terça-feira, 11 de julho de 2017

Para um leitor desconhecido

Termino de ler O melhor de Caio Fernando Abreu contos e crônicas. No ônibus. Quase perco meu ponto de descida. Felizmente, alguém fora do ônibus acenou e ele parou. Levanto. As portas de descida também se abrem. Devem funcionar automaticamente. Ou então, foi gentileza do motorista que me percebeu. Levantei e me pus frente à porta. Pensei em acionar o botão de parada. A porta se abriu antes de fazê-lo.
Me distraíra pensando que deveria deixar esse livro na estação Central. Nela há um espaço onde livros podem ser deixados e pegos. Por qualquer um. Livros não foram feitos para ficar guardados. Em estantes. Em qualquer lugar. Eles precisam circular. Como um tesouro a ser compartilhado. Porque se você pensar bem, nada vale um tesouro guardado! Vai acumulando sujeira. Pó. Melhor que caia nas mãos de um leitor. Ou leitora. Desconhecida. Desconhecido.
Talvez aquela adolescente que volta pra casa depois das aulas no Colégio Estadual. Poucas amigas. Sempre distraída. Sentada perto das janelas. Fora da sala, o jardim. A avenida. O constante ir e vir de ônibus e carros. Se sente prisioneira. O professor chama a atenção. Maria Cláudia! De novo olhando pra fora. Depois vai mal na prova e não sabe porquê. Escreve poesia. Acho que vai gostar da crônica Carlos chega ao céu.
Ou será aquele senhor que vai ao Passeio Público. Dia sim. dia não. Vezenquando (empresto uma palavra que aprendi com Caio Fernando Abreu) para em um bar na Presidente Faria. Toma uma cerveja. Come torresmo. No fim do dia. Observa as pessoas andando apressadas. Voltam para casa depois de um dia de trabalho no centro. Aposentado. Não aguenta ficar em casa. Quarenta anos trabalhando como porteiro. Ficou sabendo que o prédio onde trabalhava passaria a ter portaria eletrônica. Não quis ser demitido. Uma humilhação. Segundo ele. Se aposentou. A mulher fica em casa. Para ele, recomendo o conto O coração de Alzira.
Pode ser, ainda, aquele bancário. Carrega o título de gerente de contas. Mas, não se ilude. Hoje em dia, quase todo bancário é gerente de contas. Pelo menos os que sobraram. Que ficaram no emprego. Muitos foram demitidos. A culpa dizem, é do avanço tecnológico. Não sei não! Tenho minhas dúvidas. Todo dia tem uma meta a atingir. Seguro de vida. Crédito consignado. Fundo de investimento. Tantas siglas na sua jornada. CDB. SELIC. RDB. BTN. PQP. Opa, esta não! Para ele, recomendo Os sapatinhos vermelhos. Está precisando de um pouco de graça e sacanagem na vida.
Ou pode ser aquela senhora que volta da feira. Carrinho transbordando. Por cima, uma caixa de caquis. Vermelhinhos. Devem estar muito doces. Ela ocupa o lugar destinado aos portadores de necessidades especiais. Sentada. Carrinho a seu lado. Volta da Praça Dezenove de Dezembro. Às segundas há uma feira com preços subsidiados. Nesses tempos bicudos, qualquer economiazinha ajuda. Vai gostar de ler As corujas. Tenho certeza que depois vai ler de novo. Para os filhos. Uma menina e um menino. Assim que chegarem em casa. Mas, não vai ser fácil. Eles só querem ficar mexendo no celular.
Mas, eu tenho uma preferência. Não dos contos e crônicas do livro. Todos me afetaram. Me fizeram sorrir. Me entristeceram.  Ou me iluminaram. Minha preferência é por uma leitora ou leitor. Alguém que tenha acabado de sair de uma sessão de clarividência. Você já percebeu como há uma oferta muito grande desse tipo de serviço em Curitiba. Eu, que ando muito pela cidade, vejo sempre pequenos cartazes em muros e postes. Uma infinidade deles. Tantos nomes. Rita Paula. Dona Joana. Pai Tomás. Cacique Pedro. E por aí vai. Acho que é mais uma evidência dos tempos bicudos que vivemos. São diversos os problemas que podem ser resolvidos. Amor. Trabalho. Mal olhado. Inveja. Doença. O que mais gosto é uma unanimidade. Nos cartazes. Trago ele ou ela de volta. Pagamento só após o retorno. Ah! O amor! Esta coisa indispensável na nossa vida. Quando falta apelamos pra tudo.
Pois é. eu queria que esse livro fosse colhido por alguém que tivesse ouvido algo assim: Tenha fé e paciência. A vida vai melhorar. A qualquer momento algo vai se transformar. Você vai ser feliz de novo.
Que o livro de Caio Fernando Abreu seja este momento!


domingo, 2 de julho de 2017

O filho que virou sobrinho

Desciam pelo elevador. Iam em busca do sol na fresca manhã de inverno. No quinto andar, uma vizinha se juntou a eles. Depois do cumprimento, ela perguntou:
_ Você o conhece?
_ Claro que sim, disse a vizinha.
_ Meu sobrinho.
A vizinha olhou para ela. Entre surpresa  e espantada, ia dizer algo. Não teve tempo. Ela completou:
_ É mais que um filho!
Ele gargalhou. O elevador parou. A porta se abriu. Todos desceram. A vizinha foi conversar com o porteiro. Eles foram em direção à praça.
O sol das dez aquecia na medida certa.  Escolheram um banco. Como sempre fazia, ela comentou:
_ Vamos ver se aparece algum conhecido.
Mas,  a cidade crescera tanto. Muita gente desconhecida. Nenhum conhecido apareceu. Além disso, seus contemporâneos, pioneiros da cidade, já não estavam mais vivos. Eram lembrados no monumento aos pioneiros a poucos metros de onde sentaram. Ela era uma das últimas. Com 91 anos, estava na cidade há 77. A cidade é apenas seis anos mais velha do que isso.
Nessa idade, a memória começava a lhe falar. O filho vinha a cada três semanas. Ficava três dias. Percebia a deterioração rápida da memória dela. Ficou sem saber se a gargalhada fora genuinamente um reflexo de ouvir algo engraçado. Ou teria sido uma reação nervosa fora de controle? Ainda não tem a resposta.
À noite, após um leve jantar, percebeu que ela o tratava como se fosse uma visita. Quando disse que iria embora no dia seguinte, ela respondeu:
_ Vem mais vezes. Traz a família.
Ele respondeu:
_ Sou seu filho.
Surpresa, ela perguntou desde quando ele sabia disso. Se a família dele também sabia. Perguntou quando nasceu. Disse que ia tomar nota. Para verificar depois. Lamentou que ninguém aparecera para vê-lo.
Na manhã seguinte, ela continuou sem reconhecer o filho. Depois do almoço, ele se despediu:
_ Tchau mãe. Estou indo.
Ela repetiu, estranhando, como se fosse a primeira vez que tivesse ouvido:
_ Tchau mãe. O tom de voz era de alguém que não sabia bem o que dizer. Entre incrédula e nervosa.
A caminho da rodoviária,  andando pelas ruas quase desertas, foi pensando que não sabia como se sentia. Ainda não sabe. O que sabia  é que um dia isto poderia acontecer. Foi dessa vez.
Tenta se consolar pensando que a memória dela é tão volátil. Não deve sofrer muito. Esquece tudo tão rapidamente. Provavelmente já se esqueceu da visita do sobrinho que lhe disse que é seu filho. Carrega consigo uma certa ansiedade: quem será na próxima visita? Filho, sobrinho, ou um desconhecido?