem externar a ela nada mais que um simples:
_ Interessante!
Não ficamos. Nenhuma atração de ambas as partes. Assim me pareceu, Ou, como conta a fábula da raposa: as uvas estavam verdes.
No entanto, essa ideia de ficar e pegar me impressionou pela possibilidade de resolver os velhos conflitos amorosos de minha geração. Se bem que, os mais cínicos, sempre falaram:
_ Lavou tá novo!
Algum tempo depois, lidando com filhas, sobrinhas e suas amigas no começo da adolescência, lembro de uma delas chorando, aos prantos:
_ O que houve?
- Fulano traiu ela. Uma delas me respondeu.
_ Não sabia que tinha namorado.
_ Não. Eles estavam só ficando. Ele ficou com outra.
Fiz um discurso sobre o significado do ficar e a banalização do amor. Ao fim disse:
_ Se você acredita em ficar, não tem sentido acreditar em traição.
Não resolveu a dor da traição, mas ela parou de chorar.
A conversa dos dois adolescentes me transportou no tempo. Eles são de uma geração ainda mais nova. Parece que ficam e pegam adoidado (uma gíria de minha geração).
Mas ainda falam em traição. Tão surreal quanto "Um cão andaluz" de Buñuel e Dali. Ou até mesmo, conforme disse Viviane Forrester em seu livro "Horror Econômico", referindo-se à expressão "Empresa Cidadã". Nem o mais surreal dos artistas conseguiria criar algo assim.
Interessante!

terça-feira, 21 de junho de 2016

Mais uma de Dona Kilda

Aos noventa, muita história para contar. Quem diria que ainda haveria uma nova de que nunca havia me falado!
Começo dos anos 40 do século passado. Londrina, fundada em 1934, ainda na infância. Arlindo e Ananisa se mudaram para Londrina. Vieram de Santo Antonio da Platina com os filhos mais novos: João, Almey, Caio, Amélia e Cristiano. Carlos e Kilda, os mais velhos, estudavam em Jacarezinho. Se juntaram aos irmãos e pais no final do ano escolar.
Depois de se formar no ginásio, primeira turma do Colégio Londrinense, Kilda morava com os pais e irmãos na rua Mato Grosso. Começou a ser procurada por pessoas que pediam sua ajuda na escrita de cartas para familiares distantes.
Lembrei-me de Dora, personagem vivida por Fernanda Montenegro, que escrevia cartas para aqueles que não sabiam escrever em Central do Brasil. Quem diria? Minha mãe viveu essa experiência na vida.
Hoje lembrou-se de uma senhora que lhe pedia para escrever cartas para o irmão. Ela falava o que queria dizer e Kilda transformava a fala em uma narrativa escrita.
Quando a mulher recebia cartas do irmão, trazia para Kilda ler. Um dia uma surpresa:
"Por favor dê lembranças à Kilda que escreve suas cartas tão bem".
Não poderia haver retribuição melhor a um trabalho que era somente mais uma das formas de solidariedade humana que abundava naquela Londrina nascente que atraía gente de todos os cantos. Gente que deixava entes queridos em terras distantes. Gente que precisava contar as novidades, chorar a saudade, compartilhar os sonhos...
Ouvir histórias e narrar para outros. É uma das coisas que Kilda sempre gostou de fazer. Assim como seu pai, meu avô Arlindo. Suas histórias sempre prendiam minha atenção quando criança. Essa mulher cujo nome perdeu-se na memória soube quem escolher.
Eu tento seguir a tradição. Vou narrando as histórias que ouço. É quase um vício! Mas, que posso fazer?

O gato e o sonho

Só se ouvia o leve ressonar do gato. Passando dos dez anos de vida, de vez em quando soltava um ronco mais forte. Em seguida, continuava ressonando. Suave. Era o turno da tarde. 
Eu me perguntava, se os roncos tinham a ver com sua idade. Não havia observado isto antes. Apenas nos últimos meses. Desde que caíra da janela do apartamento. Ainda bem que morávamos no primeiro andar. A queda foi de, no máximo, três metros e meio, talvez quatro. Na primeira semana, manquitolava um pouco. Depois, parou. Então, começaram os pequenos roncos.
Mas, como dizia, era o turno da tarde. Acumulava energias para a noite e madrugada. Meu sono andava leve ultimamente. De madrugada, as curtas corridas do gato me acordavam. Ele gostava de disparar pelo corredor e escorregar nos tapetes da sala. Às vezes, um pouco mais de energia o levava de encontro à parede. Eu ouvia um barulho esquisito. Acho que batia a cabeça. Será que isto tem a ver com os roncos recentes?
Naquela tarde, eu chegara mais cedo do trabalho. Meus horários flexíveis são uma das coisas boas dele. Abri a porta. Cinco e meia. O gato, em seu canto, embaixo de uma cadeira, nem levantou a cabeça. Abriu os olhos. Fechou. Um momento. Literalmente, um piscar de olhos.
Ninguém em casa. Pensei como seria bom se fosse um cachorro. Pelo menos, as boas vindas seriam mais calorosas. Mas, não pense que reclamo. O gato se encaixa no meu estilo. Cada um por si. Quando necessitar, pede-se ajuda. É o que ele faz quando tem fome ou quer que limpe sua caixa de areia. Mia!
Eu, como não mio, me contento com uns afagos que ele aceita todo dia. Antes de eu dormir, leio na cama. Ele se junta a mim. Faço uns cafunés até que ele me dá as costas e salta da cama. Me educou bem.
Sozinho, já que o gato era apenas uma presença material, distinta das demais presenças, móveis e eletrodomésticos, apenas pelo ressonar, resolvi ler um pouco antes do jantar. Ler e escrever. Também fazem parte de meu trabalho. Ser pago para isso! Você acredita?
Como não estava em meu horário de trabalho, peguei um dos livros de cinema. A estante fica ao lado da cadeira sob a qual o gato dormia. Sentiu minha aproximação. Outro piscar de olho.
A caminho do quarto, parei na cozinha e preparei uma xícara de café. Nessas máquinas modernas. Com cápsulas. Pequenos luxos que a vida nos permite. Prático também. Café na mão direita, livro na esquerda, caminho para o quarto.
O silêncio do apartamento me incomoda. Penso em ligar o som. Desisto. Me tiraria a concentração da leitura.
Tomado o café, me estiro na cama. O gato vem atrás. Ainda não é hora. Pula na cama. Não faço cafuné. Que aguarde.
Acordo de madrugada. Um peso no peito. O livro entreaberto. Não passei da página cinco.
Sonhei que havia chegado em casa. O gato ressonava. Nem ergueu a cabeça quando abri a porta. Abriu e fechou os olhos. Um piscar de olhos. Outro quando peguei um livro. Fiz um café na cozinha. Me estirei na cama. O gato veio atrás. Não fiz cafuné. Que aguardasse.
Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que chegara em casa. O gato piscou. Peguei livro. Fiz café. Me estirei na cama. Gato veio atrás. Não fiz cafuné.
Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que... Dessa vez fiz cafuné no gato. Consegui me levantar. Fui até a sala. Gato piscou só um olho. Parecia irônico. Teria me enfeitiçado?
Da próxima vez compro um cachorro.

Três memórias de meu pai: sobre a complexidade de ser humano

Outro dia lembrei-me de três momentos de meu pai. Em um convívio de quase cinco décadas, na relação de pai e filho, é claro que muitas histórias se passaram. Mas, pelos misteriosos e sinuosos caminhos da memória, esses trés episódios se repetiram na minha mente recentemente.
O primeiro ocorreu quando ainda era criança. Meu pai levou todos os filhos e mais uma moça, Maria, que trabalhava em nossa casa desde adolescente, para Ponta Grossa. Nosso destino era assistir corridas no hipódromo de Uvaranas naquela cidade. Chegamos em Ponta Grossa na hora do almoço. No centro da cidade, em frente a uma praça, me lembro bem, fomos a um restaurante. Por algum mal entendido ou má intenção do garçom que nos atendeu, quando começou a chegar a comida à mesa, foi um assombro geral. Era muita comida! O garçom pedira seis porçóes de cada prato. Eram um adulto, uma adolescente e quatro crianças. Depois de um rápido bate-boca, meu pai se levantou, foi à porta do restaurante, chamou um grupo de mendingos que estava na praça e fez com que a comida fosse servida a eles. Grande momento de vida!
Anos depois, aos dezessete anos, eu estava estudando em São Paulo me preparando para o vestibular e concluindo o ensino médio. Meu pai foi passar um final de semana lá. Foi, de novo, para assistir corridas de cavalo. Dessa vez em Cidade Jardim. No sábado, pela manhã, passeamos pelo centro de São Paulo. Na hora do almoço, perto da Praça da República, decidimos almoçar na churrascaria Rubayat. Lá dentro fomos surpreendidos pelo ambiente refinado e alta qualidade do atendimento. Embora bem de vida, não era o estilo de restaurante que frequentássemos. Ao final do almoço, pedimos dois cafés. O garçom trouxe os cafés. Em cada pires, além da xícara, um bala de hortelã. Nunca esqueci a frase que saiu dos lábios de meu pai:
_ Já estou imaginando o quanto vão me custar essas balinhas!
Um momento de humor típico do Seu Gimenez.
Passaram-se muitos anos. Eu trabalhava com meus pais no Supermercado Gimenez. As gondolas, expositores e checkouts tinham sido feitas pelo Sr. Luis Morselli, amigo de meu pai, que era marceneiro aposentado. Os checkouts tinham na parte traseira umas gavetas para guardar embalagens. Esta parte tinha a forma de um banco. Meu pai costumava ficar sentado ali conversando com fregueses que entravam e saíam do supermercado. Ele tinha um jeito de sentar que se repetia sempre. Esticava o braço esquerdo para o lado e apoiava a mão espalmada na madeira. Havia espaço para duas pessoas sentarem.
Meu pai sempre foi um homem bonito. De prosa fácil, sabia ser sedutor. Muitas freguesas, certamente, ao longo de sua vida de comerciante, sentiram de alguma forma o poder sedutor desse homem. Nessa época, em especial, havia uma freguesa, vizinha ao supermercado, que dava sinais evidentes de querer algo mais do que apenas as mercadorias vendidas pelo Seu Gimenez. Não é que, certa vez, enquanto meu pai estava sentado na ponta de um dos checkouts, em sua posição usual, com braço esquerdo estendido e mão espalmada, essa freguesa veio e sentou-se a seu lado. Com o meio da bunda bem em cima da mão dele!
Os dois ficaram um bom tempo conversando. Quando ela se foi, meu pai me perguntou:
_ Você viu?
_ Claro. Respondi e imediatamente perguntei:
_ Deu tempo de virar a mão para cima?
Ele piscou e sorriu daquele jeito maroto que de vez em quando fazia.
Três lembranças de meu pai. Três facetas de um ser humano. Às vezes, me pego fazendo julgamentos apressados sobre as pessoas. Mas, tento não me deixar levar por impressões parciais. Ser humano é uma tarefa complexa. Não cabemos em um só adjetivo.
Pena que só temos uma vida para tentar ser melhor do que pior. Pelo menos é no que acredito. Vale a pena tentar!
Quanto a meu pai, já escrevi em outro texto: alguns diziam que era uma pessoa boa; outros diziam o contrário. Eu só posso dizer que foi meu pai.

domingo, 5 de junho de 2016

Fim de Maio

Não havia mais o que fazer. Ou melhor, não dava mais tempo. O que fazer sempre haveria. Mas, o tempo se esgotara. Ou melhor, vencera o prazo concedido. O tempo nunca se esgota. É fluxo permanente. Assim como a vida. Ela continua. Nós passamos por ela. Em nosso tempo. Para alguns, breve. Para outros, longo. Em geral, a duração não é uma questão de escolha.
Me desvio do assunto. Vida e tempo teimam em se meter nos meus escritos. Não é hora de falar deles. Quero dizer sobre como ela reagiu ao fim de maio. Ou melhor, ao fim do último maio. Maio sempre haverá, mas como o último, talvez nenhum seja igual. No passado, também não houve. Olha o tempo espreitando para ver se encontra uma brecha nesse texto. Não vou deixar. Estou atento!
No primeiro de maio, um domingo, feriado desperdiçado, acordou preguiçosa. Se bem que, aposentada, para ela não fazia diferença. No criado mudo, o vaso de flor de maio, com vários botões florescendo. Vermelhos. Alguns já tinham se apressado e floresceram alguns dias antes. A maioria, ainda era uma promessa. Além do vaso, e dela, nenhum outro sinal de vida naquele quarto. Epa! Olha a vida querendo aparecer. Já disse que não é de tempo ou vida que vou falar.
Morava sozinha. Nunca gostou de animais domésticos. Assim, não tinha gato, cachorro, peixe, iguana, hamster, papagaio... uma vez pensou em adotar uma calopsita. Mas, ao ver a sujeira de grãos na gaiola da petshop desistiu. Não estava afim de buscar sarna pra se coçar. Para isso, tinha suas frieiras eventuais. Esfregar o vão dos dedos na quina do colchão era muito bom. Quase tão bom quanto sexo. Fazia tempo que não gozava dos dois prazeres. Parecia não sentir falta. Não tenho certeza. Era muito reservada. Não comentava essas coisas.
Solitária, depois da aposentadoria, tornou-se ainda mais calada. Recebia poucas visitas. Uma vez por semana, a diarista. Para a limpeza mais pesada. De vez em quando, Claudete e Odária. Vinham para um lanche no final do expediente do banco. Ela tinha sido caixa por mais de trinta anos. As duas entraram no banco dez anos depois dela. Conversavam sobre os outros colegas.
Claudete era viúva recente. Há seis meses o marido morrera, vítima de um câncer fulminante no pulmão. Fumante inveterado, entre a descoberta e a morte foram apenas três meses. Mas, Claudete já não demonstrava sinais do luto. Estava de caso com um colega do banco. Odária jurava que isto já estava acontecendo há muito tempo. Claudete negava. E logo mudava de assunto quando uma das duas amigas falavam sobre Odair, o colega do banco. Não teve filhos no casamento. O marido era estéril. Chegaram a pensar em adoção, mas nunca tiveram coragem. O marido tinha um irmão de criação que vivia dando problemas para a família. Na igreja, uma irmã que trabalhava na Santa Casa, uma vez disse a Claudete que havia uma menina de dezesseis anos que estava grávida e não queria ficar com a criança. A freira daria um jeito de lhe passar a criança assim que nascesse. Claudete ficou empolgada. Dias depois o cunhado encrenqueiro criou uma confusão danada com seu marido. Ela desistiu de adotar a criança.
Odária nunca se casou. Teve alguns pretendentes ainda na juventude. Ficara noiva de José Miguel aos vinte e dois anos. Herdeiro de uma família proprietária de uma grande empresa produtora de chás na cidade. Mas, a futura sogra não aprovava o casamento. Depois de três meses de noivado, achou um jeito de mandar José Miguel para os Estados Unidos. Ele foi fazer um curso de pós-graduação em Harvard. Lá conheceu a herdeira de um grande laticínio de Minas Gerais. Se encantou com os olhos verdes da mineira de pele morena. Nunca mais voltou a Curitiba. Casou-se com a moça em Las Vegas e quando os dois terminaram o curso, foram para Minas. Ele acabou tornando-se o administrador das propriedades do sogro. A futura sogra de Odária se arrependeu. Tentou se reaproximar de Odária, pensando em um meio de trazer o filho de volta. Odária não aceitou. Desiludida, não quis mais saber de nenhum homem. Era implacável com os colegas do banco. Para sorte deles, nunca ocupou um cargo de chefia.
Desde o feriado dominical, os trinta dias restantes de maio se passaram sem mudanças na rotina de Isabela. Ela mesma se concedera o prazo que estava se esgotando. Até o fim do mês daria uma solução à solidão. Assim como as duas amigas, não tinha filhos. O observava há alguns meses. No Bosque do Papa, onde ia pegar uns doces poloneses para o lanche com as amigas, o viu pela primeira vez. Foi no Bosque do Papa que comeu esse doce pela primeira vez. Nunca conseguiu guardar o nome. Era feito de uma massa fina, tipo folhada. Duas folhas, uma embaixo e outra na parte de cima, recheadas com um creme delicioso. A primeira vez que comeu foi quando o Papa veio a Curitiba e ela foi ver a missa rezada por ele. Depois passou em uma das barracas que foram montadas com comidas típicas da Polônia e comeu o doce. Descobriu que no Bosque do Papa o doce era vendido. Ficou cliente assídua.
Uma vez, quando estava assistindo uma apresentação de música no palco do Bosque do Papa percebeu que um rapaz estava lhe olhando. Não tinha mais do que vinte e cinco anos. Era negro, alto, magro e bonito. Algumas semanas depois, quando tomava um café no Museu Oscar Niemeyer, ao lado do Bosque do Papa, viu ele passando e entrando na lojinha do museu. Ele a viu e foi em direção a ela. Isabela se levantou, passou por ele, foi ao caixa e pagou sua conta. Saiu apressada. Afogueada.
O rapaz a seguiu a distância. Quando ela entrou em seu prédio, ele deu meia volta e voltou em direção ao museu. Desde esse dia, ele ficava algumas horas em frente ao prédio dela. Dia sim, dia não. Sempre na parte da tarde. Quando ela saía, ele sorria, mas nunca dizia nada.

Naquele trinta e um de maio, ela saiu de casa decidida. Era um dia sim. Ela sabia que ele estaria lá fora. Ela já se acostumara com o sorriso dele. Chegara a sonhar com o rapaz sorridente. Acordara afogueada. Saiu do prédio como se tivesse um compromisso. Apressada. Olhou para onde ele sempre estava. Não viu ninguém. Ela voltou para o apartamento. Disse ao porteiro que havia esquecido a sombrinha. Desceu depois de cinco minutos. Ele não estava lá. Ela foi até o Bosque do Papa, comeu um doce, sentou em um dos bancos em frente ao palco. Chorou. Seu tempo se esgotara. Não havia mais o que fazer. A vida, porém, continuaria. Solitária.

sábado, 28 de maio de 2016

O vento e as folhas

Ontem eu ouvi o vento. Não senti ele passar por mim. Olhei para o alto. As folhas se mexiam. Só de uma árvore. Nas outras, as folhas não se moveram. Só naquela. Linda!
Exibido, o vento me atraiu para aquela direção. Como ele conseguiu fazer aquilo? Queria me dizer alguma coisa. Não prestei atenção nele. Invisivel, só se mostra indiretamente. Como não lhe dava bola, achou um jeito de me tirar de meu caminho. Fui atrás de seu som. Ou seria o som das folhas?
O sol poente deixava as folhas brilhantes. Pareciam escamas de peixe. Quase me afoguei de encantamento. Me faltou o ar. O vento se exibindo para mim. E o ar me faltando. Vento não é feito de ar?
A vida, às vezes, é como o vento. Passa por nós. Se não cuidamos bem nem a vemos! Mas, ela tem suas artimanhas. Parecidas com as do vento. De repente, ela guia nosso olhar. Mostra o inesperado. Mancomunada com o vento, pode até nos tirar o folêgo.
Ontem eu ouvi o vento, vi as folhas, e me senti vivo.
Depois, à noite, falei para os alunos e alunas que tinham aula comigo sobre o que acredito: a esperança de que possam aprender o que seja significativo para eles. Na minha fala, escondida, assim como o vento, uma esperança. Que eu possa ser como o vento junto às folhas. Passar por eles e, momentaneamente, ajudá-los a refletir o brilho da vida. Já me darei por satisfeito.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Distração

(Da série: Contos curitibanos)

Distraído, pensava na vida. Seu ponto de desembarque ficou para trás. Só se deu conta quando o sistema de som do ônibus informou: Próxima parada Estação Central. O jeito foi descer ali mesmo. Andava meio confuso ultimamente. Até um pouco místico.Eram seus últimos dias de férias. Não tinha nenhum compromisso, assim não se importou muito com a distração. 
Quando ficara órfão, aos quinze anos, foi morar com o avô paterno. O avô era uma figura. Não professava nenhuma crença. Mas, quando bebia uma pinga no bar, jogava a dose do santo no chão. Ele achava graça. O avô ficava bravo:
_ Me respeite menino!
Tentava retrucar. O avô não deixava:
_ Um dia você vai entender.
Ao sair da estação, dirigiu-se à esquerda, rumo à Praça Santos Andrade. Virou a esquina, mal deu três passos, a viu sentada nos degraus da lateral do prédio histórico da UFPR. Uma velha cigana, com uma saia vermelha, lenço na cabeça, também vermelho, blusa azul marinho, brincos, colares, pulseiras e anéis, todos dourados. Ao vê-lo, ela disse:
_ Preciso falar com você?
_ Comigo?
_ Sim. Estava lhe esperando.
Nesse momento lembrou-se do avô. Fazia três meses que havia morrido. Um pouco antes de morrer havia lhe falado:
_ Uma mulher vai lhe procurar. Não deixe de ouvi-la.
Perguntou quem seria a mulher. A resposta:
_ Você não conhece. Mas, vai saber quando a vir.
Desde então sonhara várias vezes com o que lhe dissera o avô. Logo ele. Raramente lembrava de seus sonhos. Agora, todo dia acordava cansado. Era como se realmente tivesse vivido os sonhos. E, ainda por cima, lembrava de todos os detalhes. Mas, estranhamente, os sonhos eram em branco e preto, sem outras cores. A cigana lhe chamou de novo:
_ Vem cá menino!
Com quase trinta anos, estranhou ser chamado de menino. No entanto, subiu os degraus assim mesmo. Sentou-se ao lado dela. Imediatamente ela pegou sua mão direita. Virou a palma para cima. Seguiu as linhas da mão com o indicador. Disse:
_ Sabia! Assim que te vi. Minha intuição não falha. É você mesmo que eu procurava. Você não vinha para cá hoje, né?
_ Como sabe disso?
_ Tenho meu jeito de fazer as coisas. Não adianta eu explicar.
_ Tá bom. O que você quer?
_ Seu avô me deixou uma missão.
_ Meu avô?
_ Sim. Antes de morrer, conversou comigo. Pediu que lhe explicasse a dose do santo.
_ Como é que é?
_ Isso mesmo! Ele nunca lhe explicou. Pediu que eu lhe explicasse. Uma vez por ano me procurava. Vinha atrás de meus conselhos. Dizia que não acreditava em nada, mas o que eu lhe falava dizia fazer sentido. Nunca lhe fez mal.
_ Não acredito! Meu avô? Ele nunca acreditou em nada!
_ Não é verdade. Isto mudou. Foi quando ele começou a sonhar em branco e preto. ainda jovem. Na primeira manhã que acordou, ao se lembrar disso, saiu pra rua. Me encontrou aqui nesses degraus. Eu vi que ele precisava me ouvir. Chamei. Ele se sentou nesse mesmo lugar que você está.
Nesse momento, ele relaxou. Esticou as pernas. Encostou os cotovelos e as costas no degrau.
_ Me conta como foi isso.
Foi uma longa conversa.

sábado, 7 de maio de 2016

A Meio Caminho

Foi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite. Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade natal.
Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves. Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro. 
No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos atrás. Se espantou, pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase que ao mesmo tempo.
Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira. Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse:
_ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui?
Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele com quase sessenta. Ela não mais que dezenove.
_ A última vez que passei aqui você não era nem nascida.
_ Verdade?
_ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha ninguém. Fui criado em um...
De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa moça que nem conheço?
Ela tentou continuar a conversa:
_ Nossa. Por que está voltando agora?
_ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem. Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um...
Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando isso pra essa moça?
Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De repente, falou pra moça:
_ Tem algum hotelzinho por aqui?
_ Não. Por que?
_ Desisti da viagem. 
_ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio. Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito por aqui. Faço uma grana extra.
_ Verdade?
_ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem.
_ Topo. Que horas você sai?
_ Meu turno se encerra daqui meia hora.
Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retrato com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus.
_ Quem são?
_ Minha avó com um passageiro de um ônibus.
Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou:
_ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas, deviam ser como os seus.
_ O que aconteceu?
_ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sózinha. Os pais estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu.
Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou:
_ Que houve?
Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois disse:
_ Vou deixar você à vontade. E saiu.
Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela percebeu que ele já tinha ido embora.
Ao lado do porta-retrato, o livro de Dalton Trevisan e um bilhete:
"Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar."
Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis, brotam lágrimas. Ninguém sabe porque.