sábado, 24 de junho de 2023

Sons do cotidiano


O apito do trem soa mais uma vez. Tornou-se um som do meu cotidiano. Há pouco mais de um ano. Há outros que são menos frequentes. O apito do trem me alerta muitas vezes ao dia. Também durante à noite. Às vezes de madrugada. Não incomoda. Exceto quando se sobrepõe ao som da televisão. Mas, é um incômodo pequeno. Ligeiro.
A tosse de Carlos Alberto é menos frequente. Sem-teto que mendiga as migalhas que sobram da vida mais privilegiada dos que moram no bairro. No primeiro dia de minha vivência no bairro, o vi sentado no meio-fio esperando o sinal vermelho parar o trânsito. Lhe dei uma ajuda neste dia. Aos poucos fomos nos conhecendo. Indaguei seu nome um dia. Ele tosse com frequência. Enquanto trabalho em meu escritório no apartamento, sua tosse ressoa. Não é alta. Mas, incomoda. Muito. É um incômodo subjetivo. Acho que todos são. Mas, o que surge da tosse de Carlos Alberto lá de baixo, na esquina, me aflige. Indicador objetivo de uma sociedade que falha. Carlos Alberto deve ter minha idade. Não tenho certeza. Mas, não deveria estar na situação em que se encontra. Ao ouvir a tosse de Carlos Alberto, olho à janela. Falo à minha companheira. Carlos Alberto está lá embaixo. Temos algo pra ele? Não resolve meu incômodo, mas alivia a consciência um pouco. Faço o que posso. Será?
Mas, o que me incomoda mesmo é a resposta que me dá ao meu cumprimento quase cotidiano:
_ Bom-dia Carlos Alberto, tudo bem?
A frase soa sempre a mesma:
_ Tudo bem gracas a deus, seu Fernando. Como é possível estar tudo bem para Carlos Alberto?
São dois sons cotidianos. Um mais frequente. Outro menos. Um mais dolorido. Outro quase bucólico. Porém, há outros sons. O latido dos cães. As buzinas de carros pressionadas por motoristas apressados. O alto-falante do carro do sonho. Olhaí freguesia, o carro dos sonhos está na sua rua. Vezenquando, um diálogo mais estridente sobe da rua. Será briga? Será calor afetivo? Os ônibus acelerando após a parada no ponto quase em frente aonde moro.
Eu os ouço. E penso, que vida é esta? Só sei que estou vivo. É a vida que me cerca. É a vida que faço. Que vivo. Sons do cotidiano são parte dela. Eu sigo ouvindo. De ouvidos atentos. Como agora, no Deezer, Zeca Baleiro cantando "Quase nada".
Sigo esperando o dia em que a resposta de Carlos Alberto soe verdadeira! Não apenas uma frase que soa a resignação. O dia em que ele esteja realmente bem. Em que possa entrar no mercadinho do bairro. Sem constrangimento. Como no dia em que me perguntou se poderia comprar um maço de velas pra ele.
_ Te dou o dinheiro seu Fernando.
Nesta frase, o retrato da vida. Uma frase sonoramente dolorida. Mesmo com dinheiro, Carlos Alberto não poderia fazer a compra. Que vida é essa? Quase escrevi "Que vida é essa meu deus?". Mas, esse som não pode sair de meus lábios. Talvez, eu até arrisque, para aqueles que creem, uma pergunta que soa a indignação: Que deus é esse que está na fala de Carlos Alberto? Mais um som que dói. Muito.