domingo, 23 de dezembro de 2018

Serendipity 3

Depois do passeio à praia do Forte, Lorde Kennedy e sua gangue ficaram um par de semanas mais sossegados. O máximo que faziam era dar umas voltas pelas redondezas do Bar do Nego.
Uma manhã, Lorde Kennedy acordou com um espírito aventureiro. Queria ir até o bosque dos macacos. Era uma mata às margens da rodovia que cruza pela praia de Ubatuba em direção à Enseada. Alguma coisa estava direcionando Lorde Kennedy. Ele não sabia bem o que era. Apenas sentia essa vontade irresistível. Comentou com os demais. Todos toparam. Dama até comentou:
_ Já estava ficando entediada com essa vida calma.
Chumbinho completou:
_ É isso aí. Vamos pra mais uma aventura.
Assim, em pouco tempo estavam a caminho do bosque dos macacos. Após passarem pelo Supermercado do Neno, entraram pela esquerda em direção ao bosque. Faltava pouco.
Quando lá chegaram, foi uma decepção grande. Nada dos macacos darem as caras. Alemão foi o único que conseguiu ver um deles. O macaco, bem grande, estava no topo de uma árvore bem alta. Assim que viu o pastor de capa preta lustrosa, o macaco saiu em disparada. Guinchava muito e bem estridente. Devia ser o chefe do bando. Estava avisando os outros macacos de que havia perigo à beira do bosque.
Lorde Kennedy e sua gangue ficaram um tempo esperando. Como a macacada não apareceu, Vina sugeriu:
_ Vamos dar um giro por essas bandas. Nunca estive por aqui.
Bóris concordou:
_ Também não conheço essa parte de Ubatuba. Vamos sim.
Foi dessa forma que Lorde Kennedy descobriu o que tinha feito ele sentir necessidade de ir para aquela região. O bando foi em direção a uma rua sem calçamento ainda. Na esquina estava sendo construída uma casa bem em frente ao bosque dos macacos. Ao lado dela uma casa de madeira com muitas flores e casinhas de passarinhos. Na parede uma placa com a palavra serendipity e o número 3.
Serendipity 3 reviveu a memória de Lorde Kennedy. Era a casa de onde ele tinha fugido. A casa da irmã do namorado da mãe do jovem professor. Ele começou a latir. Os integrantes do bando ficaram sem entender o que estava acontecendo.
De repente, os seis estavam na frente da casa. Ouviram barulho de passos. Na janela da frente, apareceu uma mulher. Ela ficou espantada com tantos cachorros. Reconheceu Kennedy no meio do bando. Ela o chamou. Este latiu para ela e saiu em disparada. Os outros foram atrás dele. Depois, quando já estavam bem longe, Kennedy contou que aquela era a casa de onde tinha fugido. O acaso o levara até lá. Mal sabia ele o significado de serendipity. Contudo, o coraçãozinho apertado de Lorde Kennedy o lembrava dos tempos e carinhos da mãe do jovem professor. Ele tinha consciência que dessa vez fugira da Serendipity 3, para não correr o risco de ter que abandonar seu bando. Na vida canina, muitas vezes, tem-se que escolher a dor menor. Lorde Kennedy não suportaria ficar longe de Dama e dos outros. Guardou para si a saudade e falou:
_ Hora de ir pra casa. Estou com fome. O Nego deve estar nos esperando.
E, puseram-se a caminho. No alto das árvores, os macacos começaram a se juntar. O perigo já havia passado. O bando de Lorde Kennedy estava indo embora.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Passeio ao Forte

Desde que Bóris se juntou à gangue, a vida continuou sossegada para todos. Alemão ficou preocupado quando o grupo chegou na casa de Lola no começo da noite e lhe contaram que havia um sexto elemento no grupo. Pensou consigo mesmo: Qual vai ser a reação do Nego quando notar mais um cachorro nos fundos do seu bar? Mas, preferiu não dizer nada naquele momento.
Bóris era um buldogue com 32 quilos e jeitão tranquilo. Nego foi com a cara dele. Na verdade, se lembrou dos tempos em que Bóris fazia parte do esquadrão de salva-vidas. Sempre via o velho buldogue com o capitão Netuno, que chefiava a turma de salva-vidas. Fez um pouco de festa com o Bóris e, depois de colocar a comida do bando nas vasilhas, olhando para Bóris, comentou:
_ Pelo jeito vou precisar de mais uma lata velha para você, né meu velho? E das grandes!
Entrou no bar pelas portas dos fundos e voltou com a comida do Bóris. Alemão soltou um suspiro de alívio. Tudo ia continuar como antes.
Na maior parte do tempo, a gangue ficava pela região da Enseada. Não muito longe do Bar do Nego. A turma do Brutus andava sumida. Ninguém ouvia falar deles. À beira-mar, ficavam ouvindo as histórias de Bóris. O velho buldogue cativava todos com seu jeito bonachão. Uma vez, ele estava contando da época que morou no Forte de São Francisco do Sul. Os outros cães não conheciam o Forte. Lorde Kennedy sugeriu:
_ Amanhã podíamos ir até o Forte.
Todos concordaram. Alemão, que já ouvira falar do Forte, alertou:
_ É bem longe! Vamos ter que sair cedo.
No dia seguinte, a gangue partiu para um dia no Forte. Nego nem tinha aberto as portas do bar. Por sorte, o sol estava encoberto. Assim, não sofreram muito no caminho.
Bem perto do Forte, na penúltima curva do caminho, encontraram com o trio sinistro: Brutus, Zarolho e Pedroca. Mas, dessa vez eles só rosnaram e arreganharam os dentes. Não eram páreo para Lorde Kennedy e sua gangue.
Na praia do Forte, Vina e Dama se maravilharam com a calmaria das águas. Parecia uma piscina. Correram para a água e se esbaldaram. Chumbinho também. Os outros três procuraram a sombra das árvores.
Logo mais, comecaram a chegar muitas familias com crianças. Vieram em um ônibus de excursão. As crianças brincaram com os cães. Alemão estava vigilante. Porém, tudo correu bem. Foi um passeio sossegado. A única excitação que houve foi quando uma arraia encalhou nas areias da praia do Forte. A criançada ficou mexendo com ela. Alguns meninos começaram a cutucá-la com gravetos. Nesse momento, Bóris deu um jeito de afastar os guris rosnando para eles. Bóris sabia fingir ser bravo. Os meninos correram e Alemão puxou a arraia pelo rabo em direção às águas do mar.
Isso aconteceu quase ao por do sol. A arraia deu um giro, curvou-se para Alemão como se fizesse um agradecimento e sumiu nas águas escuras.
Lorde Kennedy falou que estava na hora de voltarem pra casa. Chegaram no Bar do Nego que estava movimentado. Esfomeados correram para os fundos. Cada um encontrou sua lata com polenta e pedaços de carne. Era dia da famosa polenta com rabada do Bar do Nego. Estava explicada a quantidade de gente no bar até aquela hora.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Bóris: o sexto elemento

O tempo foi passando. Lorde Kennedy e sua gangue estavam ficando famosos na região da praia de Ubatuba. Formavam um grupo que chamava a atenção. Principalmente das crianças.
Em um das vezes em que Alemão foi atrás de Lola na Prainha, Chumbinho sugeriu:
_ Vamos atrás dele! Dizem que a Prainha é muito bonita.
Alemão, naquele dia, estava mau humorado.
_ Vão por conta e risco de vocês. Faz tempo que não vejo a Lola. Não vou poder ficar lhes pajeando.
Vina e Dama ficatam animadas. Lorde Kennedy acabou concordando. Tinha lembranças boas da Prainha. Tinha ido lá quando veio para São Chico com a mãe do jovem professor e o namorado da mãe do jovem professor.
Alemão foi à frente. Os outros quatro seguiram o trajeto numa excitação incomum. Pareciam um bando de muleques em férias.
Na frente da casa onde Lola ficava, Alemão chacoalhou o portão e deu uns latidos. Lola veio em disparada até o portão. Atrás dela, surgiu uma mulher alta e magra. Esguia. Se parecia muito com a Lola. Enquanto Alemão e Lola se cheiravam pelos vãos da grade de ferro, a mulher abriu o portão e disse:
_ Eita! Que surpresa! Veio com a turma toda, hein!
Alemão entrou. Lorde Kennedy e os demais não.
_ No fim da tarde a gente passa por aqui, Lorde Kennedy se dirigiu ao Alemão.
Este respondeu:
_ Basta seguir por essa rua. Ali na frente está a Prainha. Se cuidem.
Os quatro foram embora. Alemão nem teve tempo de falar mais nada. Lola o arrastou para a parte de trás do quintal. Já fazia mais de um mês que não se viam.
Quando chegaram na Prainha, a gangue viu o posto de salva-vidas vazio. Ainda não estava na época de veraneio. Ficaram um pouco por ali. Nao muito tempo. Logo Chumbinho notou as pedras e o pequeno morro à direita da Prainha. E falou:
_ Vamos lá Lorde Kennedy? Parece que tem uma trilha.
Dama e Vina concordaram. As duas reforçaram:
_ Vamos sim.
_ Deve ter uma vista bonita.
E lá foram eles. Como sempre, Lorde Kennedy e Dama, lado a lado, seguidos por Chumbinho e Vina.
Passearam pela praia. Subiram nas pedras. Descobriram a trilha que serpenteava pelo outro lado do morro. A subida para Vina não foi muito fácil! Ela estava meio gordinha. Chumbinho, sempre, ficava na retaguarda. Empurrava um pouco quando percebia que Vina estava em dificuldades.
Aliás, Vina estava um pouco ousada demais naquele dia. Quando chegaram ao topo do morro ficaram admirando a vista. No mar aberto, passavam alguns navios em direção ao porto de São Francisco do Sul. Lorde Kennedy comentou:
_ Qualquer dia vamos conhecer o porto.
Os outros concordaram. Nesse momento, Vina viu algo se mexer na beira das pedras. Curiosa, foi ver o que era. Era um lagarto. Ela mexeu com o bicho. Este avançou em cima dela. Assustada, ela recuou e escorregou. Caiu em cima das pedras uns dois metros para baixo.
Os outros correram para acudir. Mas, não havia um caminho. Ficaram aturdidos. Chumbinho perguntou se Vina tinha se machucado. Ela disse que não. Mas, não via como subir. E agora? O que fazer?
Lorde Kennedy falou:
_ Fiquem aqui. Vou atrás do Alemão. Ele consegue tirar a Vina de lá.
Saiu em disparada. Na casa de Lola não encontrou ninguém. A família tinha ido passear e levado Lola e Alemão. Lorde Kennedy ficou preocupado. Começou a voltar para onde os outros estavam. Na sua cabeça a angústia: como tirar Vina lá de baixo.
No meio do caminho, um velho boldugue imenso lhe falou:
_ Ei meu chapa, você parece preocupado. O que aconteceu?
Lorde Kennedy contou pro estranho o que tinha acontecido. O velho buldogue falou:
_ Sou o Bóris. Já fiz parte do esquadrão de salva-vidas. Estou aposentado. Tenho experiência com esse tipo de situação.
Quando lá chegaram, Bóris analisou a situação de Vina. E disse:
_ Precisamos de algun tipo de corda.
Todos olharam ao redor. A sorte parecia estar mudando. A uns dez metros, em cima de um banco de areia, Dama viu uma velha corda de atracação de barcos. Apontou para Kennedy e Bóris:
_ Tem uma corda lá naquele banco de ateia.
_ Linda cadela, valeu, disse Bóris.
Lorde Kennedy ficou um pouco enciumado do galanteio de Bóris para Dama. Correu até o banco de areia. Trouxe a corda.
A partir daí, Bóris assumiu o comando da operação resgate. Primeiro, amarrou Chumbinho, que era o mais leve, e segurando uma ponta da corda, o sustentou enquanto ele descia até o local onde Vina caíra. Instruiu Chumbinho a amarrar a corda em Vina. Conseguiu içá-la de volta. Jogou a corda de novo para Chumbinho. E o ajudou a escalar o barranco de volta.
Depois do alívio, Bóris falou:
_ Vocês devem estar com fome, não? Sei onde a gente consegue comida a essa hora.
Passaram o resto do dia juntos. Depois de comerem, voltaram à Prainha. Lorde Kennedy contou sobre como o bando se conhecera. Bóris, que já andava cansado da vida solitária que tinha na Prainha, se ofereceu para fazer parte da gangue. Chumbinho, Vina e Dama aplaudiram a ideia. Lorde Kennedy assentiu com a cabeça. E finalizou:
_ Está na hora de irmos atrás do Alemão. Temos que apresentar a ele o Bóris, o sexto elemento da gangue.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A quase vingança de Brutus

Lorde Kennedy e Dama estavam sempre juntos. Desde o dia que ele botara Brutus para correr, Dama se sentia protegida ao seu lado. Dama era mestiça de um labrador com uma dálmata. Tinha pelos marrons no corpo todo. A cabeça, porém, era marcada por manchas brancas e pretas. E o corpo era esguio como o de sua mãe. Era uma cadelinha exótica.
Nem sempre Alemão acompanhava a gangue. Vezenquando, Alemão sumia por dois ou três dias. Ia atrás de Lola. Uma golden retriever que aparecia pelos lados da Prainha uma vez por mês. Neses dias, Alemão nem aparecia para comer nos fundos do Bar do Nego. Quando Lola ia embora, Alemão voltava pra gangue com um ar triste. Com o rabo no meio das pernas. Mas, no dia seguinte já era o boa praça de sempre. E vigilante quanto a um possível ataque da turma do Brutus.
O grandalhão andava com outros dois cachorros mal encarados: Pedroca e Zarolho. Eram temidos não só pelos outros cães. Os humanos também não se sentiam seguros quando os três apareciam à beira-mar. Pedroca e Zarolho eram filhos de uma boxer com um galgo. Mistura sinistra! Ficaram velozes como o pai e ágeis como a mãe. Faziam barbaridades com os lixos das vizinhanças por onde andavam.
Certa vez, enquanto Alemão estava enrabichado por Lola, os outros quatro resolveram dar um rolê pela praia de Ubatuba. Pareciam dois casais. Chumbinho com Vina, sempre ao seu lado, seguiam atrás de Dama e Lorde Kennedy.
Raramente saíam sem o Alemão. Porém, naquele dia, Lorde Kennedy sentia falta da mãe do jovem professor. Quis ir praquele lado, que era a primeira praia que conheceu junto com o namorado da mãe do jovem professor. Estava um pouco melancólico. Se lembrava do passeio com a mãe do jovem professor. Foi a primeira vez que molhou as patas na água do mar. Quis beber. Não conseguiu. Um gosto ruim na boca o impediu. Depois aprendeu com Chumbinho que tinha sal na água do mar.
Mas... As coisas iam ficar difíceis naquele final de tarde.
No meio do caminho, quase em frente ao supermercado da Zeza, o que viram? Brutus, Zarolho e Pedroca. Do outro lado da rua, ainda uns cinquenta metros deles. O trio sinistro voltava da praia. Cada um carregando um osso que pegaram no lixo do açougue do Mendes. Os três arreganharam os dentes e comecaram a latir e correr em direção a Lorde Kennedy e os outros três. 0s três ossos cairam no chão ao mesmo tempo. Enquanto corria, Brutus gritou para Lorde Kennedy:
_ É hoje seu fedelho! Aquela mordida ainda me dói. Vou te dar o troco.
Para sorte de Lorde Kennedy e seus amigos, eles estavam do outro lado da calçada. Era uma sexta-feira movimentada por muitos veranistas. A rua estava cheia de carros passando. Dessa vez Lorde Kennedy percebeu que não dava pra bancar o herói. Foi rápido nas instruções:
_ Vamos correr. Não estamos longe do Bar do Nego. Dama e Vina na frente. Chumbinho e eu atrás.
Partiram em disparada enquanto os três grandalhões tentavam atravessar a rua. Em dois minutos, conseguiram. Aproveitaram uma parada no trânsito que foi causada prlo ônibus que parou pra pegar passageiros no ponto ao lado do supermercado.
Mas, do outro lado da rua só sentiram o cheiro do medo dos outros quatro. Partiram em disparada atrás do trilho do cheiro dos outros. Zarolho e Pedroca à frente. Eram mais rapidos que Brutus. Quando viraram na esquina da rua do Bar do Nego, já era tarde.
A essa altura, os quatro estavam na porta do Bar do Nego. Correram pros fundos. Lorde Kennedy foi o ultimo a entrar. Com a pata esquerda  traseira deu um empurrão no portão que fechou com um clique. Chumbinho, arfando e com a língua de fora, disse:
_ E aí Lorde. Dessa vez não deu pra encarar, né?
Lorde Kennedy, pareceu dar um sorriso com aquela boca quase banguela. Ele só tinha dois dentes. Também com a língua de fora, olhando pra Dama, respondeu:
_ O que vamos contar pro Alemão? Que fizemos a gangue do Brutus correr?
Dessa vez, foi a vez de Vina e Dama mostrarem os dentes. Será que sorriam também? Afinal, aquilo não deixava de ser verdade, não é?

Lorde Kennedy e sua gangue

Kenedy era um piá de prédio. Ou melhor, o cãozinho de um piá de prédio. Nunca tinha ido à praia. Até aquele dia.  Foi então que passou a ser conhecido como Lorde Kennedy. Nada mais adequado para um schnauzer.
Foi no começo da primavera. Alguns anos antes disso, Kennedy tinha mudado de apartamento. A família do piá de prédio se mudou de Curitiba e ele foi deixado para trás. Ficou aos cuidados de um jovem professor que não tinha muito tempo pra ele. Depois de um tempo, a mãe do jovem professor decidiu levar o cão para seu apartamento. Lá, ele ficava a maior parte do tempo sozinho. Ela trabalhava o dia inteiro. Mas, ele tinha direito a duas saidas por dia. Pela manhã e ao final da tarde.
Um certo dia, a mãe do jovem professor resolveu passar um final de semana na praia. Tinha um cara novo na história: o namorado dela. Fazia pouco tempo que namoravam. Foram para São Francisco do Sul. Se hospedaram na casa da irmã do namorado da mãe do jovem professor. Ufa! Esta história está ficando com um monte de personagens! Kennedy foi junto. O namorado era bonzinho. E, além disso, queria agradar a namorada nova. Tudo estava indo bem. Mas... Há sempre um mas...
No sábado à tarde, enquanto a mãe do jovem professor, o namorado da mãe do jovem professor e a irmã do namorado da mãe do jovem professor conversavam na sala, Kennedy viu o portão aberto.
No dia anterior, Kennedy já tinha ido ao mar. Queria voltar. Estava impaciente. Mas, ninguém lhe dava atenção. Não deu outra. Escapuliu pelo portão aberto.
Quando os adultos da história perceberam foi um deus nos acuda. Sairam em disparada por todas as direções. Mas, não conseguiram localizar o fugitivo. Ficaram tristes, mas quando souberem dessa história vão se conformar. Uma nova vida de aventuras estava começando para o ex-cãozinho de piá de prédio.
Ele tinha ido atrás do mar. Na praia viu uma cadelinha frágil sendo assediada por um cão enorme. Um cão fila. Ela gania e tremia de medo. Kennedy não teve dúvidas. Partiu pra cima do fila. O cachorrão se assustou. Kennedy meteu os dentes na perna traseira do grandalhão. Assustado com a ousadia de Kennedy, o malvado foi embora. Kennedy falou pra cachorra:
_ Tudo bem com você? Qual seu nome.
_ Agora sim, ela respondeu. Eu sou a Dama.
Kennedy ia falar alguma coisa, mas um vira-lata preto se meteu na conversa:
_ Gostei de ver meu chapa. Botou o grandalhão pra correr. Eu sou o Chumbinho. E você, quem é?
_ Sou o Kennedy.
Imediatamente, Chumbinho emendou:
_ A partir de hoje Lorde Kennedy, o salvador da nossa Dama.
Nessa altura da conversa, chegou a Vina. Uma daschund marrom avermelhada que era um flerte do Chumbinho. Ela tinha visto a cena do outro lado da calçada da Enseada.
_ Gostei de ver, disse para o Kennedy. Aquele brutamontes estava precisando de um susto. Eu sou a Vina.
_ Estou com fome, disse Dama. Vamos atrás de comida?
_ Com certeza, respondeu Chumbinho. Vi o Alemão lá perto do bar do Nego. Deve estar na hora do Nego botar a comida dele pra fora. Sempre sobra algo.
_ Vem com a gente Lorde Kennedy.
E lá foram os quatro. Quando chegaram nos fundos do Bar do Nego, Alemão já estava comendo. Era um pastor com uma capa preta lustrosa. Boa praça, falou pra eles:
_ Chega aí gente boa. Quem é o novato?
Chumbinho apresentou o Lorde Kennedy e contou o que tinha acontecido. Alemão comentou:
_ Ih rapaz! Foi se meter logo com o Brutus. Ele vai querer tirar a forra. Mas, fique com a gente. Ele não consegue encarar mais de um.
Foi assim que surgiu a gangue de Lorde Kennedy. De dia ficam girando pelas areias de Enseada e Ubatuba. À noite cuidam do Bar do Nego, que retribui com a comida diária da gangue. De vez em quando, Brutus cruza o caminho deles. Nunca teve coragem de se aproximar. Sempre com medo do Alemão, que tinha se tornado o guarda-costas de Lorde Kennedy.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Um chope, uma porção de fritas e um livro de bolso

Na verdade foi meia porção de fritas. Sozinho, ele não daria conta dos 500 gramas da porção inteira. O chopp era tamanho padrão inglês. O famoso pint. Por fim, contos eram o que continha o livro de bolso. Como esse que agora lhe conto.
Ele estava no hospital. Tinha que contar ao médico porque fizera aquilo. Não era um conto. Era história vívida. Poderia até inventar algo. Mentir. Mas, naquela época ainda não se tornara um escritor de contos. Ainda não era meu colega de ofício. Isto só aconteceria mais de duas décadas depois. Assim, resolveu se abrir. Contar tudo.
O primeiro conto do livro sugeria um cenário hospitalar. Só sugeria. A autora não usou essa palavra ou qualquer uma que tivesse uma raiz comum a hospital. No entanto, a narrativa tinha que estar ocorrendo em uma casa de saúde. Foi isto que ativou sua memória.
Lembrou -se da pergunta do médico. Por que? Uma caixa de aspirina! De uma vez! Por que?
Era muita dor. Foi sua resposta. Onde? Perguntou o médico. Na alma. Ele disse. O médico riu. Ele também. E depois ainda foi capaz de brincar. Confundi analgésico com almagésico, doutor!
Para o médico, a piada foi um indicador de que não era nada sério. Prescreveu uma lavagem estomacal. Depois o mandou para casa. Perguntou se estava acompanhado. Não, foi a resposta. Tinha vindo sozinho. Era seu costume. Nao gostava de incomodar ninguém. Mas, naquele dia nao tinha a quem incomodar. Estava sozinho em casa.
O médico quis chamar um táxi. Ele dispensou. Preferia ir caminhando. Outro hábito que tinha. Era um fim de tarde de inverno. Não muito frio e com o sol ainda brilhando. Fraco.
Ao sair do hospital, vinha um caminhão na direção dele. Esperou. O motorista lhe acenou e deu uma buzinada. No parachoque traseiro estava escrito:
Do destino ninguém foge.
Em letras brancas. Caiu na gargalhada.

domingo, 30 de setembro de 2018

O escritor e sua sina

Tudo começou na adolescência. A professora de português pediu à turma que escrevessem uma redação sobre o tema que ela definiu. Era uma coisa comum. Ele, no entanto, quis ser diferente.
Por que escrever sobre o comum? Quis transformar o comum no incomum. Foi então que surgiu seu gosto pelos duplos sentidos. Pelo sentido quase oculto. Pelo subentendido. Pelo pouco dito. Ou, ainda, pelo não dito.
Essa vontade lhe revela o jeito de ser. Tímido, busca na subversão dos sentidos, na ousadia da escrita, na surpresa do pouco comum, a atenção das pessoas. Passados mais de quarenta anos daquela escrita primeva, ainda se esconde da fala e prefere se revelar na escrita.
Outro dia quis escrever sobre o fim da linha. Ia repetir um tema já tratado em outro breve texto. Só que dessa vez seria uma memória. Se lembrou de um episódio da juventude. Com amigos, passeando em Buenos Aires, entraram no metrô. Não perceberam que haviam chegado ao fim da linha. O trem andou mais alguns metros. Parou. Veio o condutor enfurecido. Fez com que descessem e caminhassem de volta para a última estação.
Não conseguiu escrever sobre isso. Acabou contando a estória de Samuel. Costureiro que tinha que terminar um vestido. Encomendado por sua mais fiel cliente. Samuel deixou para terminá-lo no domingo à noite. A encomenda era para ser entregue na segunda de manhã. O problema é que a linha vermelha chegou ao final. Na máquina de costura, Samuel viu o carretel girando. Completamente vazio. Estava na metade do serviço. Não conseguiu entregar o vestido na segunda de manhã. Enfurecida, a cliente foi embora. Nunca mais voltou.
Em outra ocasião, queria fazer o elogio da partida. De como a vida e o destino nos fazem partir em múltiplas direções. Cada uma com suas escolhas e acasos. Intenções e desvios. De novo, não foi capaz. Uma compulsão por contar o drama de uma alma partida em pedaços pela desilusão no amor levou-o para outra estória.
E o que dizer daquela vez que quis contar sobre um nadafazer em uma boa praça curitibana? Acabou escrevendo sobre um sujeito boa praça que se apaixonou por Durval, a travesti Duda que faz ponto perto da Praça Tiradentes. De onde surgiu isso? Foi o que se perguntou ao terminar o breve texto.
Às vezes, consegue até fazer graça! Quando contou sobre aves e chuva em uma rodoviária. Ao contrário dele, elas e a chuva não eram passageiras. Ele, um passageiro à espera de seu ônibus.
Esta parece ser sua sina. Imagina uma estória e, ao cabo, escreve outra. Como agora, ao escrever cabo, já lhe veio à mente um cabo de vassoura. Uma bruxa voando nele. Um possível conto infantil. Mas, esta é outra estória. Que, além do cabo de vassoura, terá seu cabo. Quem sabe quando?
Hoje se deu por feliz. Aparentemente, sina não tem outro sentido. Ao menos que ele saiba. Conseguiu escrever sobre o que queria. Misturando o real com o imaginado. Dando a quem lê, a chance de adivinhar qual é cada um. Do jeito que gosta. Afinal, é por isto que escreve. E, também, é claro, pra chamar sua atenção. Afinal, é um tímido!

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Mãos dadas

Um casal de mãos dadas. Ela um pouco mais madura. Ele de barba e bigode. Seriam turistas? Seriam locais? Não tenho como saber! Mas, mesmo quanto à diferença de idade é difícil estar certo. Me parece que as mulheres, em geral, demonstram mais as marcas do tempo. Pode ser que ele seja mais maduro. Talvez, o boné me engane. Lhe dá um ar juvenil. Mas, que importa?
O que importa mesmo são as mãos dadas. Para mim, são a maneira mais explícita de declarar o amor. Mais até que um beijo! Um beijo pode se muito rápido. Agora, mãos dadas exigem uma duração maior. Me dizem muito sobre uma relação.
Estou em Mar del Plata. Um dia antes do previsto. Depois de flanar pela manhã, decido almoçar. Uma escolha guiada apenas pelo número de clientes do lugar. Na esquina de Entre Rios com Belgrano.  O movimento me sugeriu uma possibilidade de comida boa. Nada especial. Apenas adequada à fome. Não era muita!
Entre tantas opções, uma milanesa. Com batatas. Para acompanhar um vinho tinto. O que você vê na fotografia. Nada especial! O mais barato da carta de vinhos. Sou pouco exigente!


Na verdade sou exigente só no amor. Se não me der as mãos, pouca chance há de prosperar. Assim, você já sabe. Me viu de mãos dadas? É sério! Pra durar! Mesmo que não seja eterno. Afinal, Vinícius já disse que é chama! Será eterno enquanto dure! Porém, tem muitas chances de ser infinito.
Na minha vida, não foram muitos os amores. Entre homem e mulher quero dizer. Outras formas de amor foram inúmeras. Com mulheres, sempre houve mãos dadas. Como o atual! Tem chances de ser eterno. Enquanto dure. Afinal, já passei dos 60! Quanto durarei? É provável que menos que ele. Mesmo vindo de uma família de longevos.
Outras bocas? Já beijei! Outros sexos? Já toquei! Mas, mãos dadas foram poucas! Já houve toques em que as mãos resistiram ao dar-se.  Não sou fácil! Mas, isto é outra história. Que o diga quem já me deu as mãos. No amor.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Sopa de letrinhas



Raramente isto acontece. O título surgiu antes do texto. Tinha acabado de ler um livro de contos. Na verdade dois. Não eram muito volumosos. Letras e espaços amplos. Leitura rápida.
Pensava em meus escritos. Podia juntá-los em uma coletânea. Igual aos dois livros cuja leitura concluíra. Pensei denominá-los Seleta. Lembrei-me da seleta de legumes enlatada que se podia encontrar nos supermercados. Não gostei. De repente, veio à mente outro produto comum no varejo. Macarrão em forma de letras. Daí, sopa de letrinhas.
Acho que foi em um livro de Umberto Eco que li sobre a bíblia ser fruto de um acaso. Não esta que faz parte das religiões cristãs. Uma hipotética. Que poderia surgir da interação entre um tempo qualquer, um macaco e uma máquina de escrever. Ao acaso.
Poderia ser também escrita por meio de sopas de letrinhas. Por que não? Uma página por noite. A cada colher, um parágrafo se formaria na mente do leitor esfomeado. Trinta colheres. Trinta parágrafos. Um evangelho segundo a sopa de letrinhas. Poderia até ter patrocínio de uma das marcas mais vendidas. Imagino o slogan: XPTO, a sopa de letrinhas divina. Aliás, um marqueteiro criativo imaginaria vários. XPTO, a sopa que te ilumina. XPTO, um versículo em cada colherada. XPTO, do genesis ao dia do juízo final em poucas semanas. E assim por diante...
Enfim, para facilitar as coisas, o texto poderia ser escrito na massa antes do cozimento. Depois de cozida, ainda na fábrica, as letrinhas seriam separadas e colocadas em cada envelope. Depois, enviadas ao comércio varejista.
Melhor ainda, por que não fazer isso com meus breves textos? Será que não encontro alguma fabricante de sopas em letrinhas que esteja a fim de me editar. Seria maravilhoso lançar uma nova linha de sopas: a literatura instantânea. Eu gostaria muito. Já tenho até o slogan: Breve textos - um coletânea em sopas de letrinhas. Alimento para o corpo e para a alma.
Interessados sabem onde me encontrar.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Nervos à flor da pele ou Monstros à beira de um ataque de nervos

O desentendimento começou no embarque. Um pouco antes do portão de entrada. Na fila para apresentar o cartão de embarque ela perguntou:
_ Você sabe que horas são?
_ Sete e pouco. Ele respondeu.
Instintivamente, olhei para o celular. Há muitos anos não uso relógio de pulso. Sete e catorze. Ia informá-la. Mas, alguma coisa me fez calar. Intuição. Ela não me falha.
Logo depois de mostrarem o cartão de embarque, ainda à minha frente, ela retomou o diálogo. Quer dizer, monólogo. Ele só ouviu.
_ O vôo sai às sete e cinquenta. Custava termos ido tomar um café. Mas, não! Você prefere ficar esperando dentro do avião. Esqueceu que fome me dá dor de cabeça?
Ele ia responder. Não teve tempo. Na entrada, ela pediu a uma das comissárias de bordo:
_ Você pode servir algo para comer?
_ Está tudo trancado. Só depois da decolagem. Quando começar o serviço de bordo.
Ela bufou ao ouvir a resposta. Virou para o marido. Suponho que seja. Disparou um olhar fulminante. Eu desviei o corpo. Vai que aquela energia negativa me atingisse. Se tivesse alguma crença, talvez até me benzesse!
Nunca vi um olhar tão furioso. A fome devia ser imensa! Eles ficaram na parte dianteira da aeronave. Minha poltrona era na fileira 36. Bem longe! Ops, quase digo "graças a deus"!
Próximo ao final do embarque, aeronave lotada, ouço outra voz feminina. Uma das comissárias de bordo:
_ Vamos ter que despachar suas malas. Não há mais espaço nos bagageiros.
_ Quero usar o bagageiro em cima de minha poltrona.
_ Minha senhora, o assento é marcado. O bagageiro não.
_ Não me interessa! Os outros que tirem a suas malas. Quero meu espaço!
Um princípio de tumulto. Bem perto de minha poltrona. Um imbecil xingou a mulher. Falou um palavrão. Tinha pressa para decolar. Mas, tudo acabou bem. O acompanhante dessa mulher não reagiu. Temi o pior! A mulher aceitou. Malas despachadas. Portas fechadas. Avião decolou.
Eu decido me concentrar na leitura. Um exemplar da Sight & Sound. Presente de Telma. Fernanda me trouxe ontem à noite. Retornara no domingo de Londrina. Junto com a revista, dois pacotes de Rolo. Chocolate que comia muito durantes meus anos de doutorado na Inglaterra. Presente do dia dos pais. De Paloma e Fernanda. Presentes que valem mais do que qualquer outra coisa! Sight & Sound e Rolo. Duas memórias de minhas viagens a Londres, com uma visita ao British Film Institute na Southbank sempre que possível. Agora quase embarquei em uma trip down the memory lane! Volto ao tema do post.
Na Sight & Sound, uma entrevista com Lucrécia Martel. Sobre seu último filme. Zama. Grande filme em que Matheus Nachtergale interpreta Vicuña Porto. Um bandido cruel e incerto sobre sua crueldade.
Em uma das perguntas, o entrevistador comenta sobre a presença de um protagonista masculino no filme. Zama interpretado por Daniel Giménez Cacho. Em seus filmes anteriores, Martel trouxe mulheres como protagonistas. Na resposta, a cineasta disse que não se preocupa com a questão do gênero das protagonistas de seus filmes. Em seu processo criativo, ela disse, as imagina como monstros. E completa:
_ No sentido de que um monstro é um ser instável, ele é único também, e um monstro é a melhor forma de construir um personagem, um monstro em um sentido clássico de ser uma exceção ou um fenômeno...
Fiquei pensando... O que me dizem esses dois episódios quase aéreos. Inevitável, ao menos para mim, associá-los à época sombria em que vivemos no Brasil. Me parece que os monstros estao deixando de ser exceção. Cada vez mais numerosos à nossa volta. Quase incontroláveis! Me lembrei do filme de 1968 de George Romero, A Noite dos Mortos Vivos. Cuidado! Parece que os monstros estão à beira de um ataque de nervos!

domingo, 12 de agosto de 2018

Sofias

Ontem duas Sofias entraram na minha vida. Brevemente. Tão diferentes. A primeira surgiu em um passeio no Passeio Público. Edra Moraes estava comigo. Kennedy, o cão, também. Manhã fria de inverno pedia um caminhar ao sol. Logo após a feirinha de orgânicos, mãe e filha caminham em nossa direção. Quando as vi, supus que fossem mãe e filha. Não me enganei. A mãe, dirige-se à filha, e pronuncia um nome: Sofia Stephenson. Quem será? Não faço a mínima ideia! Sei que não era a menina com a mulher. Ela se referia a uma Sofia que não estava ali. Por algum motivo, talvez o sobrenome inglês, esta Sofia ficou em minha memória.
Findo o passeio, retornamos a meu apartamento. Não muito distante do Passeio Público. Edra e eu decidimos ir ao cinema. Todo sábado há uma sessão gratuita do Clube do Professor. Começava às onze. Um cafézinho antes de sair de casa. Chegamos quase em cima da hora. O filme do dia era Vidas à deriva. Um drama baseado em fatos reais. História de amor recheada com naufrágio em alto mar. Não gostei muito do filme, apesar das belas imagens submarinas. Me entediou um pouco. No entanto, o enredo nos ajuda a refletir sobre a vida. Jà é alguma coisa!
Em uma das primeiras cenas do filme, a protagonista, Tami, chega ao Tahiti em um barco. Adivinha o nome do barco? Sofia, Isso mesmo! Imediatamente, me lembrei da Sofia do Passeio Público. Assim, como ocorreu com a primeira, Sofia, o barco, fez uma aparição breve, en passant! Hoje estou meio exibido. Sempre quis usar esta expressão. En passant! Chique, não? Duas Sofias na mesma manhã. Coincidência! O que isso quer dizer? Provavelmente nada. Só um motivo para escrever.
Mais tarde, de volta ao apartamento, Edra me dá o privilégio de ler um conto escrito por ela. Ainda inédito. Um história curta em que a coincidência se faz presente na vida da protagonista. Um dia você poderá lê-lo. Por enquanto, fora algumas pouca amigas, só eu pude ler. A imagem que ilustra este post tem a ver com as coincidências que Edra conta.
Cheguei até aqui. E agora? Sei que você espera mais. Tenha paciência. É provável que eu consiga alongar o texto mais um pouco. No entanto, você foi avisado. Não negue. Percebeu o nome do blog, não? Breves Textos. Sim. É isso mesmo! Breves no sentido de curtos. Não venha com a esperança de longas narrativas. Não aqui. Aqui só textos curtos. Sinto muito! Deveria ter prestado atenção nisto!
Sofia faz parte da filosofia. Traduz-se como saber. As duas aparições breves das Sofias ontem de manhã me levaram a pensar no saber. Ao contrário das duas de ontem, a sofia da filosofia não pode ser breve. Nem a sua busca. Busca constante, permanente. Está em minha vida desde que me conheço por gente. Tem uma outra qualidade. Talvez seja compartilhada pelas duas Sofias de ontem. Mas, pode ser-lhe única. Quem sabe? Eu não! A incompletude. Quanto mais conheço a sofia, mais me parece incompleto o que conheço. Em alguns momentos, raros, a sofia mostrou-se bela. A beleza da sofia é o que busco. Quando a vejo, não consigo escondê-la. Quero compartilhar. Espero que você também.
Pronto. Cheguei ao fim. Do post. Não da busca da beleza da sofia. Esta só terminará quando a lucidez já não se fizer presente em minha mente. Mas, não me posso furtar a uma última pergunta. A você que me lê: Consegui alongar o texto suficientemente?

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Três partidas e uma chegada

Esse texto levou pouco mais de oito meses para tomar a forma escrita. Em 15 de novembro do ano passado, meu irmão Christovam Gimenez Júnior faleceu. Onze dias antes de completar 63 anos. Vitimado por um câncer de fígado resistiu por cerca de um mês.
Fui o terceiro filho em uma família de quatro. Christovam era o primogênito. Kilda nasceu dezoito meses depois. Eu viria no ano seguinte. Por fim, Arlindo que nasceu pouco mais de dois anos depois de mim. Em alguns momentos de minha vida, considerava minha posição na ordem cronológica dos filhos como peculiar. Sempre tive uma natureza mais reservada, e creio que essa posição me permitia exercer a prática da solidão com muita frequência. Me sentia posto de lado, algumas vezes. Afinal, havia o primogênito, a primeira filha e o caçula. O terceiro filho não era uma posição relevante. Mas, não pense que isto me incomodava. Ao contrário, não ser percebido ou notado me permitia observar questões familiares em silêncio. Acho que ser o terceiro filho me tornou um bom observador.
Assim, nesse texto quero registrar quatro momentos de minha relação com Christovam que foram, em minha opinião, fundamentais na construção do homem que vim a ser, embora ainda em constante transformação. Na vida somos como um rio que passa. Aparentemente, o mesmo. Mas, sempre em fluxo. Se transformando.
Me lembro, em primeiro lugar, de uma situação em que eu saía da infância para a adolescência e Christovam se aproximava dos primeiros anos de juventude. Certa madrugada, eu o vi arrumando uma pequena mochila com algumas peças de roupa para fugir de casa. É a primeira partida do título.
Os três irmãos dividiam o mesmo quarto com três camas. A de Christovam próxima à janela. A minha encostada na parede oposta. A de Arlindo ficava no meio do quarto. Kilda tinha um quarto só dela. Naquela madrugada, eu poderia ter impedido a partida dele. Por que não o fiz? Já naquela época, eu começava a desenvolver minha crença no pleno exercício da autonomia e liberdade de escolha que devemos ter. Quis respeitar a escolha de meu irmão mais velho. Não interferi em sua primeira partida. De manhã, acordei e fui para o colégio sem dizer nada para ninguém. No meio da manhã, foram me avisar em sala para eu ir pra casa, pois havia uma questão familiar em que precisariam de mim. Eu já sabia o que era. Viajei com minha mãe para ir em busca do Christovam que já tinha sido localizado em outra cidade.
Muitos anos depois, todos casados, Christovam já era pai de Netto e trabalhava com meus pais no pequeno supermercado da família. Assim como eu e Arlindo. Como em toda empresa familiar, havia muitos conflitos. Um dia Christovam e Dirlene, sua mulher e mãe de Netto, decidiram mudar para algum lugar do Mato Grosso e tentar a vida lá. De noite, na rodoviária, quando fomos nos despedir, tive uma forte crise de choro. Não me conformava com a ideia dessa segunda partida. Meu choro era tão compulsivo que foi necessário que tia Amélia se afastasse comigo da estação rodoviária. Por que chorei tanto? Deve haver muitas explicações, mas a que me serve é a ideia de que naquele momento eu me vi em conflito. Como conciliar meu respeito pela liberdade de escolha com o sentimento de que precisava proteger pessoas queridas de uma aventura que para mim seria muito cheia de sofrimento? Não foi fácil lidar com esta segunda partida de meu irmão!
Anos antes, quando eu estava cursando engenharia em São José dos Campos, cheguei de volta a Londrina para alguns dias de feriados. Trouxe dois amigos: Joubert e Élcio. Certa noite, Christovam levou a nós três para passear de carro com outro amigo. Depois de algumas voltas pelas ruas centrais de Londrina, ele e o amigo convidaram uma prostituta a se juntar a nós. Fomos a um drivein. A ideia era que a mulher fizesse um boquete em cada um de nós. Joubert e eu recusamos a ideia. Os outros três se deleitaram com os serviços prestados. Naquela época, eu tinha uma visão altamente romântica do sexo. Tinha que ser feito com amor! Essa situação marcou a chegada do título desse texto. A chegada do terceiro filho que queria se mostrar muito diferente do primogênito. E, ainda, livre para suas escolhas. Creio que foi um momento de afirmação. De autonomia.
Por fim, alcanço neste texto a terceira partida. Era o feriado de 15 de novembro. Eu estava levando Sara até Maringá de carro. Saíramos de Curitiba naquele dia. Depois de descansar um pouco em Maringá, eu iria para Londrina. Visitar meu irmão que estava doente. Ao estacionar em frente ao prédio onde mora a mãe de Sara, fui pegar a mala de Sara para subirmos. Sara então me disse:
_ Não precisa Fernando.
Eu, a princípio não entendi. Insisti. Sara completou:
_ Eu vou com você. Não vou ficar. Sua tia Amélia informou no Facebook que seu irmão faleceu meia hora atrás.
Depois que descansamos um pouco, embarcamos para Londrina. Lá chegando, depois de passar na casa de minha mãe, fui em direção ao órgão funerário da prefeitura. Lá encontrei Netto. Junto com ele, fui fazer o reconhecimento do corpo de meu irmão. Uma formalidade legal que alguém da família deveria cumprir. Algumas decisões tinham que ser feitas. Escolhas novamente. Nesta terceira e última partida, eu não tive escolha. Tive que decidir pelo meu irmão. Ele já não podia escolher! Fiz o que pensei que deveria ser feito. Um momento nada fácil para o terceiro filho.
Foi assim. Em quase 60 anos, a vida me distanciou e me aproximou de Christovam inúmeras vezes. Contudo, foram estas três partidas e uma chegada que marcaram mais profundamente a jornada do terceiro filho. Uma posição peculiar!

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Sons do Passeio

Araras de vários tipos. Canindés. Azuis. Vermelhas. Outras aves. Igualmente agitadas. Sonoras. Caminho enquanto o sol se põe. Final de tarde invernal.
Conversas. Mulheres e homens. Moços e moças. Criancas. Brincando e gritando. À beira do lago, quase em frente à ilha dos macacos, som de trompete. Um rapaz toca. Triste. Um blues. Muito lento. Reconheço a música. Não sei nominá-la. Memória ruim para nomes de música. De fato, raramente procuro saber os títulos das músicas que ouço.
Um ponto fraco? Talvez. Não saber o nome da música já dificultou nalgumas aproximações. Tento me valer de pontos fortes. Quem não os tem? Além disso, pra que teriam servido tantos anos de estudo de estratégia? Se não souber explorar pontos fortes e minimizar pontos fracos, volte pra escola!
Porém, conquistas e seduções não estão em pauta hoje. O que me dizem os sons do Passeio?
Anos atrás, vinha com muita frequência. Morava muito perto. Era meu espaço de caminhadas. Depois, as visitas rarearam. Mudei para longe. Durante dois anos, ficava na rota de meu caminho ao trabalho. Sempre que possível a pé. Nas ruas laterais, frequentes convites. Vamos hoje querido? Recusava a todos com meu sorriso generoso. Gosto de sorrir! Me dizem generoso! Só juntei os dois.
Mais uma mudança. Dessa vez, novamente, próximo do Passeio. Retomo as caminhadas. Esporádicas. Talvez, voltem a ser hábito. Me mantenho com ouvidos atentos. Sons do Passeio. Na forma de prantos. Risadas. Negociações. Assobios. Galanteio. Imprecações. Sussurros. Estes, algumas vezes, não me escaparam. Ouvidos de professor. Em aula, de vez em quando, fingi não ouvir.  Faz parte do ser generoso. Com os estudantes. Dar-lhes uma sensação de esperteza. Ou será competência? Agora e aqui isso não importa.
No Passeio, quero ouvir. Tudo. Sempre. Sons do Passeio. Já inspiraram verso e prosa. Minha dose quase diária de escrita precisa deles. Como na semana passada. O blues à beira do lago. Contrastava o grasnado das araras. Melancolia de um lado. Vivacidade do outro. E, entre os dois humores, a vida seguindo. Preciso dos sons do Passeio...

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Fantasia

Fantasia, você gosta? Foi a pergunta que ela fez. Ele estranhou a pergunta. Viajara a negócios. O vôo atrasou. Perdeu a reunião da tarde. Fez check-in. Tomou um banho. Desceu para o bar. Quase nove horas.
Ela morava naquela cidade. Frequentava o bar daquele hotel. Gostava do ambiente. Lembrava um pub. Se imaginava em Londres.
Terça-feira. Noite tranquila no bar. Além dos dois, um casal de meia idade e duas moças. Falavam muito. E alto. Muito!
Fingiu que não ouviu a pergunta. Ficou sem saber o que dizer. O que você disse? Ela repetiu. Fantasia, você gosta? E abriu um sorriso.
Meio sem jeito, ele sorriu. Corou. Depende. Foi a resposta. Sem saber, tinha caído na armadilha. Ou mordido a isca. Você escolha a metáfora.
Ela estava pronta para o bote. Fitou-o bem nos olhos. Como uma serpente, tinha um olhar paralisante. À vítima não havia outro caminho, a não ser se entregar.
Venho a este bar três vezes por semana. Ela continuou a conversa. Me imagino em Londres. Notou como tem um ar de pub aqui? Ele só conseguiu balançar a cabeça. Concordou. Ia falar alguma coisa. Não deu tempo. Ela emendou.
Há trinta anos, assisti a O último tango em Paris. Você viu? De novo, ele só conseguiu confirmar com um meneio da cabeça. Então, minha fantasia é repetir aquele encontro. Uma mulher. Um homem. Um apartamento. Nenhum nome. O que acha?
Algo lhe dizia que não deveria aceitar. Mas, que homem é capaz de resistir a uma tentação desta. Ainda mais, ele. Também já tivera esta fantasia. Lembrou da cena da manteiga. Será que ela toparia? Pediu a conta. A dela também. Mandou registrar em seu apartamento. O caixa pediu que assinasse. Disse seu nome. Obrigado doutor Marlon. Ela ouviu. Explodiu. Porra! Caralho! De novo, Geremias! Você estragou tudo!
O caixa caiu na gargalhada. Ela foi embora. Ele não teve tempo nem de piscar. Ela saiu rindo muito. Mais um trouxa caíra no golpe dela. Alcoólatra, não tinha dinheiro pra sustentar seu vício. Montara o esquema com Geremias. Ele, em troca, transava com ela aos sábados. Sem fantasia.

domingo, 1 de julho de 2018

Ação e reação

Ela me disse:
_ Quando tocamos alguém, tocamos algo que nos tocará de volta.
A conversa era sobre relacionamentos em uma idade mais madura. A impossibilidade deles, a essa altura da vida, basearem-se apenas no sexo.
Imediatamente lembrei-me de Merlí. Uma das personagens mais sedutoras que já vi nas telas. Professor de filosofia, carismático, provocador, manipulador e, acima de tudo, sedutor. Na trama da série da Netflix se envolve com Gina, mãe de um dos alunos. Em um dos episódios, ele resiste, quase estoicamente, a se declarar amando Gina.
A princípio, se aproximara dela pelo sexo, assim como fizera com outras personagens. Mas, no caso de Gina parece ser diferente. Se bem que sobre Merlí nada pode ser afirmado com certeza. Ao menos, enquanto a série não chegar ao fim.
Pensei que, se fosse da vida real, Merlí concordaria com a qualificação que ela deu ao amor em um comentario em uma rede social: dulcíssima prisão. Se bem que a personagem de Merlí não usa as redes sociais. Crítico feroz delas.
Nosso reencontro foi recente. Facilitado pelas redes sociais que Merlí tanto crítica. Ambos sabíamos que essa aproximação poderia levar ao sexo. Mas, não foi no primeiro encontro. Este foi o começo da sedução. Mútua. Sabíamos o que buscávamos. Não tínhamos consciência plena do que aconteceria depois. Esta era a razão da conversa. Um pouco ao estilo Gina e Merlí.
Mas, voltando ao começo, você pode estar se perguntando da razão do título. Por que ação e reação?
É que quando ouvi o que ela disse, lembrei-me do velho princípio da física: a toda ação corresponde uma reação. É claro que nossa conversa não tinha nada a ver com a física, com a matéria. Ou apenas com o sexo. Desejo levou ao beijo. Beijo trouxe o toque.  Toque despertou tesão. Tesão levou ao orgasmo. Pronto. Nada disso! O buraco é mais embaixo! E aqui estou sendo metafórico e não literal. Faça o favor!
E daí? Você me pergunta ansiosamente. Calma, chego lá. Na minha idade me permito ir mais devagar. Em tudo! Esse final carrega múltiplos sentidos e foi de propósito. Pura provocação nessa altura do texto.
Tocar alguém não é só um ato físico. Também tem múltiplos sentidos. É sobre um desses outros sentidos que ela falava.
Hoje de manhã, voltando da feira, duas mulheres passaram por mim, e ouvi de uma delas:
_ É o princípio da ação e reação. A gente faz algo e logo vem a reação. Causa e efeito.
Pois é! Parece que foi o nosso caso. Nos tocamos. E não só fisicamente. Está sendo bom. Em algum momento, talvez, tenhamos que decidir sobre resistir ou não à dulcíssima prisão. Por enquanto? Vamos nos tocando. Em todos os sentidos.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Mundo sem graça

Seios exuberantes. Pareciam querer saltar pra fora da camiseta preta. Decote arredondado quase incapaz de contê-los. Bronzeados. Foi difícil acreditar que fossem naturais. Deveriam ter sido incrementados com algum implante de silicone.
Se bem que ela era uma mulher alta. Acima de 1,85 metros. É óbvio que não medi a altura dela. Mesmo porque, se tivesse a oportunidade, preferiria medir o busto. Devo confessar que, até eu que nunca fui muito atraído por mulheres de seios volumosos, tive que admirar o que vi. Eram realmente grandes e proporcionais à altura dela. E belos. Sinuosos.
Caminhávamos em direções opostas. Me pergunto se a admiração que senti foi visível. Em poucos segundos, em uma distância de não mais que cinco metros, após desviar o olhar e voltar a mirá-la, os seios estavam encobertos por uma fina blusa preta de lã.
Sem nenhuma razão para tal, me senti envergonhado. Nunca a vira. Será que ela ficou com medo de algum ataque repentino. Impossível! Era pouco mais de uma da tarde. Estávamos na calçada de uma rua muito movimentada. Sol brilhante!
Apesar de ser o primeiro dia de inverno, o calor do sol estimulava um descobrir-se. Mas ela se cobriu. Mal resisti à vontade de dizer-lhe que os seios não mereciam ficar totalmente ocultos. Ademais, os raios solares ajudariam a manter a bela cor do bronzeado.
No entanto, ao passar ao seu lado mantive-me calado. Nesses tempos ambíguos em que vivemos, é cada vez mais arriscado elogiar a beleza. Seja de uma mulher ou de um homem. Tive medo de ser chamado de velho tarado! De que ela confundisse a admiração do belo com assédio.
Me satisfiz com a oportunidade de ver a beleza efêmera. Efêmera porque foi rapidamente escondida. Efêmera, também, porque a natureza é implacável com nós humanos. Tem no tempo um aliado que dificulta a permanência da beleza na maioria de nós, meros mortais.
Segui meu caminho com minhas preocupações mais cotidianas. Resolver um problema de plug inadequado de uma máquina de lavar. Cono substituí-lo? Por enquanto, são decisões mais urgentes. Preciso lavar roupa.
Já a graça do mundo, é algo em que pouco posso interferir. Posso apenas constatar o óbvio: o mundo vai ficando cada vez mais sem graça!

segunda-feira, 4 de junho de 2018

ELES PARECIAM FELIZES

Eles pareciam felizes. Foi o que ela disse. Ao passarem por mim, não pude deixar de ouvi-la. Ao seu lado um rapaz. De mãos dadas.
Sobre quem era o comentário? Esta pergunta me veio à mente. Não tive como saber! Como não conhecia nenhum dos dois, não pude perguntar. Segui no meu trajeto. Em direção oposta ao do casal.
Mais à frente, não mais que trinta metros, um cartazete grudado a um poste chama minha atenção. Minha imaginação dispara. O comentário dela tinha que ver com esse cartaz. Estavam muito próximos. Tinham recém passado por ali. Ela devia estar falando de algum casal que fora ou poderia ser ajudado. Veja o cartaz:

Você sabe como sou curioso. Tive que ser rápido. Fiz a fotografia do cartaz. Me pus a caminhar rapidamente atrás do casal. Nossa distância era em torno de 60 metros. Passeavam. Sem pressa.    Quando cheguei perto, ouvi o que ele disse:
_ Estavam juntos a tanto tempo, né?
_ Quarenta ou quarenta cinco anos. Não tenho certeza. Ela respondeu.
Fiquei feliz. Ainda falavam do casal. Devia ser o mesmo do primeiro comentário. Você não acha? Impossível que já estivessem falando de outro.
Diminuí o passo. Ela continou:
_ Uma hora tinha que acontecer.
_ Quase uma vida juntos. Tempo pra caralho!
_ Não gosto quando você fala palavrão.
_ Desculpa.
Foi a resposta dele. Ela continuou:
_ Foi um final bonito. Os dois foram encontrados abraçados e mortos. Depois de uma noite de amor. Estavam pelados.
_ Puta que pariu! Exclamei em voz alta. Os dois viraram pra trás. Eu me desculpei.
Veja você, que azar! Não tinha nada a ver com o cartazete. Curitiba é inundada por esse tipo de anúncio. Já falei disso antes. Eu curioso pra saber se funciona. Porra! Ainda bem que você não se incomoda com palavrão.
Tem uns até que dizem que o pagamento só é feito após o resultado. Se o amor não voltar, não paga. Me pergunto se tem alguma garantia. Vai que volta e depois vai embora de novo. Sei lá! Um dia posso precisar. Nunca se sabe!
Felizmente, estávamos em uma esquina. Eles seguiram em frente. Virei à esquerda. Estava perto do Passeio Público. Era feriado. Fui dar uma volta. Lá sempre vejo ou ouço alguma coisa que pode dar uma boa estória. Qualquer dia publico um livro. Já tenho até o título: Crônicas Curitibanas.

domingo, 27 de maio de 2018

Espiral

Sono me derrubava. Queria continuar a leitura. No entanto, vezenquando, os olhos se fechavam. Com vida própria, impossíveis de controlar. Eu perdia o fluxo das palavras. Ao reabrir os olhos, não me lembrava de onde a leitura fora interrompida. Parece até que sonhava.
Abandonei o livro sobre o criado-mudo. Era cedo para dormir. Comecei a escrever este texto. Um relato verdadeiro, pelo menos até aqui. Mas, a que leitor pode interessar um relato desta natureza? Mesmo que verdadeiro!
Hora da invenção, então! O que posso dizer, quer dizer escrever. Outro dia, apaixonado, escrevi uma poesia. Me imaginei no lugar de um compositor, um poeta e um cineasta. Se fosse o primeiro, uma cantiga à mulher amada escreveria. Se fosse o segundo, à mulher amada do amor falaria. Se fosse o terceiro, a mulher amada na ribalta colocaria. Como não era nenhum dos três, encerrei a poesia dizendo que pela mulher amada tudo faria.
Mas, onde está a invenção no parágrafo acima? Ou o quem foi o fruto da imaginação? A poesia? A mulher amada? Eu? Os três?
Nenhuma das alternativas devo lhe confessar. Na verdade, a única invenção de todo o escrito até aqui é a frase: hora da invenção, então! Fora isto, o restante é um relato verdadeiro. Mas, a que leitor pode interessar um relato desta natureza? Mesmo que verdadeiro!
Hora da invenção, então! Começo de novo. Foi uma noite inesquecível. Ela foi buscá-lo de carro. Um jantar de comemoração do aniversário dele. Tinha sido três dias antes. Mas, não puderam se encontrar naquele dia. Diferente do primeiro encontro, nessa noite ele conseguiu pegar na mão dela várias vezes. Igual ao primeiro encontro, os dois não sentiram as horas passarem. Muito a contar de um tempo que não se conheciam. Enfim, ficara tarde e ela o levou de volta. Se despediram. Cada um em seu lugar, o sono demorou a chegar. Depois que chegou, foi um sono cheio de sonhos. No sonho se beijaram.
Terei enfim inventado algo pra você que me lê? Ou não? Hoje estou me sentindo um pouco ardiloso. Parafraseando Pessoa, será que o sonhador é um fingidor? Que finge que é sonho, o sonho que deveras sonha?
Volto pro livro. O sono se foi. Verdade ou ficção?

terça-feira, 22 de maio de 2018

As metas de Eros

Eu os conheci no primeiro momento em que se encontraram. Nem ela, nem ele perceberam que estavam sendo observados. Eu sei ser discreto.
Fiquei observando como se aproximaram. Nunca tinham se visto antes. Foi o acaso o culpado. Na fila do banco, os dois tinham a mesma senha.  No momento em que o número acendeu no painel, os dois se levantaram. Caixa 7 informou o painel. Ela estranhou. Ele estranhou. O bancário riu. Disse:
_ Terceira vez hoje! Deve ser alguma pane no sistema.
Ela foi gentil:
_ Atende ele primeiro. Tenho muitas contas pra pagar.
Sem jeito, ele aceitou:
_ Obrigado moça. O meu é só descontar esse cheque.
Assim que pegou o dinheiro foi embora. Ela se demorou. Era muita conta mesmo! Eu ia ter que dar um jeito em fazê-los se encontrarem de novo. Atrasei o ônibus dele. Não podia contar com o acaso de novo. Seriam um belo casal. Se eu fosse bem sucedido.
Quando ela chegou ao ponto de ônibus, ele estava lá. Sorriram. Mas, não se falaram. Dois humanos dificeis. Alguém lá em cima me sacaneou. Podia ter dado uma tarefa menos complicada. Mas, eu sou teimoso.
O ônibus chegou. Só aceitava cartão. Nada de dinheiro. Ele deixou ela subir à sua frente. O cartão dela estava sem saldo. Foi a vez dele ser gentil. Ela disse que estava sem dinheiro. Ia descer. Ele não deixou.
_ Usa o meu.
Ela aceitou. Sentaram juntos no ônibus. Na verdade, o cartão tinha saldo. Eu que dei um jeito de bulir com a catraca. Um leve empurrãozinho. Travou. Parecia cartão sem saldo. Ambos iriam até o ponto final.
Lá chegando, ela o convidou pra tomar um café em sua casa. Quase em frente ao ponto.
_ Quero retribuir sua gentileza.
_ Não precisa. Ele disse. E continuou:
_ Você foi gentil comigo no banco.
Ela insistiu. Ele aceitou. Ainda bem. Eu já estava ficando nervoso. Tenho que bater a meta. Dez casais por semana. Caso contrário, tenho que enfrentar a ira de alguém lá em cima.
Esse é o problema com estas metas quantitativas. A gente perde a noção da qualidade. Com esses dois foi amor à primeira vista. Só que os dois tinham medo. Da outra vez, meus colegas forçaram a barra. Tanto ela, quanto ele tinham sofrido muito na última relação.
Eu queria muigo ajudar. No entanto, a regra é clara: nós só podemos arranjar os encontros. Daí pra frente é com ela e ele. É preciso acreditar no amor. De novo! Minha parte eu tinha feito.
Os dois tinham medo mesmo. Trauma é foda! Eu já não estava acreditando. Virei as costas. Comecei a ir embora. Esforço vão. É o que parecia. Alguma coisa me fez olhar pra trás. Vi que estavam de mãos dadas.
Mão dada é um dos indicadores mais fortes. Pode até ter sexo, mas se não tiver mão com mão não vai pra frente. Acredite em mim. São milênios de experiência.
O que me aborrece é este sistema de metas. Os caras lá de cima só querem saber de quantidade. Aí contam qualquer transadinha como um sucesso. Ledo engano. Esses casos não duram muito!
Mas, dessa vez eu acertei. Pra mim o que importa é a qualidade. Dane-se o resto. O duro é que eu tenho minha meta pra cumprir. Vou hoje à noite em algum boate. Bato a meta fácil. Lá em cima ficam felizes. Eu não. Gosto de qualidade. Já falei, né?

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Memory Lane

Ontem, em São Paulo, resolvi passear um pouco pelo bairro da Liberdade. Aos 16 anos, poucos meses antes de chegar aos 17, fui estudar em São Paulo. Na transição da adolescência para a juventude, anos de formação para a vida adulta, viver sozinho em São Paulo foi parte fundamental de minha história. É claro que fui bancado por meus pais nesse período que, felizmente, tiveram condições de pagar por meus estudos e moradia.
Fui para concluir o segundo grau e, ao mesmo tempo, fazer cursinho para me preparar para o vestibular de engenharia. Morava na pensão da Dona Genoveva e seu Orlando na rua Tamandaré, muito próximo do curso Anglo onde estudava. Fui até lá ontem, mas a pensão não mais existe.
Nesse retorno ao passado, down the memory lane, como dizem os ingleses, fui de metrô até a estação Liberdade e desci pela rua Galvão Bueno até a rua Tamandaré.
No caminho, passei por um bar/restaurante japonês que, provavelmente, é o mesmo em que tomei saquê quente pela primeira vez. Se não me engano, na companhia de Edson Romero Ugolini, Sergio Bordin e, talvez Eduardo Franzon. Londrinenses que também moravam na pensão. Franzon dividiu quarto comigo, mas não ficou muito tempo por lá.
Quase na esquina da Galvão Bueno e Tamandaré, encontrei a velha banca de revista na qual comprei muitos gibis e livros. Foi nela que comprei um livro de João Cabral de Melo Neto, cujas poesias me emocionaram ainda jovem. Naquele ano, eu guardava uma nota de 1 cruzeiro por dia, e quando tinha juntado um pouco comprava um gibi ou livro nessa banquinha. Foi o único período da vida em que consegui guardar algum dinheiro, mesmo que por períodos curtos.
Enfim, fiz o mesmo caminho de volta. Como fazia aos domingos quando ia, ou em direção aos cinemas do centro, ou em direção à Avenida Paulista e rua da Consolação para chegar ao cine Belas Artes. De vez em quando ia a um cinema que ficava ao lado da Praça da Liberdade, que exibia filmes japoneses. Mas, era nesse esquina que eu, jovem andarilho dominical, escolhia o caminho a ser trilhado.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Sobre o amor ou Manifesto de um apaixonado aos 61

Outro dia fui diagnosticado como apaixonado. Não perguntei se é doença. Creio que não. Acho que é mais um jeito de ser. Assim, não preciso me preocupar com a cura. No entanto, como apaixonado achei que deveria escrever sobre o amor.
Tanto já se escreveu sobre o amor. Há, ainda, algo novo a ser dito? Novo? Não sei! Mas, algo a ser dito? Certamente.
Na semana que vem completo o primeiro ano de minha sétima década de existência. Chego à versão 6.1.
Nesse tempo de vida, experimentei diversas formas de amor: maternal, paternal, fraternal, filial, platônico, entre outros. Até mesmo o filosófico. Aquele que surge da vontade de conhecer e entender a vida. Nesse tipo de amor corre-se o risco da paixão. Paixão pela vida!
O platônico foi na juventude. Quando não fui capaz de vencer barreiras que impediram que o transformasse em outra forma. É o amor que foi sem nunca ter sido!
E o que dizer do amor religioso. Religioso? Você pode me perguntar. Confesso que não sei se essa é a melhor palavra. Talvez espiritual? Sem crença religiosa, sinto dificuldade em qualificar esse amor. Mas, é o amor ao próximo que aprendi nas aulas de catecismo ainda criança. Na religião que ainda adolescente perdeu sentido para mim. Dela sobrou essa noção de uma forma de amor. Talvez, a melhor essência do que tentaram me ensinar nas aulas de catecismo. Esse amor que se manifesta na solidariedade pelo outro. É o amor pregado por Confúcio, Cristo e muitos outros humanos que procuraram transcender à vida orgânica e material.
E a amizade? Essa forma de amor que, ao contrário do que afirma o Facebook, é rara. Não se encontra facilmente. É gema preciosa que precisa ser garimpada. E, quando encontrada, lapidada. No estado bruto já é belo esse amor. Com o tempo, seu brilho se acentua. E continua brilhando mesmo quando os sujeitos desse amor estão distantes.
Já senti, também, aquele que Vinicius desejou que fosse "eterno enquanto dure". Aquele que surge primeiro como paixão. Não foram muitos. Como chamas, também não foram infinitos. Como chamas, ainda, arderam. Muito quando acesas. Bastante quando se apagaram. Arder quando se apaga? Impossível! Talvez no mundo da lógica. Porém, quem já viveu esse amor sabe o que quero dizer. São formas diferentes de ardência. A primeira é gostosa. A última dolorosa. Mas, acima de tudo, ardências.
E agora? Como que isso termina? Esse texto quero dizer. Não o amor! O amor sempre se faz presente. Em suas múltiplas formas. Nunca termina.
Será que me coloquei em uma enrascada ao querer falar sobre o amor em prosa? É um tema só pra poesia? Nesse formato, já tentei. Não sei se fui feliz! Mas, ardente? Sim. Um discípulo/aprendiz não muito bem sucedido de Neruda, Vinicius e Florbela.
Então... Parece que estou lhe enrolando, não é? Mas vamos ao ponto final.
O que eu queria dizer mesmo é que é impossível viver a vida sem as múltiplas formas do amor. E ela brilha ainda mais quando uma dessas chamas, que não são infinitas posto que são chamas, se acende em nós. Eu sigo em busca dessa chama. Em busca dessa ardência. Sem ponto final!

terça-feira, 15 de maio de 2018

De noite todos os gatos são pardos

Ela queria vê-lo à luz do dia. Haviam se conhecido à noite. Em um bar. Depois de terem assistido uma peça no teatro Guaíra.
Nenhum dos dois costumava sair à noite. Dormiam cedo. Mas, naquela noite eles tinham ido ao teatro. Sózinhos. Ainda não se conheciam. A peça era Gata em teto de zinco quente, em uma versão adaptada para o século 21 a partir da clássica peça de Tenesse Williams e sua filmagem em 1958 com Elizabeth Taylor e Paul Newman dirigidos por Richard Brooks.
A adaptação tinha ficado um pouco estranha. Perdera muito da dramaticidade do texto original e do filme. No entanto, o teatro estava lotado. Os papeis principais eram representados por um casal famoso das novelas brasileiras. Isso, todavia, não interessa pra nossa história.
Na confusão da saída de quase mil pessoas, os dois se esbarraram e a bolsa dela caiu no chão. Ele foi rápido. A pegou antes dela. Ela agradeceu. Ele imediatamente perguntou se ela havia gostado da peça. Ela fez um muxoxo e disse:
_ Não muito.
Ele concordou:
_ Eu também não.
Continuaram saindo. Sem se falar. Na porta central, ele foi à esquerda. Ela na outra direção. Por incrível que possa parecer, se encontraram na entrada do bar que ficava duas quadras distante do teatro, bem no meio da rua paralela aos fundos do teatro. Caminharam a mesma distância em direções opostas. Essa seria uma observação que ele faria quando tiveram que dividir uma mesa no bar.
O bar estava lotado. A hora que chegaram um casal estava se levantando. O garçom pensou que estavam juntos. Se olharam. Riram. E disseram ao mesmo tempo:
_ Por que não?
O garçom não entendeu. Conduziu ambos à mesa. Deixou o cardápio. Voltou um pouco depois. Os dois descobriram algo em comum, além do desprazer com a peça: comida árabe. Só que ela não comia carne. Dividiram um mix de pastas. Ele pediu também um quibe assado.
O ambiente do bar era iluminado por luzes amarelas. E, não muito iluminado. Havia uma certa penumbra que dominava o ambiente.
Ela não havia prestado muita atenção nele na saída do teatro. Mas, com a coincidência de chegarem ao mesmo tempo, ficou curiosa. Ele também.
Depois de quase duas horas de conversa, parecia que se conheciam há muito tempo. O bom humor foi constante na conversa. Riram muito da atuação canhestra do jovem casal de sucesso nas novelas. Não tinham nenhum talento para o teatro.
Na hora de embora, os dois pensavam em um jeito de se reencontrarem. Ela lembrou do ditado popular: à noite todos os gatos são pardos. Queria vê-lo à luz do dia. Ele só queria ter a chance de vê-la de novo. Alguma coisa lhe dizia que seria bom.
Quase que ao mesmo tempo, falaram:
_ Domingo de manhã tem apresentação da orquestra. Você não quer vir?
Sorriram. Combinaram de se encontrar na entrada. Os lugares eram livres. Se encontraram. Assistiram ao concerto. Foram almoçar juntos. Ela não quis sobremesa. Ele, louco por doce, deixou de pedir o tiramisú que era a especialidade do lugar. Tomaram café.
Na saída, ela disse:
_ Você é muito bonito à luz do dia.
Ele ficou sem jeito, corou, sorriu e beijou as mãos dela.
E foram felizes para sempre.

domingo, 13 de maio de 2018

Encontros

Quando a vi pela primeira vez, sua beleza me impressionou. Foi na festa de aniversário de uma amiga. Ainda eram poucos os convidados presentes. A luz amarela contrastava com seu vestido preto. Estava radiante. Corte de cabelo curto. Do jeito que sempre me atraiu nas mulheres.
Precisava dar um jeito de me aproximar. Mas, carrego uma barreira invisível para todos. Intangível. Poderosa, no entanto. A timidez. Olhei para ela. Ela me olhou. Alguém nos apresentou.
Poucas palavras nesse primeiro encontro. Outros amigos chegaram. Ela se voltou para os seus. Eu para os meus. Nos aproximamos da mesa com as bebidas. Cada um se serviu de seu vinho. O fotógrafo da festa fez o registro. Só soube disso muitos dias depois. Me antecipo. Esta parte vem depois.
Algumas trocas de olhares entre nós. Pelo menos foi o que me pareceu. No entanto, pode ter sido mero acaso. Meu desejo de que o interesse fosse mútuo poderia ter me iludido.
A certa altura, a vejo conversando animadamente com outro cara. Pareciam íntimos. Pergunto para um amigo se sabia quem era ela. Me disse:
_ Não sei. Mas, parece que está com o namorado.
Inteligente esse meu amigo! Responde mais do que quero. Sabe do porquê da pergunta.
Mas, embora tímido, persisto. Aguardo algum momento de aproximação. A certa altura, sentados em mesas próximas, ficamos sózinhos.
Puxo conversa. É daqui? O que faz? As mesmas perguntas para mim. Na conversa surge um interesse comum. O cara volta. Participa da conversa. Outro amigo me faz uma pergunta. Me distancio dela novamente.
Chega a banda da festa. A música eletrônica é substituída. Muitos dançam. Eu não. Observo. Ela dança só. Atraente. Fico olhando. Mais uma vez, tenho a impressão de um olhar de retorno. Depois de algum tempo, vou pra casa. Como se diz, saio à francesa (não faço a mínima ideia da razão dessa expressão). Discretamente. Sem me despedir.
No dia seguinte, a partir do que ela me contara, encontro seu email na internet. Esse mundo virtual é maravilhoso às vezes. Uso nosso interesse comum para mandar uma mensagem. Ela responde. Nos encontramos no face.
Dias depois, ela me manda a foto com nós dois. Presumo que a amiga da festa que lhe encaminhou. Uma foto bonita! Graças a ela, retomamos contato. Quase todo dia. Pelo messenger. Algum dia tenho que agradecer ao fotógrafo.
Surge a oportunidade de um reencontro. Saímos para um jantar. Massa e vinho. E uma conversa agradável. Fui buscá-la em seu prédio. Luzes amarelas da portaria causaram o mesmo efeito de quando a vi pela primeira vez. Radiante e linda. No restaurante me encanto por seus olhos. E seu sorriso.
Horas depois, a deixo em casa. No caminho para a minha, penso nos encontros que o acaso realiza. Preciso agradecer mais alguém, além do fotógrafo. Minha amiga que se lembrou de mim e chamou para a festa de seu aniversário.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Diário de bordo

 Não queria muita conversa. Já haviam decorridos mais de oitenta quilômetros de viagem. O ônibus estava quase lotado. Na parte superior apenas duas poltronas desocupadas. Na inferior não pude saber. Era o espaço das cabine-camas. O dos que podiam pagar o dobro da passagem. Uma das únicas situações em que os pobres ficam por cima.
Tentei puxar assunto perguntando se morava no nosso destino. Não, foi a resposta. Vinha de cidade próxima ao ponto de partida. Ia a trabalho para o destino. Quis perguntar qual, mas me senti intrusivo. Essa minha maldita educação inglesa!
Pode ser que o silêncio tivesse sido causado por mim. Antes do embarque, eu lia um livro. Fui o primeiro a embarcar. Continuei lendo. Ela chegou depois. Sua poltrona era ao lado da minha. Junto à janela. Fui me levantar, mas ela disse que ainda não. Ia buscar uma coberta para mais tarde. Disse que o ar condicionado lhe causava frio. Minutos depois voltou com a coberta na mão. Se acomodou ao meu lado.
Eu continuei a leitura. Na tv interna começou um desenho animado. Mais uma sequencia da Era do Gelo. Mais uma possibilidade de ar frio?
Assisti um pouco. A transmissão ficou instável. Cheia de interrupções. Peguei o livro e concluí a leitura. Só faltava o epílogo. Há muito tempo não via um livro cuja parte final se chamasse epílogo.
Mas, e o epílogo dessa história qual será? Ainda tem mais quatro horas de viagem! Você deve estar curioso, não é? Aguenta firme. Vou lhe dar algumas possibilidades:
1. O motorista reiniciou o mesmo filme após o seu término. Descobri que era A era do gelo: big bang. Assisti o filme todo e dormi o resto da viagem. Um pouco ao estilo novela das seis.
2. A temperatura interna caiu muito. Ela ofereceu um lado da coberta. Reclinamos as cadeiras. E, tudo começou com as mãos dadas. No destino, nos despedimos sem ao menos perguntar nomes. Uma homenagem ao Último Tango em Paris.
3. Ela continuou calada. Passou o tempo todo tentando acessar o wifi do ônibus. Sem sucesso, depois da parada conversamos até o destino. Nada especial.
4. Nenhuma das anteriores. Resolvi escrever este texto. Enquanto escrevo fico imaginando qual o trabalho dela que justifique essa viagem.
Pensei que podia ser uma dançarina das boates do centro de Curitiba. Voltando de uma visita aos pais que moram no interior. Eles pensam que ela é comerciária.  Um pouco ao estilo daltoniano.
Outra opção é ser cuidadora de idosos. Trabalha em uma instituição sem fins lucrativos. Como o salário é baixo, faz uns bicos como massagista para aumentar a renda. Especializada em falsa massagem tântrica. Um pouco ao estilo rodriguiano.
A terceira opção é ser profissional da estética. Depiladora. Aos fins de semana vai pra sua cidade natal, atender amigas e familiares. Na capital tem um namorado que não trabalha. Ela o sustenta. Tem vontade de largá-lo. Não consegue. Vive à beira de um ataque de nervos. Um pouco ao estilo almodovariano.
Ela, de repente, me perguntou se eu tinha conseguido acessar a intermet. Disse que não. Gosto de escrever, falei pra ela. Escrevo uma estória.
_ Posso ler?
Ela me perguntou. E completou:
_ Sou professora do ensino médio. Português. Estou indo para um treinamento de como ensinar redação.
E agora? O que respondo?
Me fudi! Um pouco no estilo woodialleniano.

sábado, 21 de abril de 2018

A Reconstrução

Reconstruir depende do que sobrou. Depende também do que queremos resgatar do que já foi. Pode parecer uma reforma. Mas, ao contrária desta, a reconstrução é, inicialmente, não voluntária. Se impõe. A reforma não se impõe. É escolha.
Depois de iniciada, contudo, se abre para nossas escolhas. Fica com um certo ar de voluntária. Mas, na raiz, na origem, sabemos que não é.
A reconstrução menos difícil é a da terra arrasada. Quando não sobra nada, não há o que preservar. Tudo pode ser reimaginado. Tudo pode ser diferente do que já foi. Não há compromissos com o que já foi.
O foda mesmo é quando a destruição é parcial. Nos escombros vemos reflexos do que foi. A tentação de recriar o que já foi é enorme. Quase irresístivel! Das ruínas, imaginamos o ressurgimento das mesmas paredes, das mesmas cores e, até, das mesmas dores.
Mas, e se o que já foi teima em não se moldar à reconstrução? Nessas horas, por mais que doa, o melhor é eliminar os escombros. Destruir o que sobrou. E criar o novo. De novo.

domingo, 15 de abril de 2018

Fim da linha

Naquela dia, acordou mais cedo. Um sonho que inspiraria Buñuel e Dali tornara o sono agitado. Viajava de ônibus pela avenida principal da cidade. Uma passageira, idosa, acima dos 70, se transformava em uma gata cinzenta. Agressiva. Avançava contra ele. Só recuava quando ameaçada por uma faca. De onde surgira essa faca? Não conseguia localizar sua origem.
Acordava suando. Assustado. Logo adormecia novamente. O sonho se repetia. A cada ataque da gata velha ele se aproximava da catraca do cobrador. Ficava no meio do ônibus. Da última vez, notou um maço de dinheiro no chão. Presas por um elástico, eram notas de cinquenta reais. Pelo volume devia ser mais de mil reais.
No último ataque da velha gata ao invés de ameaçá-la com a faca abaixou-se. Pegou o dinheiro. Na confusão ninguém notou. A gata velha pulou por cima da catraca e saiu em disparada pela porta que se abrira. Os demais passageiros desceram. Todos. Era o ponto final.
O motorista gritou lá da frente:
_ Fim da linha. Carro vai recolher. Todos têm que descer.
Ele quis sair. Na porta, no degrau mais baixo, a velha gata. Mostrava os dentes. Não parecia agressiva. Ao contrário, parecia sorrir. Olhava para o dinheiro que ainda estava na mão dele.
O motorista acelerou, mas o ônibus não saiu do lugar. Impaciente. Falou pra ele:
_ Tem que descer meu chapa.
Pisou no primeiro degrau. A gata velha avançou. Ele escorregou. Caiu no infinito. Acordou como se estivesse caindo de verdade. Uma sensação de impotência. Lembrou do rosto do motorista no sonho. Era um rato. Igual ao que vira na tarde anterior no meio da rua.
Quis sair da cama. Não conseguiu levantar. O peito sentia a pressão de uma haste metálica. A cabeça, no lugar do travesseiro, repousava sobre uma tábua. Sem tinta. Era uma ratoeira. Imensa. Na porta do quarto, a idosa lhe sorria. Era mesmo o fim da linha?
Não. Era dia de pagar o aluguel da pensão Gata Velha. Onde os ratos se escondem!

sábado, 14 de abril de 2018

Cinco pedrinhas

Caminhava na areia da praia. Qual? Não importa! Assim como foi naquela, poderia ter sido em qualquer uma.
Primeiro, foram três. Refletiam os raios do sol. Brancas. Não resisti. Peguei. Depois, fiquei me indagando se estava alterando o equílibrio da natureza. Eu e essa minha mania de grandeza! Bobagem. Elas continuaram comigo.
Mais à frente, mais duas. Menos brancas. Menores. Brilhavam também. Se juntaram às outras. Já não me preocupei com o desequilibrio da natureza. Havia muitas pedrinhas. Me contentei com as cinco.
Para que me servirão? Não sei. Ainda. O brilho delas se foi. Precisavam do sol. Nesse momento da vida, me ocorre, que estão prenhes do simbólico. Me fizeram lembrar que meu pai, algumas vezes, dizia a ela não me deixar só. Ela me perguntava porquê? Eu não sabia responder. Nunca soube!
Meu pai devia me conhecer melhor do que eu mesmo. Sempre me enxerguei como alguém que lida bem com a solidão. Mesmo em meio a multidões, me via só e são. Porém, olhando para trás, muitas vezes era uma solidão opaca. Sem brilho!
Meu pai sabia das coisas! Sabia de mim! De vez em quando levarei as cinco pedrinhas em busca do sol. Elas vão brilhar. Eu também!

sábado, 7 de abril de 2018

Na Estrada


No rádio do carro, ele buscava uma nova estação. Já estava muito distante do ponto de partida. O sinal da estação anterior já estava muito fraco. Irregular e cheio de ruídos. A única que sintonizou com clareza tocava música sertaneja. Apesar da rima – clareza sertaneja – não era seu tipo de música. Lembrou-se do pendrive que uma amiga lhe dera. Ela sabia de seu gosto. Devia ter músicas que lhe agradavam. Sinalizou, saiu para o acostamento, parou o carro e foi procurar o pendrive no porta-luvas. Encontrou. Deu um suspiro.
Quando estava colocando no rádio, ela apareceu. De repente. Bateu com a mão na janela do passageiro. Ele se assustou. Ela sorriu. Ele abaixou o vidro. Ela se desculpou:
_ Moço, não queria te assustar.
_ Não tem problemas. Eu estava distraído. Não lhe vi se aproximando.
_ Saí daquele mato agora. Estava apertada.
Ela pediu carona. Ele perguntou pra onde ela ia. A próxima cidade foi a resposta.
_ Fica uns 90 quilômetros daqui. Disse ela.
E continuou:
_ Pra onde o moço tá indo?
_ Tô sem destino. Qualquer rumo tá bom. Sobe aí.
Quando ela se sentou ao lado dele, mais um susto. Ela usava um shortinho minúsculo. A pele era branca, quase como leite. Lisinha. Nenhuma marca de pelo. O rosto estava na sombra quando se falaram. Era branco também. Usava uma camisa vermelha, Masculina. Com botões entreabertos logo acima dos seios. O short era de jeans. Velho. Desbotado. Nos pés, sandália rasteirinha. Tiras de couro enroladas até pouco acima dos tornozelos. Parecia uma miragem. Imediatamente, ele sentiu o pau intumescer. Fazia tempo que não transava. Estranhou. Na idade dele, isso já não acontecia com frequência. Quase 70 anos. Mas, gostou. Sentiu-se mais vivo Parece que ela notou o volume na calça dele. Desviou o olhar. Mas, não corou.
Deu partida no carro. Sinalizou, avançou e retomou o asfalto. Passava um caminhão. Ele não viu. O motorista buzinou forte. Conseguiu desviar do carro. Gritou:
_ Barbeiro filho de uma puta!
Ele, instintivamente voltou para o acostamento. Parou o carro. Muito assustada, a moça empalideceu. Ficou ainda mais branca. Como se isso fosse possível. Ele sentiu o pau amolecer. Ela notou de novo. Dessa vez não desviou o olhar. Pôs a mão esquerda sobre a coxa dele. Aproximou o rosto. Beijou a boca. A princípio ele se assustou. De novo. Mas, relaxou. Da boca, ela desceu para o pau.
Depois que ele gozou, ela baixou a janela do carro. Cuspiu. E disse:
_ Agora vamos. Você estava precisando disso. Eu também.
_ Vamos disse ele.
Sinalizou, acelerou o carro, entrou no asfalto. Outro caminhão. Um basculante. O motorista não conseguiu frear nem desviar. O carro ficou esmagado. Quando os corpos foram retirados, os bombeiros estranharam o sorriso no rosto dos dois. Um comentou com o outro:
_ Parece que estavam felizes!
O outro confirmou:
_ É. Deve ser bom morrer feliz!
No rádio, que, estranhamente, não desligara, uma música do Chico. Tua cantiga.
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Bastar dar um suspiro
Que eu vou ligeiro te consolar...