quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Protético que Fazia Permuta

Nem sempre as coisas andam bem. Em momentos de dificuldades econômicas há aqueles que acham maneiras alternativas de vender seus serviços.
Dema veio para Londrina em meados da década de 70 do século 20. A cidade recém completara quatro décadas de fundação. Entre os anos 40 e 50, a cidade criou fama de um novo Eldorado. Com base no ouro verde, o café, Londrina tornou-se rápidamente um centro econômico no norte do Paraná.
A riqueza vinda, principalmente da agricultura, atraiu muita gente. Esse movimento continuou pelos anos 60 e 70. Dema veio do interior de São Paulo com esperança de tempos melhores. No começo foi difícil, mas aos poucos foi ganhando reputação junto aos dentistas da cidade. Passou a ser conhecido na cidade.
Londrina, como acontece com as regiões que se desenvolvem rapidamente, estimulou também o comércio do sexo. Nos anos 50 ficou famosa pelo grande movimento em seu pequeno aeroporto. Nos finais de semana, os voos da Real traziam, além de passageiros em viagens de negócios ou passeio, mulheres que vinham de São Paulo e Rio de Janeiro para se prostituirem na zona local. Algumas vezes, os fazendeiros ricos fretavam aviões para trazerem essas profissionais do sexo. Algumas acabaram ficando por aqui, mas a maioria ia embora na segunda-feira. Assim, nas imediações do Estádio Vitorino Gonçalves Dias foi surgindo a zona de Londrina.
Por coincidência, Dema foi morar e trabalhar nessa região. Alugou uma pequena casa que servia de moradia e laboratório de prótese. Jovem e solteiro, naturalmente, sentia as premências do sexo. Aos finais de semana, ia se aliviar em uma das inúmeras boates.
Certa vez fez um programa com a Maria Polaca. Não pode deixar de notar que ela estava com muitas falhas na arcada dentária. Maria Polaca ria fácil e arreganhava a boca. Dema viu os dentes que faltavam.
Naqueles dias, andava curto de grana. Teve uma ideia e propos para a Maria Polaca uma permuta. Faria próteses para melhorar sua dentição e ela, em troca, lhe prestaria os serviços de sexo. Ela topou.
Dema indicou um jovem dentista para Maria Polaca. Ele fez as próteses e Maria Polaca pagou em serviços. Uma permuta que deixou ambos satisfeitos.
Maria Polaca contou para as colegas. O serviço de Dema aumentou bastante. Suas idas à zona também. Nunca mais pagou em dinheiro. Só na base da permuta. Dizem que seu amigo dentista passou a fazer o mesmo. Isso eu não posso confirmar. A história de Dema ouvi dele mesmo.
Outro dia reclamou que, nesses tempos modernos, com o fechamento da zona, não há mais permutas. Se bem que ele já não anda com essa corda toda.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

No avião: Breve texto sobre o efêmero

Uma coisa estranha. Sentir vontade de escrever durante um vôo entre Maringá e Curitiba. Espremido entre Sara e uma adolescente gaúcha que faz um trabalho de história em seu tablet.
Como sei que é gaúcha?
Antes de decolarmos, ela se dirigiu a alguém na poltrona de trás. Usou tu. Vôo tem como destino final Porto Alegre. Não é preciso ser nenhum Sherlock para deduzir sobre a gauchice da guria. Elementar, meu caro Watson!
Mas, por que escrever? Ou para que?
A escrita é um exercício diário. Palavras se formam na tela do celular. Quero escrever sobre a vida que é efêmera. Mas, a bateria do celular é mais ainda. Um alerta surgiu na tela: bateria muito fraca!
Meu discurso tem que ser rápido. Aos cinqüenta e oito percebo que minhas poesias tratam de quem sou. Minha identidade se esgueira nas linhas e entrelinhas.
A bateria é efêmera, mas mais longa que o vôo. Sou interrompido pela comissária de bordo:
_ Dentro de instantes aterrisaremos no aeroporto internacional Afonso Pena em Curitiba (que é em São José dos Pinhais), todos os aparelhos eletrônicos devem ser desligados.
Retomo o texto depois do pouso. Descubro algo mais efêmero que o vôo: minha memória!
Esqueci porque comecei a escrever este texto. Me perdoe!

Cinema, fotografia e sustentabilidade: distopias suaves

Mais uma vez uso o cinema e a fotografia para refletir. Por iniciativa do Coletivo Atalante (coletivoatalante.blogspot.com.br), na Cinemateca de Curitiba foi exibido ontem o 4:44 Último dia na terra, filme de Abel Ferrara lançado em 2011. De forma quase serena, o filme narra a espera pelo extermínio da humanidade, devido ao esgotamento quase que por completo da camada de ozônio. Os cientistas previram que isto ocorreria às 4:44 de determinado dia, e acompanhamos as últimas 14 horas vividas por um casal – Cisco e Skye – interpretados por Williem Dafoe e Shanyn Leigh. Não há pânico e nem violência nessa distopia suave que Ferrara nos apresenta.
No mesmo espaço da Cinemateca, uma exposição fotográfica de Rodolfo Massambone – Contenções – explora, assim como Abel Ferrara, a relação entre homem e natureza. A exposição integra a programação do FIDÉ Brasil 2015 – Festival Internacional do Documentário Estudantil. Em suas fotografias, Massambone mostra a resistência da natureza às contenções que o concreto armado, obra humana, tenta lhe impor. Flores e árvores brotam de rachaduras e espaços abertos no canal construído para domesticar o Rio Belém que cruza a cidade de Curitiba. A rebeldia da natureza, persistindo em sobrepujar as contenções humanas, da forma retratada pelo fotógrafo, me leva a imaginar que suavemente, ao longo dos anos, a natureza se imporá aos humanos.
A distopia suave de Ferrara e a fotografia de Massambone me provocam. Fazem com que seja impossível para mim, não voltar ao tema da sustentabilidade na literatura dos estudos organizacionais. É mesmo possível que teremos, no futuro, gestores capazes de levar a humanidade a superar o desafio que diz respeito à harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos, baseando-nos no duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras(VEIGA, 2008, p. 171)?
Devo confessar que, no atual momento de minha trajetória, enxergo essa possibilidade com ceticismo. Nossa sociedade ainda tem um caráter egocêntrico e humanocentrico que torna muito difícil superar as limitações de uma gestão organizacional orientada prioritariamente pela maximização do lucro.
Nessa reflexão, nesse momento, me vem à memória, uma das primeiras leituras que fiz sobre as questões ambientalistas, ainda à época de meu doutoramento na Universidade de Manchester nos anos 90 do século passado. Desde aquela época, costumava frequentar sebos em busca de livros mais baratos. Em uma de minhas viagens a Londres, encontrei dois livros de bolso de James Lovelock – Gaia: a new look at life on Earth (1979) e The Ages of Gaia (1988). É claro que não lembro de detalhes desses textos que li há mais de trinta anos. Mas, uma impressão me ficou dessas leituras. A ideia de que a Terra é um organismo vivo que se adapta à presença do homem na sua superfície. Pode ser que ela sobreviva aos humanos. O filme de Ferrara e as fotografias de Massambone me dizem que isto é provável.
Nesse domingo em que o frio do outono curitibano nos força a buscar outras fontes de calor, me apoio na Esperança. Espero que sejamos capazes de sensibilizar nossos alunos de Administração para que não façamos Gaia se livrar de nós. Vamos respeitá-la e continuar nossa busca por um mundo sustentável, onde as dimensões ambiental e social sejam prioritárias em relação ao lucro.
VEIGA, J. E. da Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

A Bermuda do Londrinense

Sábado pela manhã. Sara e eu caminhamos pelo calçadão de Londrina, após um expresso, um machiatto e um pão de queijo em uma cafeteria. Entre a São Paulo e a Rio de Janeiro, sentamos um pouco para apreciar o movimento. Uma trilha sonora urbana nos acompanha: buzinas, passos, vozes indistintas, risos de crianças, de vez em quando um choro. Parecia até o ensaio de uma orquestra. Cada instrumento com seu som, alguns graves, outros agudos. Há os mais salientes: 
- Doutor, me dá vinte centavos pra uma pinguinha. 
- Dois chips de celular por dez reais. 
- Moça, vamos fazer um cartão hoje? 
- Olha que beleza o oxigênio, você sabe quem criou? Diz um pregador. 
- Que cachorro mais lindo! 
- Gostosa! 
- Brasil mostra sua garra, diz alguém em um palanque. 
- Me dá um dinheiro pra comida! 
- Olha a estátua viva. Mas, estátua se mexe? É uma estátua dinâmica! 
- Vamos por aqui que estou com pressa. 
- Mãe, é um desses que eu quero. Compra pra mim? Não enche menino! 
- De onde vem esse barulho? Está ouvindo? Pi, PI, PI, PI. É da estátua. Será? 
Essa diversidade de sons é acompanhada da diversidade humana. Nossa! Como tem gente diferente no mundo! 
Mas, uma constância chama minha atenção: a bermuda do londrinense. Todos os homens que estavam de bermuda - meninos, velhos, jovens, maduros, grisalhos, morenos, loiros, calvos, negros, pardos, brancos, altos, baixos - tão diversos, mas semelhantes no comprimento da bermuda. Sempre abaixo dos joelhos! 
Sara sugere que eu faça uma contribuição para o artista da estátua. Aproximo-me e leio o que estava escrito no pequeno cartaz afixado ao tubo onde as moedas caindo adicionam mais um som à trilha sonora matutina: 
"Sua contribuição mostra sua cultura e valoriza minha arte" 
Penso: Não tenho nenhuma bermuda que cubra meus joelhos. Preciso comprar uma. Mas, acabou o verão! Fica para o ano que vem! 

Ponto de vista e amor: eu os possuo?

Assistindo Samba na Gamboa com Diogo Nogueira e um grupo tocando Dorival Caymi. De repente começam a cantar Ponto de Vista:
"Do ponto de vista da Terra quem gira é o Sol..."
Pego o tema para a escrevinhação de hoje. É muito provável que este tenha sido objeto de reflexão de outros. Mas, como é ponto de vista, por que não falar do meu? Assim como os de outros, é único. Está entre as poucas coisas que são só minhas. Meu ponto de vista é meu. Ninguém tasca! Eu vi primeiro.
Epa! Taí um olhar interessante. Do meu ponto de vista, o que é meu mesmo? Além dele mesmo, acredito que poucas coisas sejam só minhas. Aqui, espero que você já tenha suspeitado, não me interessa falar das coisas materiais que, usualmente, digo que possuo. Livros, o celular no qual escrevo, minhas roupas. Estas são transitoriamente minhas. A qualquer momento podem deixar de ser. Seja por minha vontade, de meus credores, ou por razões que não controlo, como os amigos do alheio ou a morte. Sem querer parecer trágico, quando morremos as propriedades cessam de existir. Ter essa consciência ajuda na hora de se desfazer de coisas que gostamos tanto. Como, por exemplo, aquela blusa de que gostava e Paloma um dia me disse:
_ Pai, a partir de hoje é minha.
Será que posso juntar o amor ao ponto de vista no conjunto de coisas só minhas.
Ora, o amor! Esta coisa indefinível que dizemos sentir. O amor que sinto não é meu. Ele só faz sentido quando o dou a outros. Então, não é meu!
Mas, e o amor que outros me dão. Não seria meu? Também não. Ele só existe em fluxo. Eu preciso devolvê-lo para que ele não pereça. Não é de ninguém e é de todos.
Então, no meu ponto de vista, o amor não está no conjunto de minhas propriedades. Assim, é diferente do (meu) ponto de vista.
Se refletir bastante, conseguirei encontrar outras coisas não tangíveis que posso dizer minhas. Mas, vou parar por aqui. Comecei esta escrevinhação com essa intenção. Dizer das coisas que são minhas a partir da lógica ou da razão. Mas, o amor se intrometeu no assunto, e acabei trilhando os caminhos da emoção.
Assim como o amor, outra coisa que não é minha propriedade é o teor de meus textos quando domina a emoção. Penso uma coisa e escrevo outra. É impressionante!

sábado, 23 de janeiro de 2016

Rotina

Andava se sentindo como Tom Baxter, aquele personagem que sai de dentro de um filme para conhecer Cecília na platéia de uma sala de cinema em A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen. Só não conseguia ver a platéia.
Sua vida era como um filme projetado todos os dias. Aos sábados e domingos, era outra história. Mas que também se repetia. Sempre igual.
No trabalho, a rotina era tão intensa que até suas escapadas para ir ao banheiro ou fumar um pouco lá fora aconteciam todo os dias nas mesmas horas. Sempre encontrava os mesmos colegas nesses dois espaços. O telefone tocava sempre às 10:25. Do outro lado da linha, o chefe:
_ Qual a posição das vendas de ontem?
_ Caíram mais um pouco.
_ Em que estamos errando.
_ Nada, é o mercado que está ruim. Respondia.
Na verdade, queria responder:
_ Não recebo para pensar. Esse é seu problema. Foda-se.
Mas, não tinha coragem. Precisava daquele salário. Sabia que, em sua idade, próximo dos 60, não teria chance em outro lugar.
Se não bastasse a mesmice do trabalho, a ida para casa era cronometrada também. Pegava o ônibus em frente à empresa às 17:43. Treze minutos após bater ponto. Descia no décimo sétimo ponto, às 18:51. Desde que instalaram aqueles relógios nos pontos de ônibus, começara a notar essa regularidade.
Todo dia, ela embarcava no ônibus dois pontos após o seu. Descia, às 18:27, dois pontos antes do seu. Sempre com o mesmo uniforme branco. Sorriam quando se viam frente à frente. Ocupavam sempre os mesmos assentos.
Em casa tinha sua rotina também. Assim que entrava ligava a televisão, sempre no mesmo canal. No quarto tirava a roupa, jogava sobre a cama, entrava no banheiro, enquanto fazia suas necessidades lia a mesma revista. Por último banhava-se. Esquentava alguma coisa para comer. Depois da última novela ia dormir.
Aos sábados, acordava às nove horas. 10:16, café e pão com manteiga na padaria em frente. Ônibus para o centro, chopinho no calçadão, almoço com amigos no Arrumadinho. Às 16:15 chegava de volta à casa. Ia dormir depois da última novela.
Aos domingos, missa de manhã. Joquei clube à tarde. Sua vida era como o show da vida na tv. Sempre a mesma coisa.
Naquele dia estava sentindo uma angústia insuportável. Não aguentava mais tanta rotina. Fez tudo como sempre no trabalho. Quase disse um foda-se para o chefe. Respirou fundo e calou-se.
Aquele momento foi uma iluminação. Nunca respirara fundo no trabalho. As coisas podiam ser diferentes.
Às 17:43 entrou no ônibus em frente à empresa. No segundo ponto, desceu e antes que ela subisse disse:
_ Vem comigo.
_ Por que? Ela perguntou surpresa.
_ Porque podemos. Você não assistiu A Rosa Púrpura do Cairo?
_ Vai subir? Perguntou o motorista.
Ela hesitou, mas resolveu ficar. Ela assistira A Rosa Púrpura do Cairo.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Desmemória

Quando queria contar algo e não lembrava, inventava. A primeira vez que isso aconteceu, tinha pouco mais de trinta anos. Falava com um grupo de amigos em um bar na esquina da Alagoas com a Antonina, atual JK.
A conversa era sobre conquistas quase amorosas. Ou sendo menos sutil, sexuais mesmo. Naquela época ainda não existia o ficar. Assim, o investimento de tempo em uma conquista exigia algum esforço. Não era tão fácil como hoje.
Quando começou a contar, esqueceu com quem tinha saído. Na hora deu aquele branco. Não lembrava de mais nada. Mas, conseguiu disfarçar bem, forçando uma tosse quando o nome que queria lembrar não veio à boca. Rapidamente, falou:
_ Saí com a Vanessa a semana passada. Lembram-se dela?
Ninguém lembrava de nenhuma Vanessa.
_ Pô pessoal, aquela loirinha que gostava de falar de mecânica de carro no colégio. Ela sabia mais de carro do que qualquer um de nós.
Os amigos continuaram dizendo que não se lembravam.
Aí não tinha mais jeito. Continuou inventando. Disse que levou a ex-colega de colégio para um motel. Tinham se encontrado na saída da missa das dez horas do último domingo. Foi na igreja da Belo Horizonte, onde todo mundo tinha feito as aulas de catecismo e primeira comunhão. Ela estava de preto. Viúva. O marido havia morrido em um acidente de ônibus voltando de São Paulo para Londrina. Seis meses de luto. Chamou ela para almoçar. Ela aceitou sem titubear. Foram em uma churrascaria no centro. Ainda bem que não encontraram nenhum conhecido.
De repente, na hora do cafézinho, ela disparou:
_ Sempre prestei atenção em você no colégio. Mas, você sempre foi tão tímido.
Aproveitou a deixa:
_ Eu também tinha um tesão por você. Como eu não entendia nada de carro, não sabia como puxar conversa com você. Você só falava de carro e mecânica.
Ela sorriu. Ele aproveitou e pegou na mão dela, dizendo:
_ Vamos fazer o que deveríamos ter feito há 15 anos atrás?
Nessa altura da história, ele lembrou que tinha saído com a Lurdinha. Que já tinha saído com quase todos. Mas que importa, a história com a Vanessa estava muito boa. Arrematou:
_ Ficamos no motel até o meio-dia da segunda-feira. Não falamos nenhum pouco de mecânica de carro.
Os amigos pediram a saideira. Foi para casa. Mais de onze horas da noite. Deitou e dormiu logo. Tinha que ir bem cedo para o trabalho na oficina do Tião. Sonhou com uma loira de preto. Acordou melado. Na oficina, cuidava do escritório. Ainda não entendia nada de carro.
Vinte anos depois, vai à missa das dez todo domingo. Não se conforma de nunca mais ter encontrado a Vanessa. Nunca se esqueceu daquele domingo.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O acompanhante surdo mudo

Há muito tempo ela queria experimentar. Algumas amigas já tinham feito. Assim como ela, todas tinham entre 50 e 55 anos de idade. Passavam a temporada no litoral paranaense.
Entre o Natal e o Carnaval seriam quase 60 dias. Ela ficava sozinha entre segunda de manhã e sexta à tarde. Os filhos, Eduarda e Jorge, já haviam retornado para suas casas com os netos. Os dois eram sócios de uma pequena empresa de confecções no interior de São Paulo. Tinham vindo só para as festividades de fim de ano. O marido, executivo de uma grande empresa em Curitiba, passava a semana no escritório da empresa.
Naquele fim de semana, ele avisou que não viria. A empresa recebia uma comitiva da China e ele ficara incumbido de ciceroneá-la. Era uma negociação importante. Ele poderia até receber uma promoção se o negócio fosse fechado.
Foi a oportunidade que ela teve. Ficaria quase dez dias sem ver o marido. Como diz o velho ditado, a ocasião faz o ladrão. Tomou coragem e fez uma busca no google: acompanhante masculino litoral Paraná. Entre as muitas opções, achou aquele que as amigas haviam comentado: Vipscorts - sofisticação e satisfação juntas.
A vantagem desse serviço estava na forma de negociação: atendimento on line. Nervosa, mas decidida, percorreu o menu de escolha. Sua atenção foi atraída pela foto de Johny e a frase abaixo dela: Carinhoso e discreto. Muita ação e pouco papo. Tentou o chat com ele. Estava on line. Depois de algum tempo, combinaram de se encontrar. Ela o pegaria em frente a um supermercado, no caminho do ferry-boat. Iriam a um motel. Embora estivesse sozinha no apartamento, preferiu não arriscar.
Ao chegar no local do encontro, ela o viu. Parecia um pouco mais velho e mais gordo, mas ainda assim atraente. Ela lembrou do marido e hesitou um pouco. Deu uma volta na quadra. Estava decidida. Precisava dessa experiência. Todas as amigas já tinham feito. Parou o carro, abriu a porta e perguntou:
_ Johny?
Ele apenas sorriu e entrou no carro. Ela ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Dirigiu até o motel. Na portaria pediu uma suíte master com hidromassagem.
Ao entrarem, Johny a abraçou, começou a beijá-la, ao mesmo tempo em que tentava desnudá-la. Nesse momento, ela quis conversar um pouco:
_ Calma, vamos conversar um pouco. Beber alguma coisa.
Johny apontou para os ouvidos, abriu a boca, não emitiu nenhum som. Sorriu.
Ela entendeu. Seria muita ação e pouco papo. Aliás nenhum!
Teria muito pra contar para as amigas no dia seguinte. Johny foi fiel ao lema.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A Menina de Olhos Azuis


Ela tinha olhos azuis. Muito claros. Não parecia ter mais que dez anos. Mas, quanto a isso não podemos ter certeza. Sempre fui muito ruim em estimar a idade das pessoas. Jovens, criança, maduros, ou já na terceira idade, não importa. Sempre que tenho que dar um palpite, há uma grande chance de errar.
Nesse caso, porém, talvez não estivesse tão errado. Vamos dizer que estivesse entre nove e onze anos. Ainda criança. Seus olhos azuis, claros, muito claros, lhe davam um encanto especial. Os cabelos eram loiros, quase brancos. Não é muito poético, mas diria que eram da cor daquelas espigas de milho verde, quase brancas.
Olhou para mim como se me conhecesse. Estava sentada em um banco no Bosque do Papa. Sozinha. Perto dos brinquedos, ao lado das barras onde alguns jovens se alongavam. 
Eu estava começando minha caminhada. Mas, aquela visão me incomodou. Ao me olhar, sorrira de forma estranha, como se estivesse espantada em me ver. Suas pernas balançavam entre o assento e o gramado.
Comecei a caminhar no sentido anti-horário. Sempre faço isto. Me iludo fingindo que, a cada volta, no sentido antihorário, retorno um pouco no tempo. Assim, brinco de ficar mais jovem.
Ao término da primeira volta, a menina ainda estava lá. Me pareceu menor. Mas, não dei importância. Na segunda e terceira voltas, ela saíra do banco. Brincava no escorregador. Mas, na quarta volta, a vi tentando subir no banco. Estava bem menor, como se tivesse seis anos de idade. Não conseguia subir.
Será que eu estava fazendo o tempo voltar para trás? Olhei ao meu redor, havia um grupo de crianças brincando na gangorra e nos balanços. Pareciam-se com os jovens que se alongavam quando comecei minha caminhada.
Como um maluco, corri quatro voltas no sentido horário. Queria reverter o que havia feito com aqueles jovens e a menina de olhos azuis.
Acordei em uma cama de hospital. Tive a nítida impressão de ver no teto, rapidamente, a menina com olhos azuis claros e cabelos quase brancos. Tinha um sorriso maroto nos lábios. Fechei os olhos e tentei dormir mais um pouco. Ninguém me vira acordar. Quem sabe eu sonhasse com uma história menos inacreditável quando tivesse que relatar o que aconteceu comigo no Bosque do Papa. Quem é que acreditaria no que me aconteceu?

domingo, 10 de janeiro de 2016

Solidão e Esperança em Medianeras de Gustavo Taretto

A WEB, além de ser um avanço tecnológico do qual o cinema se apropria, tem sido também objeto presente na narrativa fílmica, caracterizando uma tendência do cinema contemporâneo. As redes sociais e os diferentes mecanismos de interconectividade permitidos pela web foram incorporados na trama de alguns filmes. Por exemplo, Mensagem para você, dirigido por Nora Ephron e lançado em 1999, é um filme no qual os dois personagens principais vividos por Meg Ryan e Tom Hanks se conhecem primeiro por meio da troca de mensagens pela WEB. Outro filme, mais recente que tem a WEB como parte integrante da narrativa é Rede Social que conta a história da criação do FACEBOOK. Esse filme foi lançado em 2010 com direção de David Fincher. Em 2011, Medianeras de Gustavo Taretto retorna ao uso da WEB como meio de conexão entre um homem e uma mulher jovens e solitários. Com uma estrutura narrativa muito parecida com a de Mensagem para Você, o filme de Taretto tem um ritmo mais acelerado e espirito crítico que o tornam muito superior ao de Nora Ephron que se caracteriza basicamente como uma comédia romântica.
O filme de Gustavo Taretto, lançado no Brasil em 2011, foi chamado de Medianeras: Buenos Aires na época do amor virtual. Estrelado por Javier Drolas e Pilar López de Ayala, Martin e Mariana, respectivamente o filme se passa em Buenos Aires e retrata o cotidiano solitário de dois jovens que não se conhecem, mas se comunicam pela WEB. A sinopse do filme conta:
Martin é um fóbico que está em vias de recuperação. Aos poucos vai saindo de sua reclusão em uma quitinete e abandonando seu vício pelo mundo virtual. Mariana, recém-separada, tem a cabeça tão bagunçada quanto o apartamento em que se refugia. Deveriam conhecer-se ou não? Como podem ser encontrar em uma cidade superpovoada e caótica como Buenos Aires? Medianeras (Paredes laterais). O mesmo que os separa é o mesmo que os une. (http://www.medianeras.com/historia.php).
O próprio diretor relata que Medianeras resultou de um conjunto de ideias que surgiram de suas observações e curiosidade por entender Buenos Aires e aos que vivem nestes dias. Para ele, Medianeras é uma fábula urbana, uma construção artificial e graciosa sobre a vida moderna. Com uma forte relação com a arquitetura, segundo Taretto, o filme foi construído em quatro pilares.
O primeiro pilar é uma reflexão sobre a Buenos Aires que vai sendo construíd apelos seus habitantes de forma caótica, imprevisível, contraditória, luminosa, empobrecida, hostil, mas ainda assim atraente.
O segundo pilar é a composto pela solidão urbana e neurose coletiva. Pessoas que conviem emprédios, no entanto, sentem-se sozinhas. Pessoas indiferentes com as demais que lotam um vagão de metrô. São fonte de inquietação uns para os outros.
O terceiro pilar, segundo Taretto, trata da incomunicabilidade. Apesar de tanta tecnologia cujo objetivo é nos conectar, mas falham nesse objetivo. As pessoas preferem fazer pedidos de entregas ao telefone ao invés de se reunir com amigos. Nossa vida é uma armadilha da modernidade que nos deixa cômodos e isolados.
Por fim, o quarto pilar é o dos encontros e desencontros. Para Taretto, é a busca do amor que é custoso de encontrar. É difícil encontrar a peça que se encaixe de modo a permitir que a vida se complete e funcione (http://www.medianeras.com/historia.php).
Nessa arquitetura baseada em quatro pilares, Taretto faz bom uso do espaço-tempo cinematográfico. O filme começa com uma narração superposta a uma série de fotografias de Buenos Aires. A história é narrada, após a apresentação das duas personagens centrais, em três momentos, baseados em estações do ano: um outono curto, um inverno longo, e a primavera enfim. O filme trata de forma bem humorada e delicada, as buscas típicas de jovens em nossa sociedade contemporânea, mas com ênfase na busca pelo outro, metaforicamente representada pela busca de Wally, em "Onde está Wally?"
Na mitologia grega encontra-se a estória da Caixa de Pandora. Júpiter andava às turras com Prometeu que havia modelado o primeiro homem de barro, além de ter dado aos humanos o acesso ao fogo. Assim, certo dia Júpiter pediu que Vulcano, junto com Minerva, sua mulher, criassem uma companhia para o homem. Os dois criaram Pandora, uma linda mulher, que era quase tão bela quanto a mais bela das deusas. Júpiter ficou muito satisfeito com a criação de Minerva e Vulcano. Em seguida a despachou para o reino dos mortais com um presente em sinal de seu apreço pelos humanos: uma caixa ricamente enfeitada com ouro e prata. Mas era um engodo. Júpiter avisou que Pandora não deveria abrir a caixa nunca.
Pandora e a caixa chegaram até Epimeteu, que era o irmão humano de Prometeu e este ficou impressionado com ambas. Levou Pandora e a caixa para seu quarto. Pandora adormeceu e sonhou que abrira a caixa e dela saíram somente coisas belas. Quando acordou não resistiu, abriu a caixa. Da caixa escaparam a Doença, a Gula, a Inveja, a Avareza, a Arrogância, a Crueldade, o Egoísmo. Ou seja, Júpiter usou Pandora para castigar os humanos enviando todas as maldades e vilanias que tornam nossa vida desagradável. Mas nem tudo estava perdido, em certo momento Pandora conseguiu fechar novamente a caixa e pensou que nada havia sobrado dentro dela. Olhando mais uma vez viu um rosto muito belo e jovem, que Pandora descobriu ser a Esperança.
Medianeras, como se disse acima, retrata dois jovens, Mariana e Martin, que não se conhecem pessoalmente, cada um com sua vida solitária, até o encontro entre eles. O retrato que Taretto faz da vida em Buenos Aires lembra um pouco a Caixa de Pandora. Uma arquitetura opressora que leva as pessoas a se isolarem cada vez mais. A falta de comunicação é uma constante. Um ritmo acelerado de vida impede que as pessoas tenham chance de efetivamente se encontrar. Mariana e Martin representam a juventude de nossa sociedade contemporânea que parece não ter possibilidade de construir um futuro profissional e afetivo. O contato humano é intermediado por artefatos tecnológicos que dão uma falsa impressão de proximidade. Estamos sozinhos na multidão. Fobias e psicoses estão presentes na vida desses jovens. Isso lembra as maldades e vilanias que escaparam da Caixa de Pandora e continuam a atormentar os humanos.
Mas, há uma esperança. Mariana continua a sua busca da felicidade. A esperança não escapou da Caixa de Pandora. Mariana continua buscando Wally na cidade. No dia em que ambos se rebelam e abrem janelas para o mundo nas paredes laterais de seus prédios, as medianeras, é como se os dois começassem a encontrar a porta de saída de seus mundos reclusos. Mariana olha para a rua e enxerga Wally (Martin). Corre em disparada para alcançá-lo. Na pressa, deixa para trás sua fobia de elevadores. A busca da felicidade, inspirada na esperança, não lhe dá tempo de temer. A solidão não é inescapável!

Craca de Leite

Tem coisas que grudam na gente. São que nem craca de leite que vai se pegando na vasilha onde é fervido. Lava-se, lava-se, lava-se... Quando você pensa que conseguiu tirar tudo, enxágua a vasilha e pronto! Que nada! Ainda tem vestígio dela. Mais umas esfregadas. Pode ser que agora tenha saído, mas se a vista falha, alguma marquinha ficou.

Nossa vida é longa. Graças aos avanços da medicina, cada vez mais longa. Nascemos enrugados, mas, aparentemente, sem marcas definitivas. Logo depois do parto, após o primeiro banho, estamos limpinhos. Prontos para enfrentar os anos que vêm pela frente. De pele e mente preparadas para aquilo que o destino vai tentar grudar em nós. No meu caso, me aproximo dos 58 anos. Parece muito, mas ainda não me dei por satisfeito. Apesar de tantas cracas que tive que ir limpando, areando da vida, quero mais. Preciso de mais!

Ontem recebi pelo Facebook um link que me levou aos meus vinte anos. Uma viagem no tempo com a ajuda da memória coletiva. Quem me conhece, sabe que desde a adolescência, ir ao cinema faz parte de meu modo de entender o mundo. Ainda criança, troquei as idas dominicais à igreja pelas matinês do Cine Augustus da Londrina do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado. Hoje, depois de tantos anos, me dou conta que troquei uma fantasia por outra. A religião não me motivava, mas as idas ao cinema mexiam comigo. Me faziam pensar.

Muitas marcas surgiram nas salas escuras dos cinemas de minha vida. O primeiro exercício de autonomia – ainda criança ir sozinho ao cinema; a primeira namorada, que depois se tornou minha esposa, Telma, mãe de Paloma e Fernanda. Hoje somos bons amigos. Ver 1900, de Bertolucci, e depois refletir sobre o filme para escrever um trabalho da disciplina de sociologia. Terezinha Giovenazzi, irmã do ator Edney Giovenazzi, foi a professora que causou esta marca! Me dou conta hoje que deveria ter agradecido a ela a tarefa tão inspiradora! Uma boa craca que ajudou a tornar o cinema parte de meu modo de compreender o mundo e a vida.

O primeiro filme pornô, depois que acabou a censura no Brasil. O desejo por Dina Sfat (Macunaíma), Lilian Lemertz (Lição de Amor) e Helena Ramos (Mulher Objeto) que brilhavam nos filmes brasileiros de minha juventude! Teve também a Vera Fischer (Amor, Estranho Amor), mas dessa a Sara não gosta muito que eu fale. Não sei por que? As emoções dos filmes de Chaplin, as lágrimas inevitáveis em alguns dramalhões. A raiva com algumas porcarias.

Se você ainda não adivinhou, o link que recebi tem a ver com o cinema. É claro! É a digitalização das edições da Revista Cinema em CloseUp, publicada entre 1975 e 1979 (http://portalbrasileirodecinema.com.br/cinemaemclose…/indice). Documento histórico de valor inestimável que me fez lembrar muitas idas ao cinema. Esse é um tipo de craca que não quis nunca limpar! Muitos dos filmes que estão retratados nas edições da Cinema em Closeup fazem parte de minha trajetória pelo mundo das imagens e significados. Algum amigo mais sacana, vai dizer que chegaram a deixar calos nas mãos! Mas, não é só por isso...

Comecei esse texto, com um tom sombrio! Parecia que ia falar de coisas negativas, pois afinal, craca tem um som meio ruim, agressivo, não? Mas, as cracas que machucam, que doem, acabaram ficando de lado neste texto. Elas existem, mas estão em algum cantinho onde passam desapercebidas. Me ajudaram a compreender o mundo, mas deixa elas pra lá! O melhor é poder lembrar de cracas que, apesar dos esfregões da vida, conseguiram deixar sua boa marca na minha história. Vida longa a todos!

Quando Chorei ao Ver a Beleza

Beleza é algo indefinível para mim. Se alguém me pedisse para descrever o que é o belo, creio que não seria capaz de fazê-lo. Nas mitologias teve deuses e deusas. É muito provável que já tenha sido objeto de definição pelos filósofos. Mas, há algumas coisas que não me interessam saber como a Filosofia as explica. A felicidade, a tristeza, o desejo, o prazer e a dor não física são algumas delas. São coisas que só fazem sentido ao serem sentidas, qualquer discurso fica muito aquém do que sinto. Assim é com a beleza. Não sei dizer o que é, mas tenho certeza sobre o que é, quando se revela para mim. Basta ser sentida. Não precisa de explicação.

Ontem fui ao cinema. O filme que assisti foi 8½ de Fellini, produção de 1963, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Filmado totalmente em preto e branco, o filme começa com um extemporâneo engarrafamento de trânsito em que vemos um homem desesperado, tentando sair do interior de um carro. Não consigo imaginar um congestionamento de trânsito acontecendo 50 anos atrás. Será que já existiam?

É muito provável que já tenha assistido esse filme no passado. Os momentos iniciais do filme me pareciam familiares. Mas, não me lembrava da trama toda. Marcello Mastroianni vive o personagem principal, um famoso diretor de cinema, que está envolvido na realização de mais um filme, em meio a uma crise criativa. A maior parte da história ocorre em uma estação de águas, e ao longo da trama, somos expostos a flash-backs e sonhos do personagem principal. É em 8½ que Fellini nos traz Saraghina, uma memorável prostituta gorda que vai surgir nas cenas de um flashback sobre a infância do protagonista. Ela é interpretada por Eddra Gale.

Logo nos primeiros momentos fui sentindo um encantamento com as imagens que iam se desenrolando à minha frente. Eram incrivelmente belas. Em determinado momento, na estação de águas, surge um adivinho acompanhado de uma velha senhora que é capaz de dizer os pensamentos das pessoas. Ao verem que ela sempre acerta, muitos se levantam e começam a ir embora, provavelmente fugindo do possível constrangimento da revelação de algum pensamento inadequado. Mas, o personagem de Mastroianni, Guido, se dispõe a passar pela experiência. A velha senhora, não consegue explicar o pensamento de Guido, mas escreve uma frase que Guido confirma que era o que pensara.

Neste momento, um flash-back nos leva à infância de Guido. É nesse trecho do filme que surgirá, depois de algum tempo, a cena de Saraghina com os meninos. Incrivelmente tocante.  Com o desenrolar desse flash-back, que não tinha nada de especialmente emocionante, sinto meus olhos marejarem. A Beleza do filme que me enfeitiçara desde os primeiros momentos, parecia causar algo dentro de mim, que já não podia ficar preso dento de meu corpo. Foi na forma de lágrimas que meu corpo reagiu a essa poderosa ideia. Não sei descrever o que vi, mas tenho certeza que foi a Beleza.

Mas, parece que esse é um fim de semana em que a Beleza teima em se mostrar. Ontem à noite comecei a ler A Flecha de Ouro de Joseph Conrad, uma grande aventura que, a se acreditar, na introdução é inspirado em uma história real vivida pelo autor no fim dos anos 70 do século XIX. Conrad é o autor também de Coração das Trevas que foi adaptado para o cinema por Francis Ford Coppola no filme Apocalipse Now, em 1979, com Marlon Brando como protagonista. Mas, voltando à Flecha de Ouro, ao despertar hoje pela manhã dou continuidade à leitura e descubro que Doña Rita, uma personagem central nessa trama que começa a me prender, tinha sido uma mulher muito bela. Passeando na companhia de seu descobridor, a cavalo, pelo Bois de Bologne em Paris, eles encontram um velho escultor, Doyen, que logo após as primeiras palavras pede que Doña Rita olhe bem para os seus olhos. Os olhos do velho escultor se encheram de lágrimas. 

Mais uma vez, parece que a Beleza causara o extravasamento da emoção em forma de lágrimas. Assim como o velho Doyen, só posso dizer que vi a Beleza ontem. Não me peça para explicá-la. Quando você a ver saberá!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

No Hospital

Enquanto uns geram cálculos, outros geram vida. Ao meu lado, Débora, uma jovem mulher, é informada que será mãe. Ela diz que será o segundo. Depois do susto, um sorriso! O acaso me privilegia com momentos únicos. Foi um sorriso contagiante!

Coração Passageiro

No vôo havia um coração a mais. De Londrina para Curitiba, além de passageiros e tripulação, viajava solitário um coração. Ia em busca de um novo corpo. Já tinha cumprido uma missão e destinava-se para outra. Não sei quanto durou a primeira. Mas que seja longeva a segunda!
Graças a esse passageiro singular nosso vôo foi mais rápido do que o usual. Vou chegar mais cedo em casa. 
Veja só coração passageiro , sua viagem trouxe pequenas alegrias a mais de uma centena de passageiros que compartilharam o privilégio de sua companhia. Muito maior será a alegria que você causará quando chegar a seu destino.
Pois é, fiquei pensando nisso. Na vida, nem sempre conseguimos causar um impacto tão grande quanto o seu. Mas, me conforto ao pensar que ao longo dos anos, talvez, tenha ajudado alguns a chegarem mais cedo em casa. Pequenas alegrias! Para as grandes ainda não estou preparado. Será que estarei um dia?
Foi só uma pergunta retórica. A resposta não importa. O que importa é a jornada. Um longo caminho de descobertas. Que meu coração permaneça junto a mim por muito tempo! Ele não poderá servir a outro. Judiei muito dele! Se não me deixar será uma grande alegria.

A Guardiã da Memória e o Deus do Tempo

(Uma homenagem a minha mãe)
Em 17 de janeiro de 2008, Silvana Leão escreveu uma reportagem na Folha de Londrina. Nela, relatou o trabalho de registro da história familiar e da cidade onde meus irmãos e eu nascemos, Londrina, que minha mãe Kilda fez ao longo de mais de 40 anos. Silvana Leão, deu à reportagem o título "Kilda, uma guardiã da memória".
Nesta reportagem, a jornalista relata o trabalho que minha mãe teve de montar álbuns com registros jornalísticos e fotográficos de inúmeros momentos da vida de cada um dos filhos, de seus ancestrais e das famílias Prado e Gimenez. Foram dezenas de registros personalizados, em formato de biografias, e inúmeros álbuns com recortes de jornais. U m dos mais significativos foi o que fez sobre a história do Colégio Londrinense, do qual fez parte da primeira turma de ginásio. Neste colégio, meus irmãos e eu também fizemos nossa formação escolar nos antigos primário e ginásio.
Mas, o que Silvana Leão não podia imaginar é que, ao dar a uma simples mortal o título de guardiã da memória estava desafiando o deus do tempo, o velho Cronos. Este, aparentemente adormecido, ficou furioso ao ver a ousadia de uma mera humana querer usurpar suas funções. As notícias sobre a repercussão da reportagem chegaram rápido, levadas pelos ventos, a comando de Éolo. Cronos ficou furioso e, vingativo como todos os deuses, disse:
_ Essa atrevida não perde pro esperar! Não tenho pressa, mas um dia ela vai ver o que lhe está reservado.
Realmente, Cronos, assim como todos os deuses, é imortal, portanto não tem pressa, e impiedoso. Ficou aguardando o momento em que poderia agir. Esse dia demorou quase sete anos e meio. O que para nós mortais parece muito, para Cronos foi como um segundo.
Kilda, em agosto desse ano, adoeceu. Passou quase trinta dias em uma UTI hospitalar. Foi o momento para o vingativo deus do tempo preparar sua vingança. A cada dia na UTI, Kilda parecia perder sua memória. Quando finalmente conseguiu se restabelecer, parecia que havia esquecido tudo. A guardiã da memória havia perdido a sua memória?
Não! Cronos é um deus mais sofisticado. Esta vingança seria muito simples. Ele queria algo mais impactante: dar uma lição aos humanos:
_ Ninguém pode querer ser guardião ou guardiã da memória!
Vivia exclamando isso por todos os cantos do Olimpo.
Cronos foi ardiloso. Enquanto Kilda estava semiconsciente na UTI, ele fez o seu jogo de cartas. As memórias de Kilda, assim como as nossas, ficam guardadas em fichas que se parecem com cartas de baralho. Mas, nosso baralho mental tem muito mais que quatro naipes. São quase infinitos, pois há um naipe para cada tipo de emoção que vivenciamos. A cada experiência vivida, vamos acumulando cartas com o mesmo naipe em cantos distintos de nosso cérebro.
Cronos sempre soube disso. Poderoso, aproveitou-se do descuido de Kilda e embaralhou todas as cartas de seu cérebro. Quando ela saiu da UTI, já não tinha mais como saber os naipes corretos de cada vivência em seu 89 anos. Começou a misturar tudo!
Mas, Cronos foi tapeado!
Kilda, uma mulher precavida, ao ver o título que recebera naquele dia em 2008, lembrou-se de seus estudos da mitologia grega. Desde aquele dia, sabia que alguma coisa poderia lhe acontecer. Temia a ira de Cronos. Se preparou para ela.
Nesses sete anos e meio, sempre que podia, me contava muitas histórias. E, sempre as repetia. Muitas e muitas vezes me contou histórias que já tinha me narrado em outras ocasiões. Eu não entendia por que ela assim o fazia.
Mas, agora eu sei. Hoje, ela me contou algumas histórias, mas graças às artimanhas de Cronos, elas saíram de seus lábios totalmente embaralhadas.Fragmentos de vida, de diferentes momentos, misturados como se tivessem ocorridos ao mesmo tempo. Como se todos tivessem o mesmo naipe.
Eu, pacientemente fui separando os fragmentos e juntando aqueles que tinham os mesmos naipes. Era como se montasse alguns quebra-cabeças ao mesmo tempo! Os fragmentos, com seus naipes corretos, estão em minha memória.
Me dei conta do que minha mãe fizera. Ao longo dos últimos anos foi me preparando para continuar o embate com Cronos. Cronos, essa criação humana, pensa que é mais ardilosa do que nós humanos. Dona Kilda deu uma lição a ele. A criatura jamais é mais poderosa que aqueles que a criaram.

O GPS do Sexo

(Uma pequena distopia enquanto viajo de Florianópolis a Curitiba)
Em um pequeno planeta, em alguma parte da Via Láctea, nas proximidades de uma estrela muito brilhante, vive um povo que perdeu a voz.
Há não muito tempo, eram mais de seis bilhões de seres vivos, que falavam centenas de línguas, distribuídos por quase o mesmo número de tribos.
No meio dessa confusão de vozes, ao longo dos séculos, foram criando formas de comunicação entre si e entre as tribos. São seres muito criativos.
A capacidade da fala que a voz permitia permeava muitos hábitos desse povo. Entre estes, havia um que era muito apreciado: o sexo. Era muito praticado por todos desde muito cedo em suas vidas. No entanto, chegava uma certa idade que se tornava uma prática mais difícil, quase impossível, para alguns desses seres, os chamados "machos". Para outros seres, as chamadas "fêmeas", o problema também ocorria, embora fosse menos vísivel.
Felizmente, a evolução científica e tecnológica desse povo era fantástica. Fazia coisas chamadas de "inovação" que até Deus duvidava!
Os cientistas acabaram inventando uma pílula azul que ingerida permitia a prática do sexo para os machos em uma idade bem avançada. Ela resolvia um problema mecânico muito vísivel. Parece que tinha a ver com a dinâmica de um fluído interno. Mas, não estou bem certo. Para as fêmeas também havia inovações que facilitavam a prática do sexo.
Independente dessas inovações, para o sexo acontecer era necessária outra prática: a conversa. Às vezes longa, muito longa! Outras vezes breve, brevíssima até! Tipo:
_ Vamos?
_ Sim. No meu ou no seu?
O sexo, precedido da conversa, acontecia entre fêmeas, entre machos e entre machos e fêmeas. Podia ser praticado solitariamente, mas isso era mais comuns entre os seres mais jovens. Tinha várias funções: manifestação de amor; saciedade de desejo; passa-tempo; aquecer no frio; entre outros. Quando feito entre uma fêmea e um macho podia ter outra função, planejada ou não, a reprodução. Depois de trinta e seis semanas, um ou mais seres saíam do ventre das fêmeas. Eram um povo feliz!
Houve um tempo que duas inovações surgiram quase que ao mesmo tempo: um equipamento e uma nova forma de comunicação. Eram o smartphone e as redes sociais. Todo mundo tinha um smartphone que era usado para se comunicar nas redes sociais. Estas também eram usadas em outro equipamento, o computador. Mas, o smartphone era o preferido, pois era bem mais portátil.
Nas redes sociais, fêmeas e machos podiam se comunicar muito facilmente. Não precisavam da voz. Usavam dedos para digitar mensagens. No começo isto era feito para se comunicar com seres que estavam muito distantes. Mas, o uso dos smartphones e redes sociais era tão prazeiroso que os seres desse planeta passaram a usá-los mesmo com outros que estavam perto, por exemplo, em uma mesa de bar. Aliás ir a um bar era outra prática que usava muito a voz. Às vezes, juntava-se à conversa, nos momentos que antecediam o sexo.
As inovações eram vistas por esse povo como algo que só trazia resultados positivos. Ledo engano! No caso do smartphone e das redes sociais, as coisas não acabaram bem.
Aos poucos, com o passar dos anos, esse povo foi perdendo o dom da fala que permitia a prática da conversa. Daí foi um pulo para o sumiço da voz.
Mas, esse povo é criativo! Os cientistas e engenheiros estão fazendo adaptações em uma inovação que ajuda esse povo a se deslocar nas ruas e estradas do planeta. É um tal de GPS. Ele vai dando instruções, por meio de uma voz sem corpo, como chegar de um ponto de partida a qualquer destino. A voz sem corpo pode soar como uma fêmea ou um macho. Genial!
A adaptação poderá ser usada nos smartphones. Por enquanto só conseguiram reproduzir conversas bem elementares, do tipo:
_ Vamos?
_ Sim. No meu ou no seu?
É pouco ainda. Mas já é uma esperança para resolver a queda na população desses seres.
Será que escaparão da extinção?

A Gorda do Tarô de Marselha

Não é o que você está pensando. Não me refiro a uma carta de tarô. Aliás, nem sei se no tarô de Marselha há uma gorda. Mas, se houver, deve ser a carta do descaminho, do desencontro, talvez, até, da perdição. Ao final dessa história você vai entender. Espero!
Eu e mais cinco ou seis passsageiros entramos no Cabral-Cic no tubo Comendador Fontana. À minha frente uma senhora quase obesa. Alguém lhe ofereceu o lugar, em um dos bancos amarelos que são destinados a idosos, passageiros com crianças no colo, deficientes e obesos. Ela preferiu sentar-se na poltrona destinada aos acompanhantes de cadeirantes que, também, estava vaga. Como ninguém mais quis sentar-se, ocupei o banco amarelo. Embora, tecnicamente, ainda não seja idoso pois tenho mais dois anos antes de chegar a esse status.
Meu destino era a UTFPR na esquina da Desembargador Westphalen com a Sete de Setembro. Ia entregar exemplares de meu livro para Gilberto e Vanessa, professores que apoiaram meu projeto de crowdfunding. No meio do caminho, sinto que sou observado. Sabe aquela sensação de se sentir olhado, mesmo estando com a cabeça baixa? Pois é. Essa mesma! Levanto os olhos e vejo que a gorda senhora me encarava. Os dois desviamos o olhar praticamente ao mesmo tempo. Depois volto a mirá-la. Ela já não me olha mais.
Deve ter pouco mais de 40 anos, mais de 90 quilos, cabelos não muito longos, um pouco grisalhos, presos por um rabo de cavalo e um arco de veludo preto. Nas orelhas carregava um par de brincos vermelhos em formato de pimenta. Três ou quatro centímetros pendurados nos lóbulos um pouco esticados. Seria o peso das peças? Na mão direita, cinco pulseiras. Quatro de cristais baratos, uma de cada cor: transparente, verde. amarela e marrom. A quinta era cheia de pequenas pimentas vermelhas iguais aos brincos. Na mão direita um livro que lia: O Tarô de Marselha.
Não pude deixar de me lembrar de algo que já comentei por aqui. Como Curitiba parece ser um espaço propício às artes adivinhatórias. Se você caminhar pelo centro, verá muitos cartazetes pregados em postes, muros e paredes. 
Será que a gorda do Tarô de Marselha é uma profissional da tarologia? Creio que não, carregava pendurado no pescoço um crachá de uma rede de comércio varejista. Creio que se dirigia para o emprego. Deveria ser uma aprendiz da arte.
Chega meu ponto de descida: Praça rui Barbosa. Em uma pequena caminhada chegaria a meu destino: a Agência de Inovação da UTFPR. Ao chegar na esquina da quadra, onde fica o campus da UTFPR, ao invés de caminhar para a entrada da Sete de Setembro, decido continuar pela Desembargador Westphalen. Em minha imaginação, havia entradas para o campus nos quatro lados do quadrilátero que a UTFPR ocupa. Me enganei. Viro na Silva Jardim, no meio da quadra, entrada fechada. Viro na Marechal Floriano, entrada fechada. Parecia um perdido! Viro na Sete de Setembro e chego na entrada que estava a menos de vinte metros da primeira esquina onde comecei meu périplo.
Ao me informar no guichê com um atendente, descubro que a Agência de Inovação da UTFPR fica na Desembargador Westphalen. Havia passado por ela, vindo do tubo Praça Rui Barbosa. Nem percebi! Será que a gorda do Tarô de Marselha teve algo a ver com isso?
Nessa hora, lembrei-me do que meu pai dizia, ou será que era meu avô:
No creo en las brujas pero que las hay, las hay!

Duas Lágrimas

No ônibus a caminho de Londrina. É um parador! De Curitiba, já passou por Ponta Grossa, Imbaú e Ortigueira. Não sei qual será a próxima parada.
Minha leitura de bordo já concluí. No sistema de vídeo interno, um filme que já assisti. Sono já se foi após uma hora de viagem entre Ponta Grossa e Imbaú.
Em Ortigueira, ouço a conversa de um passageiro sentado em algum lugar mais ao fundo. Fala ao celular. Ao final, se despedindo, descubro quem está no outro lado:
_ Filha, dê um beijo em sua mãe. Diga que eu amo ela. Ela pode acreditar.
A frase de despedida me sugere um casal em crise. Dá sentido à primeira fala dele:
_ Em Imbaú o celular estava sem sinal. Aqui acabou de tocar. Vou tentar ver uma placa para saber onde estou.
_ Em Ortigueira. Alguém diz a ele.
Imagino que tenha sido cobrado por não atender o telefone antes. Deve ter sido a mulher, pois durante o diálogo houve troca de interlocutor. Imagino a cena. Mulher irritada passa o telefone para a filha:
_.Tô. Conversa com seu pai. Esse traste!
O tom de voz desse passageiro, cujo rosto não enxergo, desperta minha emoção. Esta se faz acompanhar da imaginação. Sinto tristeza na forma como disse as últimas palavras.
Enxergo uma lágrima correr pela face do pai. Do outro lado da linha - sei que celular não tem linha, mas a poesia exige essa frase - outra lágrima deixa sua marca em um rosto de menina. Uma porta bate com força. Se ouve um palavrão.

O Que Nós Somos?

Esta pergunta me foi feita há vinte e quatro anos atrás. Veio de Paloma essa indagação que, a princípio, me assustou. Naqueles dias já praticávamos nossa conversação bilingue. Paloma e Fernanda falavam em inglês e eu respondia em português. As duas foram primeiramente alfabetizadas em inglês. Me indagou ela:
_ Daddy, what are we?
Paloma, então, se aproximava dos seis anos de idade e havíamos chegado de sua escola onde fora buscá-la. Estávamos na Universidade de Lancaster onde morávamos. Telma estava fazendo seu doutoramento nesta universidade. Eu fazia o meu na Universidade de Manchester. Fernanda, um ano mais nova, frequentava a mesma escola em Galgate, pequena vila ao sul da cidade. Buscá-las na escola era algo que fazia quando não estava em Manchester. Muitas vezes, ia de manhã para a Manchester Business School e voltava à noite. Mas, não precisava ir todos os dias.
Passado o susto, perguntei o que ela queria saber. Não era uma questão existencial, como eu temia. Era mais direta, mas não mais simples.
A escola que Fernanda e Paloma frequentavam recebia muitas crianças estrangeiras. Eram os filhos e filhas dos estudantes que vinham de outros países estudar na universidade. A escola era vinculada à igreja anglicana, mas tinha uma abordagem eclética nos estudos de religião já que recebia crianças cujos pais tinham as mais diversas crenças.
Paloma queria, simplesmente, saber qual era nossa religião. Ela tinha amigas anglicanas, muçulmanas, católicas, judias, protestantes e budistas. É provável que tenha sido questionada sobre o que éramos.
Mais aliviado, lá fui eu explicar a uma menina com pouco mais de cinco anos porque não tínhamos uma religião. Me lembro que disse algo assim:
_ Filha, sua mãe e eu não temos uma religião. Não acreditamos na existência de deus. Mas, quando você crescer, você poderá fazer sua escolha. Nós não podemos fazer essa escolha para você.
Não sei como Paloma lidou com isso na escola. Ela nunca mais tocou no assunto.
Para mim, ficou a esperança de que ela tenha aprendido naquela escola como é importante conhecer o diverso e respeitá-lo. Cada uma daquelas crianças era adorável apenas por ser criança. Não importava a crença religiosa de seus pais. Me lembro de um convívio harmonioso daquelas crianças que volta e meia estavam em nossa casa.
Quanto a mim, acho que ela e Fernanda descobriram, ao longo dos anos, que além de tentar responder a suas dúvidas, estou sempre torcendo por suas escolhas na vida. É para isso que servem os pais.
E, sem nenhuma surpresa, acabei me tornando professor. Respondedor de perguntas que respeita as escolhas de cada estudante. Simples assim.
Quanto ao que nós somos, creio que você tem uma resposta própria

Viajar de Ônibus Estimula a Escrita?

Mais uma vez, aproveito o tempo em uma viagem de ônibus para praticar a escrita. Vício? É provável que sim, mas creio que seja um vício virtuoso. Um virtício! Oxímoro cujo único mal pode ser uma futura lesão por esforço repetitivo, mas que, entre outros, traz o benefício do exercício da razão temperada pela emoção.
Viajo para Florianópolis. Além de reencontrar uma amiga que não vejo há demasiado tempo, Maria José Barbosa de Souza, participarei de uma sessão de defesa pública de dissertação de mestrado na UNIVALI. Junção do útil ao agradável!
O momento sugere uma retrospectiva e manifesto de intenções. 2015 se aproxima do fim. Mas, resisto à tentação da mesmice. Do que falar então?
Na semana passada encerrei uma disciplina no doutorado em administração da UFPR. Cinco jovens, uma moça e quatro rapazes (Thalita OrsiolliRodrigo Morais SilvaLuiz Aurélio VirtuosoEduardo De Carli ePaulo Preto), compartilharam seu tempo de estudo comigo na exploração da literatura sobre empreendedorismo, inovação e sustentabilidade. Ao longo de 15 encontros fomos dialogando sobre as leituras de cada um, em encontros em que a liberdade e a ordem se fizeram sempre presentes. Mais um oxímoro? Libordem!
Foi Rodrigo quem manifestou essa impressão em uma mensagem de correio eletrônico. Faço uso dela para cunhar esse neologismo.
No meio do caminho, emerge a ideia de um texto: vamos avaliar o que a academia brasileira publicou sobre empreendedorismo sustentável?
Chegamos ao último encontro com o texto quase pronto. Uma semana de interaçøes virtuais, coletivamente, leva à finalização do texto. Imediatamente submetido a uma revista internacional que aceita textos em português com seis autores! Imagino que esta notícia deixe as chefias satisfeitas!
Mas, essa satisfação é a que menos me interessa. Quero falar de outra. Uma que se aproxima, já que estudamos empreendedorismo, da ideia de necessidade de realização de McClelland.
A escrita para mim é uma necessidade de realização. Escrevo porque quero, não porque mandam. Escrevo porque preciso. Não de pontos no Qualis, mas da emoção da busca da beleza no conhecimento. Escrevo porque faz parte de meu ser!
Enfim, no meio da viagem, torno público meu agradecimento emocionado a esses jovens que se juntaram a mim nessa jornada maravilhosa da leitura, reflexão e escrita. Um presente de Natal inesquecível.

Um Galho

Foi ontem de tarde. Caminhava em busca de abrigo, pois a chuva se anunciava como só ela se anuncia. Vinha acompanhada do vento. Do mormaço também. Seria abrupta e curta. Chuva de verão ao final da primavera. Apressada! Eu também.
De repente um golpe na testa. Veio de cima. Silencioso. Mas, rápido como um raio. Entre tantos lugares, eu tinha que estar ali naquele momento. Atingido por um galho de árvore. Não grande, ainda bem. Veloz, deixou sua marca na testa: pequeno arranhão.
Em casa, ouço um conselho:
_ Você precisa tomar cuidado.
Como segui-lo?
Andar pela rua olhando para cima? Talvez uma benzedeira! Ou melhor, uma cartomante. Curitiba parece ser um bom mercado para adivinhações. Me impressiona a quantidade de cartazes que vejo em postes e muros. Será que alguma poderá me indicar caminhos seguros? Sem galhos sorrateiros!

Um Conto de Natal

Natal acordou pela manhã. Eram quase sete horas. Um pouco assustado, pensou que se atrasara. Mas, lembrou-se que não tinha que ir para o trabalho. Era seu dia de folga. Era folga pra quase todo mundo, mesmos os não cristãos. Era dia de Natal.
Quando era criança, ele não entendia direito por que tinha um dia do ano que era dele. Os pais eram ateus ortodoxos. Não aceitavam a ideia de celebrar um dia cristão. Era uma data sem sentido para eles. Além do mais, criticavam muito os seus vizinhos do pequeno vilarejo, todos cristãos, que transformaram a festa religiosa em uma data comercial sem igual.
Era a época do ano em que o comércio mais faturava. Haviam estabelecido o dia de Natal como um dia em que todos se presenteavam. Nesses dias, mesmo os mais pessimistas no comércio, em épocas de crise, botavam fé, não no sentido religioso, de que as vendas seriam melhores do que no ano anterior. Eram sempre melhores!
Mas voltando ao Natal, na sua infância, os pais tentaram deixá-lo fora dessas festividades. Quando ele chegava em casa falando de Natal, os pais diziam:
_ Seu dia está chegando, homenzinho. Vamos ficar em casa só nos três. Faremos tudo que você quiser no dia do Natal.
E não saíam durante este dia. Tentavam evitar que Natal se contagiasse com o clima comercial, quer dizer natalino daqueles dias.
Natal achava estranho não poder sair de casa naqueles dias. Mas, na companhia dos pais, em meio a tantas brincadeiras, o tempo voava e o dia do Natal era muito feliz.
Seus pais conseguiram fazer isso durante algum tempo. Natal foi crescendo e teve que ir para a escola. Nesse ano, quase ao final das aulas, a professora fez uma atividade em sala sobre o dia de Natal. Natal se espantou:
_ Nossa professora, meus pais lhe contaram sobre meu dia?
Ele ficou transtornado quando, no meio das risadas de todos, a professora lhe deu uma bronca:
_ Não é o seu dia engraçadinho! Vai lá pro canto e fica de castigo.
Quando voltou para casa, Natal chorando muito contou o que acontecera com ele. Os pais se explicaram. Natal passou a exigir que os pais lhe recompensassem pelos presentes não dados. A dor do filho foi tão intensa que os pais tiveram um colapso mental e foram internados em um hospício pelo resto da vida.
Natal foi viver no orfanato das irmãs de caridade. Lá ficou até os 18 anos, quando um carpinteiro disse para as irmãs que precisava de um aprendiz. As irmãs pensaram que já estava na hora de Natal aprender um ofício.
O carpinteiro se chamava José e sua mulher Maria. Foi no dia de Natal, que Natal se mudou para a casa de Maria e José. Lá aprendeu seu ofício e em gratidão pela acolhida que teve no orfanato, ele passou a distribuir brinquedos de madeira para as crianças do orfanato no dia de Natal. No meio da tarde, ele chegava com um saco bem repleto de carrinhos e bonecos de madeira e, batendo à porta, gritava:
_ Hoje é o dia do Natal!
Ninguém entendia porque ele não falava hoje é o dia de Natal.
Só eu. E agora você.

Memórias: sobre Cachorros e Uma Beira de Rio

Algumas memórias são recorrentes. Contudo, com o passar do tempo parecem que elas vão esvanecendo. A imagem que me ocorre é que elas parecem estar armazenadas em cartões parecidos com aqueles que são usados em testes de visão para detectar daltonismo. Ao longo dos dias e anos, elas vão se misturando com os pontos coloridos de todas as lembranças. Se tornam contornos cada vez mais dificéis de visualizar em uma miríade de pontos de cores da vida. Parece que vou desenvolvendo um daltonismo das lembranças, em que elas além de se esconderem aos poucos, também se parecem com sonhos. Terão acontecido mesmo? Qualquer que seja a resposta, sonho ou lembrança, me constituem enquanto humano. São inescapáveis, mesmo quando borradas.
Nesses dias, tenho lembrado dos cães que povoaram minha infância e adolescência. Foram muitos, mas são dois que ainda se sobressaem com mais nitidez em meus cartões de memória: Pipoca e Fox. Nenhum dos dois com raças claramente definidas. Mestiços que deixaram histórias.
O primeiro, Pipoca, era um cãozinho pequeno, branco com manchas marrons muito claras. Tinha um defeito no lábio inferior que passava a ideia de estar sempre sorrindo. Os dentes, sempre à mostra, não transmitiam a ideia do rosnar agressivo. Pelo contrário, era um sorriso meio torto. Às vezes parecia até irônico.
Tenho duas memórias do Pipoca. Adorava balas e antes de atravessar a rua olhava para os dois lados. Morávamos, meus pais, irmãos e eu, na rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez que ficava no número 1120, na esquina com Goiás. Todo dia, Pipoca fazia seu ritual de atravessar a rua com segurança, entrava no supermercado e ficava pulando à beira de um dos caixas, até que alguma das moças lhe desse uma bala. Adorava as balas Rin-tin-tin! Mas, um dia errou o cálculo, ou se distraiu atravessando a rua e foi atropelado. Nunca mais pode saborear as balas Rin-tin-tin.
Fox, ao contrário, era um cachorro maior e mais agressivo. Não ia até o supermercado. FIcava no quintal de nossa casa, que em uma das laterais tinha uma rampa não muio íngreme, calçada, com uns quinze metros de comprimento que levava do portão até a garagem. O portão ficava sempre fechado. Mas, de vez em quando, alguém saía com o carro e esquecia o portão aberto.
Não poucas vezes, quando o portão estava aberto, Dona Ana estava indo para o supermercado com seu pequinês. Nesse momento, Fox saía em disparada da garagem e agarrava o pequinês pela nuca e o chacoalhava com muita força. Era um caçador! Nesses momentos, no meio da gritaria, eu, que era um dos poucos que Fox respeitava, corria até a cena e tinha que bater muito nele para que soltasse a presa. Um dia meu pai deu Fox para o bananeiro que o levou para o sítio. Fox escapou e exterminou as aves de um galinheiro vizinho. Seu fim não foi muito agradável!
Por fim, chego ao rio Tibagi que vive em minha memória como uma parede d'água escura, quase marrom. Me lembro que estava com alguns de meus tios maternos que foram pescar à beira do Tibagi que fica não muito distante de Londrina. Havia outras crianças, provavelmente meus irmãos e primos. De repente, passando por meus tios, escorrego na beira do Tibagi e vou para o fundo do rio. Me lembro de ter uma visão turva e úmida. Logo depois, um dos meus tios, que na minha memória foi o tio João, pulou atrás de mim e me tirou da água. Terá sido um sonho?
Eu acho que não, mas uma vez perguntei a meus tios, e ninguém se lembrou. Mas, é uma lembrança que me constitui fortemente. Quando mergulho em águas escuras sinto um desconforto muito grande.
Esses são três cartões de minha memória que vão se reconfigurando com as cores da vida. Quando meu daltonismo memorial se acentuar, terei esse registro para guiar-me e localizar seus traços no tempo.

Um Instante

Andava com a sensibilidade à flor da pele. Bastava um instante para que um sorriso ou uma lágrima brotasse. Podia ser o espreguiçar do gato, uma voz na tv, uma bola jogada, o choro de uma criança. Qualquer coisa.
A seu lado, as pessoas não entendiam. Por que essa lágrima? Esse sorriso de onde vem? E quando vinha um sorriso junto com uma lágrima, era inexplicável.
Quer dizer, podia ter uma explicação. Mas, quando alguém lhe perguntava, a resposta era sempre a mesma:
_ Você pode até entender, mas não vai compreender.
O ouvinte, quase sempre, ficava boquiaberto. Mas, a conversa parava por aí. Qualquer pergunta a mais, tinha como resposta apenas o silêncio acompanhado de uma lágrima ou de um sorriso. Ou de ambos.
Aos poucos, todos se afastaram. Era constrangedor.
O que não sabiam era que, nos últimos meses, sua vida se transformara muito. De repente, em um exame médico de rotina, uma notícia ruim: tinha uma doença rara. Em alguns meses, estaria sem visão e audição.
Essa notícia foi comunicada friamente por um profissional da saúde que lhe dissera:
_ A qualquer momento, em um instante, você perderá a visão e a audição. Não há o que fazer. Não há o que tomar. Passar bem!
Qualquer cena, qualquer som eram emotivamente recebidos. Pela alegria de ainda serem vistos ou ouvidos. Pelo medo de que fosse o último.
Era assim, que entre lágrimas e sorrisos, aguardava o instante em que já não veria ou ouviria. Imaginava que seria o penúltimo. Planejava o último, mas talvez não tivesse coragem.
No fundo, assim como na caixa de Pandora, tinha a esperança que na memória recriaria as imagens e os sons que a todo momento poderiam ser os últimos. Sem visão ou audição, se refugiaria no mundo da imaginação.

Quase Fim de Ano

Todo ano era sempre a mesma coisa. Começava a se agoniar com o amigo secreto entre os colegas do escritório. Achava ridículas as mensagens que recebia. Não mandava nenhuma, mas sabia que na hora da revelação não faltariam admoestações:
_ Mais uma vez você não mandou mensagens.
_ A gente até consegue adivinhar quem é seu amigo secreto. Quem não recebeu mensagem nenhuma.
_ Pô, nem dessa vez que o amigo secreto foi virtual você mandou mensagem.
Logo, a troca de presentes continuava e o assunto mudava.
Mais uma vez, em cinco anos seguidos, um livro de presente. O best-seller do ano. Além de fingir surpresa e contentamento, tinha que manifestar que já não podia esperar pela leitura.
Tanto fingimento lhe dava mais azia que a sidra barata que era servida meio morna. Fazer o quê? Precisava do emprego!
O presente já tinha destino certo: a tuboteca na estação central. Ainda bem que neste ano não havia dedicatória. Nos anos anteriores arrancara a página com aquelas frases que aumentavam sua azia:
_ Que essa história lhe inspire no novo ano!
_ Para que você possa curtir bem suas férias.
_ Achei que esta história é a sua cara.
Mas, houve um ano que a dedicatória foi ousada:
_ Queria ver este livro no criado mudo junto à sua cama com você. Quem sabe na virada do ano.
Enrubesceu e quase não conseguiu agradecer. Ficou o restante da festa fugindo de qualquer momento a sós com aquela pessoa. Sua timidez era avassaladora. Se arrastava para os cantos menos iluminados do salão. Praticava a solidão no meio da multidão.
Depois da festa antes do Natal, no dia seguinte começavam as férias coletivas. 20 dias sem contato com o pessoal da empresa.
No dia 31, à noite, na festinha da família, esperava o momento mais angustiante: o sorteio da mega sena da virada.
Seria daquela vez?
Vida besta! Só o acaso para mudá-la. Não aguentava mais o discurso sobre meritocracia do chefe e as cobranças em casa.
Mais uma vez, não foi.
_ Come mais um pedaço do pernil. Alguém diz.

Uma Conversa com Deus

Acordou com a brisa movimentando levemente a rede. Nela adormecera embalado por uma dúvida. Como Deus deixara vir ao mundo uma criança cega e surda?
Vira esta criança sorrir ao ser amparada por uma professora em uma escola. Sorria essa criança? Ou era uma simples reação muscular a um estímulo tátil?
Acordou com mais uma dúvida: teria sido um sonho? O diálogo ainda estava vivo em sua memória:
_ Vi que queria falar comigo?
_ Quem é você?
_ Aquele que tem muitos nomes.
_ Como?
_ Sou Deus, criatura! Não me reconhece?
_ Como poderia? É a primeira vez que nos encontramos!
_ É verdade.
_ Então, o que você quer?
_ É ao contrário.
_ O que?
_ Essa fala é minha. Eu é que pergunto. O que vocé quer? Por que me chamou?
_ Como poderia ter lhe chamado? Nunca acreditei em sua existência!
_ Quando viu aquele menino que sorria, mesmo nascendo cego e surdo, você me chamou.
_ Eu! Imagina! Não estou louco! Quer dizer acho que não. Apesar dessa conversa de maluco!
_ Pois é criatura! Quando você se perguntou, se Deus existe, como é que deixou essa criança nascer, achei que queria uma resposta.
_ Eu não! Era só uma pergunta retórica. Mas, já que está aqui, fala.
_ Então, é um pouco constrangedor.
_ Como constrangedor? Para Deus?
_ Pois é. Mesmo sendo Deus, tem coisas que eu não sei.
_ Para com isso. Tá me gozando?
_ Não imagina. É constrangedor, mas é muito simples.
_ Então manda.
_ Criatura, eu sou uma criação humana.
_ Como assim?
_ Pois é. O criador é uma criatura. Só posso saber o que meus criadores sabem. Me desculpe, não sei a resposta. Mas, sei como vocês chamam coisas como o sorriso desse menino.
_ Como nós chamamos?
_ Milagre. Não tem explicação.
_ E você me acorda, pra me dizer isso?
_ Não te acordei.
Bateu uma leve brisa.

Dez Reais

Agenor começa seu dia como sempre. A mesma rotina. Uma xícara de café com leite e um pãozinho amanhecido. Mora no centro de Curitiba, próximo ao prédio histórico da UFPR, em uma quitinete com poucos móveis. Só o que cabe: uma pequena mesa com dois banquinhos, ao lado de um sofá velho com três lugares. Travesseiro, lençol e coberta estão desfeitos sobre o sofá. No criado mudo, uma luminária antiga e alguns livros esparramados. Um livro entreaberto no chão, perto de onde está o travesseiro. Não há porta-retratos. Paredes nuas, mas em uma delas há estantes com centenas de livros de bolsos. Não precisa de muito mais.
Agenor coloca xícara, pires, garfo e faca na pia e margarina na geladeira. Café solúvel e adoçante vão para pequeno móvel com uma gaveta e porta, branco, onde ficam mantimentos, ao lado de uma geladeira tipo frigobar, branca e amarelada do tempo. Em cima da geladeira, fruteira de vime com bananas, laranjas e limões. Agenor sai de casa. Um sábado pela manhã. Mas poderia ser qualquer dia. Aposentado, já não faz diferença entre dia útil e final de semana. É sempre a mesma coisa!
Sua primeira parada é na farmácia. Sobe na balança e confere seu peso, sempre os mesmo 70 quilos. Há mais de uma década. Uma atendente lhe cumprimenta:
_ Bom dia. Em que posso ajudar?
_ Bom dia. Tem genérico de Viagra?
_ De 20 ou 50 miligramas?
_ 50. Caixa com quatro. Dá para um mês. Um por semana.
Sorrindo a moça pergunta:
_ Vai pagar no dinheiro ou cartão?
_ Com cartão. Tem desconto para aposentado?
_ Não, mas posso parcelar em duas vezes.
_ Tá bom.
Da farmácia, vai até a sapataria. Precisa engraxar dois pares de sapato. O sapateiro está sentado em uma banqueta na porta da sapataria. Barrigudo, barbudo e cabeludo, lembra um Papai Noel, mas não é a época nem o lugar adequados. Tem cabelos ruivos, macacão cinza sujo de graxa, palito de dente na boca. 
_ Tenho dois pares para engraxar. Quanto você cobra?
_ Cinco reais cada.
_ Puxa! Tá caro!
_ Tá caro não. O senhor que ganha pouco.
Desiste de engraxar os sapatos e resolve ir ao Passeio Público. Na frente do lago, junto ao espaço reservado aos pedalinhos, vê um pipoqueiro:
_ Quanto é a pipoca?
_ Quatro reais. Quer doce ou salgada?
_ Salgada. Sou diabético.
Agenor tira dinheiro do bolso da calça. Uma nota de dez e duas de dois reais. Pega saquinho de pipoca. Dá dinheiro para o pipoqueiro. Guarda os dez reais no bolso da camisa. Olha para a direita e vê uma mulher de minissaia vermelha, botas pretas até os joelhos. Loura, batom vermelho forte, blusa branca de botões entreabertos. Seios fartos à mostra em sutiã vermelho. Passando por ela, ouve:
_ Oi amor. Vamos até a torre que faço oral em você.
_ Quanto?
_ Dez reais.
Com a mão no bolso, Agenor lembra dos dez reais que guardara no bolso da camisa.
_ Só uma chupeta?
_ Por delão você quer mais o que?
_ Com dez reais dá pra engraxar dois pares de sapato.
Agenor dá as costas para a prostituta e sai andando devagar. Volta para casa.
_ Velho maluco!
Antes, passa pelo açougue. 
_ Fala, seu Agenor.
_ Tudo bem, Osvaldo?
_ Tranquilo. O que vai ser hoje?
_ Os três bifinhos de sempre.
_ Contrafilé ou patinho?
_ Patinho, né, Osvaldo! Mais barato.
_ Que mais?
_ Por hoje é só.
_ Dez reais seu Agenor.
Agenor põe a mão no bolso para pegar o dinheiro. Mas, muda de ideia.
_ Osvaldo, posso pagar no próximo sábado?
_ Tudo bem. No sábado o senhor acerta.
Depois do almoço resolve ir a um dos sebos perto de onde mora. Tinha feito uma encomenda e queria ver se encontraram o livro. Mais um para sua coleção.
_ Boa tarde professor.
_ Oi, Capitu. Tem alguma coisa para mim?
_ O Dalton que o senhor procurava.
_ A Gorda do Tikri bar?
_ Esse mesmo, quase novo.
_ Quanto?
_ Dez reais também. Mesmo preço do último.
_ Vou levar. Posso pagar depois?
_ Claro professor.
Capitu se vira de costas e aproxima-se da estante. Pega livro que estava separado dos demais. Agenor não consegue não olhar para as pernas de Capitu. Dali vai para um dos bares na Presidente Faria. Precisa tomar alguma coisa e reler o livro que tanto procurava. No bar, senta-se em mesa perto da saída para a calçada. Vê uma negra, bem gorda, sentada em um dos bancos junto ao balcão do bar. Ela fuma. Não há outros clientes. Acompanha em voz baixa bolero cantado por Alcione. O garçom se aproxima.
_ Uma cerveja, Dorival. Não esquece o amendoinzinho.
_ Dalton Trevisan de novo?
_ Acabei de comprar.
_ Ontem vi ele no Passeio Público.
_ Devia estar atrás de inspiração.
Agenor pega caixa de remédios do bolso. Abre e tira um comprimido. Toma com um copo de cerveja. De um gole só. Enche o copo novamente. Começa a ler. Dorival e a gorda conversam no balcão. Alcione canta outro bolero.
_ Dorival, traz mais uma.
_ Às vezes fico em dúvida. Isso é vida mesmo? Ou só estamos na mente do escriba?
_ Não entendi seu Agenor.
_ Deixa pra lá.
Depois de algum tempo, pede a conta.
_ Dez reais. Não quer pendurar?
_ Sim.
_ Deixo anotado então.
_ Estou só com dez reais e tenho que terminar um negócio no Passeio Público.
_ Sem problemas. Outro dia o senhor paga.
_ Já tomei o azulzinho. Me sinto meio daltoniano hoje.
_ Não entendi, seu Agenor.
_ Deixa pra lá. Até mais ver.
_ Inté, seu Agenor.
Agenor caminha em direção à calçada. Vira à direita no sentido do Passeio Público. Sorri.