domingo, 29 de março de 2020

Culpa de Clarice!

Na reclusão de um domingo, véspera de uma segunda-feira a ser vivida recluso, a ele assombravam as lembranças.
Já havia notado antes. Mas, nesse domingo, a angústia bateu forte. Culpa de Clarice! A cada conto cuja leitura concluía, nascia a angústia.
Nesse domingo lera A Mensagem em Todos os Contos, coletânea dos textos curtos de Clarice. Lembranças de um avô lhe interrompiam, a cada página, a concentração. Até parecia uma concertação dos deuses. Mas, qual o quê! Deuses não existem. Era sua memória. Claro! A lembrança trazia a angústia. Culpa de Clarice!
Como quase todos, tinha dois avôs. O materno e o paterno. Do primeiro lhe ocorriam memórias da infância e adolescência. Do segundo, mais distante, poucas memórias. Uma, contudo, lhe doía.
Não moravam na mesma cidade. A essa altura da vida, o avô já não vivia. Mas, a lembrança persistia. Uma lembrança de um quarto de século atrás. Fazia anos que pensava tê-la esquecido. Ela brotou forte. Culpa de Clarice! Gêmea da angústia. Forte também. Mas, isso já disse.
O motivo da viagem não lembrara. Fora com o pai. Visita à terra natal do pai. Retorno à casa materna do pai. Da avó. Do avô. Ele ficara sem ir àquela cidade por quase uma década. Difícil precisar! Talvez mais. Se menos, muito pouco. O seu pai não! Certamente, estivera na cidade natal algumas vezes naquela década.
Mas, ele não. A vida os distanciara. Tinha vivido em outros locais. Viajara muito. Não à cidade do avô paterno. Isso não fora culpa de Clarice. Naquela época não a lia.
Por motivo que não recordava, tinha sido o motorista do pai naquela viagem. Na chegada, como sempre, tímido. Ele. Não o pai. O pai nunca foi. Nisso era diferente do pai. Em outros aspectos, muito parecidos. O mesmo jeito de sentar. Um mesmo humor debochado. Coisas da genética! Só cientistas para explicar.
Da timidez, nasce um aperto de mão com o avô. Um boa tarde quase inaudível. Um como vai o senhor formal. Distante. Avô e pai se abraçam. Isto à porta da casa. Praticamente na calçada. A porta da casa abria direto na calçada. Entram enfim. Sentam-se ao sofá. Engraçado que na memória não surge a avó. É provável que o avô já fosse viúvo. Ele não se recorda. Culpa de Clarice?
Depois de alguma conversa, veio do avô a pergunta. Dirigida ao pai. Ele ao seu lado. Quieto. Outra qualidade que o diferia do pai. Uma pergunta inesquecível:
_ Quem é esse homem que veio com você?
Depois da resposta. Um abraço apertado. De avô em neto. Mais inesquecível ainda! Guardado na memória. Ele pensava esquecido. Renasceu naquele domingo. Culpa de Clarice.