sábado, 28 de maio de 2016

O vento e as folhas

Ontem eu ouvi o vento. Não senti ele passar por mim. Olhei para o alto. As folhas se mexiam. Só de uma árvore. Nas outras, as folhas não se moveram. Só naquela. Linda!
Exibido, o vento me atraiu para aquela direção. Como ele conseguiu fazer aquilo? Queria me dizer alguma coisa. Não prestei atenção nele. Invisivel, só se mostra indiretamente. Como não lhe dava bola, achou um jeito de me tirar de meu caminho. Fui atrás de seu som. Ou seria o som das folhas?
O sol poente deixava as folhas brilhantes. Pareciam escamas de peixe. Quase me afoguei de encantamento. Me faltou o ar. O vento se exibindo para mim. E o ar me faltando. Vento não é feito de ar?
A vida, às vezes, é como o vento. Passa por nós. Se não cuidamos bem nem a vemos! Mas, ela tem suas artimanhas. Parecidas com as do vento. De repente, ela guia nosso olhar. Mostra o inesperado. Mancomunada com o vento, pode até nos tirar o folêgo.
Ontem eu ouvi o vento, vi as folhas, e me senti vivo.
Depois, à noite, falei para os alunos e alunas que tinham aula comigo sobre o que acredito: a esperança de que possam aprender o que seja significativo para eles. Na minha fala, escondida, assim como o vento, uma esperança. Que eu possa ser como o vento junto às folhas. Passar por eles e, momentaneamente, ajudá-los a refletir o brilho da vida. Já me darei por satisfeito.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Distração

(Da série: Contos curitibanos)

Distraído, pensava na vida. Seu ponto de desembarque ficou para trás. Só se deu conta quando o sistema de som do ônibus informou: Próxima parada Estação Central. O jeito foi descer ali mesmo. Andava meio confuso ultimamente. Até um pouco místico.Eram seus últimos dias de férias. Não tinha nenhum compromisso, assim não se importou muito com a distração. 
Quando ficara órfão, aos quinze anos, foi morar com o avô paterno. O avô era uma figura. Não professava nenhuma crença. Mas, quando bebia uma pinga no bar, jogava a dose do santo no chão. Ele achava graça. O avô ficava bravo:
_ Me respeite menino!
Tentava retrucar. O avô não deixava:
_ Um dia você vai entender.
Ao sair da estação, dirigiu-se à esquerda, rumo à Praça Santos Andrade. Virou a esquina, mal deu três passos, a viu sentada nos degraus da lateral do prédio histórico da UFPR. Uma velha cigana, com uma saia vermelha, lenço na cabeça, também vermelho, blusa azul marinho, brincos, colares, pulseiras e anéis, todos dourados. Ao vê-lo, ela disse:
_ Preciso falar com você?
_ Comigo?
_ Sim. Estava lhe esperando.
Nesse momento lembrou-se do avô. Fazia três meses que havia morrido. Um pouco antes de morrer havia lhe falado:
_ Uma mulher vai lhe procurar. Não deixe de ouvi-la.
Perguntou quem seria a mulher. A resposta:
_ Você não conhece. Mas, vai saber quando a vir.
Desde então sonhara várias vezes com o que lhe dissera o avô. Logo ele. Raramente lembrava de seus sonhos. Agora, todo dia acordava cansado. Era como se realmente tivesse vivido os sonhos. E, ainda por cima, lembrava de todos os detalhes. Mas, estranhamente, os sonhos eram em branco e preto, sem outras cores. A cigana lhe chamou de novo:
_ Vem cá menino!
Com quase trinta anos, estranhou ser chamado de menino. No entanto, subiu os degraus assim mesmo. Sentou-se ao lado dela. Imediatamente ela pegou sua mão direita. Virou a palma para cima. Seguiu as linhas da mão com o indicador. Disse:
_ Sabia! Assim que te vi. Minha intuição não falha. É você mesmo que eu procurava. Você não vinha para cá hoje, né?
_ Como sabe disso?
_ Tenho meu jeito de fazer as coisas. Não adianta eu explicar.
_ Tá bom. O que você quer?
_ Seu avô me deixou uma missão.
_ Meu avô?
_ Sim. Antes de morrer, conversou comigo. Pediu que lhe explicasse a dose do santo.
_ Como é que é?
_ Isso mesmo! Ele nunca lhe explicou. Pediu que eu lhe explicasse. Uma vez por ano me procurava. Vinha atrás de meus conselhos. Dizia que não acreditava em nada, mas o que eu lhe falava dizia fazer sentido. Nunca lhe fez mal.
_ Não acredito! Meu avô? Ele nunca acreditou em nada!
_ Não é verdade. Isto mudou. Foi quando ele começou a sonhar em branco e preto. ainda jovem. Na primeira manhã que acordou, ao se lembrar disso, saiu pra rua. Me encontrou aqui nesses degraus. Eu vi que ele precisava me ouvir. Chamei. Ele se sentou nesse mesmo lugar que você está.
Nesse momento, ele relaxou. Esticou as pernas. Encostou os cotovelos e as costas no degrau.
_ Me conta como foi isso.
Foi uma longa conversa.

sábado, 7 de maio de 2016

A Meio Caminho

Foi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite. Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade natal.
Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves. Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro. 
No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos atrás. Se espantou, pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase que ao mesmo tempo.
Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira. Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse:
_ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui?
Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele com quase sessenta. Ela não mais que dezenove.
_ A última vez que passei aqui você não era nem nascida.
_ Verdade?
_ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha ninguém. Fui criado em um...
De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa moça que nem conheço?
Ela tentou continuar a conversa:
_ Nossa. Por que está voltando agora?
_ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem. Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um...
Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando isso pra essa moça?
Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De repente, falou pra moça:
_ Tem algum hotelzinho por aqui?
_ Não. Por que?
_ Desisti da viagem. 
_ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio. Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito por aqui. Faço uma grana extra.
_ Verdade?
_ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem.
_ Topo. Que horas você sai?
_ Meu turno se encerra daqui meia hora.
Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retrato com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus.
_ Quem são?
_ Minha avó com um passageiro de um ônibus.
Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou:
_ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas, deviam ser como os seus.
_ O que aconteceu?
_ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sózinha. Os pais estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu.
Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou:
_ Que houve?
Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois disse:
_ Vou deixar você à vontade. E saiu.
Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela percebeu que ele já tinha ido embora.
Ao lado do porta-retrato, o livro de Dalton Trevisan e um bilhete:
"Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar."
Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis, brotam lágrimas. Ninguém sabe porque.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Vida que anda... De ônibus

Ontem eu vi uma garota chorando. Não pude fazer nada. Não a conhecia. Ela estava discretamente olhando para a rua. No canto de uma estação tubo. 
Para quem não é de Curitiba, explico. Estação tubo é uma parada de ônibus urbano em que você paga a passagem ao cobrador ou cobradora na entrada. Isso lhe dá o direito de embarcar em qualquer ônibus que passe por ela. O desembarque é sempre em outra estação tubo. Que pode ser o seu destino, ou ponto de conexão com outras linhas. É um sistema de transporte eficaz.
Mas, este não é um texto para comentar o transporte coletivo. Quero falar da vida. Que anda. Nas estações tubo quando não estou fuçando no celular ou escrevendo como faço agora, observo coisas e pessoas. A vida se mostra a quem quiser. Basta levantar os olhos do celular.
Assim, como disse, vi uma guria a chorar. Não a conhecia. Meu instinto paternal quase me levou a perguntar-lhe por que chorava. Mas, não tive coragem. Nestes tempos estranhos que vivemos, o medo de ser mal interpretado leva à solidão e reprime a solidariedade.
De outra vez, vi um casal com um casal de filhos. Jovens. Transmitiam uma felicidade contagiante. Embarcaram em uma estação tubo próxima a um shopping center. Vinham carregados de sacolas. O prazer do consumo recente parecia resplandecer no sorriso daquelas crianças e jovens pais. Não resisti ao contágio. Abri um sorriso.
Outro dia, eu no ônibus, entra uma senhora muito obesa. Sentou-se ao meu lado. Me senti prensado contra a janela. Me encolhi o máximo. Mas, não adiantou muito. Tentei pensar em outros apertos da vida. Aquele era só mais um. Um pouco sufocante. É verdade! Especialmente, para mim que sou meio claustrofóbico. Ainda bem que o aperto durou somente entre o trajeto de duas estações tubo. Menos do que muitos apertos da vida.
Algumas vezes, já cruzei com pregadores. Religiosos, não os de roupa. Apelos aos bolsos, que para muitos usuários já estão esvaziados de suas moedinhas. Um ou outro ainda acha, lá no fundo, um trocado. Faz juz a um "Deus lhe pague". Correspondido por um "amém".
A vida é múltipla nas estações tubo e nos ônibus. Já vi beijo roubado, ouvi discussão no celular, sorriso amarelo, sono fingido de jovens em assentos reservados a idosos e muita conversa fiada.
Sigo observando. Tem coisa que até deus duvida. De vez em quando algo me inspira.

Alguma novidade? (Diálogo surreal)

_ Novidade?
_ Tudo velho.
_ Mas, como é que pode?
_ Vida tranquila. Rotina de sempre.
_ Não mudou nada desde que nos vimos da última vez?
_ Nada!
_ Como você aguenta?
_ Faço que posso. Afinal, não faz tanto tempo assim.
_ Como não? Meia hora. Você acha pouco?
_ Muito não é, né?
_ Em meia hora, recebo mais de 200 atualizações no feicebuque. Não é possível que não tenha acontecido nada com você!
_ Tá bom! Eu não queria contar. Pareceu tão insignificante.
_ Nada é insignificante! Eu sabia. O que aconteceu?
_ Arrotei.
_ Como?
_ Arrotei.
_ E o que isso tem de novidade?
_ Fazia cinco anos que não arrotava.
_ Não acredito. Como você ficou tanto tempo sem arrotar?
_ Foi depois que fiz aquela cirurgia.
_ Me lembro.
_ Notei que não arrotava mais, mas em compensação...
_ O que?
_ Gases em abundância. Constrangedor. Uma flatulência quase fora de controle.
_ Você tá me gozando, né?
_ Imagina. Fazia meia hora que a gente não se via. Tanto tempo. Por que iria te gozar?
_ Sei lá. Pra sair dessa rotina maluca que você vive.
_ Tenho que ir. Daqui meia hora a gente se fala. Pode ser que eu tenha novidades.
_ Mesmo. Mal posso esperar. O tempo demora tanto pra passar.
_ Que barulho foi esse?
_ Acho que peidei.
_ Tchau ligeirinho.
_ Tchau papaléguas.

O ATIVISTA CORDIAL

Hoje, em uma estação tubo, havia um ativista. Um ativista cordial. Eu aguardava meu ônibus. Estava a caminho do campus Botânico da UFPR. Começo de mais um dia de trabalho. Distraído, acompanhava a repercussão do afastamento de Cunha da presidência da Câmara de Deputados e suspensão de seu mandato pelo Facebook. O ônibus chegaria em vinte minutos conforme o portal de informações da estação tubo. De repente, um conflito sereno começou a se desenvolver ao meu lado.
Conflito sereno pode parecer um oximoro, mas penso que você concordará com o uso do adjetivo nesta situação. Um sujeito alto, magro e de cabelos cacheados, perto de seus 40 anos, apesar de um pouco grisalho, entra na estação e se posta ao meu lado. Eu estava recostado em um tubo metálico que serve para dar algum conforto, pouco, na falta de bancos nas estações tubo, àqueles que aguardam a chegada de seu transporte. Não notei a chegada dele. Logo depois, vejo o cobrador da estação tubo se aproximar e dirigir-se ao sujeito recém-chegado. Um diálogo conflituoso começou:
_ Você pulou a catraca e não pagou a passagem. Isso não pode.
_ Eu sei. Respondeu o sujeito.
_ Então, volta lá e paga. Não é a primeira vez que você faz isso.
_ Eu sei. De novo, a mesma resposta.
Nisso, eu me afastei alguns centímetros, mas me conservei encostado no apoio. Temi que a coisa pudesse se tornar mais agressiva. Já passei da idade de levar um sopapo eventual ou um empurrão que sobrasse de uma possível luta entre dois homens perto de mim. Mas, o diálogo continuou sereno. Nem o cobrador, tampouco o sujeito alteraram o tom de voz. O cobrador, de baixa estatura, manteve-se firme:
_ Todo mundo que está aqui pagou a passagem. O que você está fazendo não é justo.
_ Eu não concordo com o preço da passagem.
_ Se não concorda vai à prefeitura. Aqui tem que pagar.
_ Mas, eu não concordo.
_ Você acha que sua atitude não me afeta? Eu sou responsável pelo que acontece aqui.
_ Eu sei.
_ Vou chamar a Guarda Municipal. Eles são rápidos. Você é que sabe.
Nisso, o cobrador pega o celular, digita um número e se dirige a seu lugar. Havia mais passageiros querendo entrar na estação tubo. Ao mesmo tempo, chega meu ônibus. Entro. Outros passageiros também o fazem. O sujeito que pulou a catraca também entrou. Logo depois, o cobrador entra e se aproxima do motorista que já dera o comando de fechar as portas. As portas reabrem. O cobrador diz, se dirigindo ao sujeito:
_ Você não vai. O ônibus não parte enquanto você não sair.
_ Mas eu não concordo, respondeu o sujeito.
_ Não importa. Com você aqui dentro o ônibus não sai.
Nessa altura, pensei comigo:
_ Vou chegar atrasado a meu compromisso.
Tinha agendado uma sessão de orientação com Bia, doutoranda em Administração. Mas, para minha surpresa, o sujeito se retira do ônibus dizendo:
_ Não concordo com pagar passagem para me transportar.
O motorista comanda o fechamento das portas. O sistema de som informa:
_ Portas fechando.
Eu sigo com os olhos o sujeito. Na estação tubo, ele olha para dentro do ônibus.
É um olhar triste, mas tranquilo. Em seguida, desce da estação tubo. Eu reflito com meus botões:
_ Lá se vai um ativista cordial.
Deveria se dirigir para o outro tubo no qual passa outra linha na mesma direção para onde ele pretendia ir. Não é muto longe da estação onde estávamos.
Espero que tenha tido sucesso na outra estação tubo. Será que vai topar com um cobrador tão cordial também?

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Resistir, quem há de?

Escreva algo me manda o facebook. Tão imperativo! 
Será que não poderia ser apenas sugestivo:
Já escreveu algo hoje?
Ou então, um pouco convidativo:
Que tal escrever algo?
Ou melhor ainda, informativo:
Seus amigos esperam algo escrito por você hoje.
Talvez até opinativo:
Penso que você poderia escrever algo.
Não seria de todo ruim, se fosse rogativo:
Por favor, escreva algo.
Até mesmo, ilustrativo:
Viu o hot topic do dia? O que acha?
Mas, fruto de uma grande quantidade de comandos programados, só podia ser comandativo!
O pior?
Eu que me julgo tão autônomo, obedeci. Escrevi algo!
Arre!

Amor anônimo

Ela falava ao celular. À minha frente no ônibus de Londrina para Curitiba. De novo, um parador. Ela subiu em Imbaú. Do outro lado, em Curitiba, um tal de Cleber.
_ Cleber, eu trouxe cinco frangos, disse ela. Um pra ela, um pra você. Os outros a gente come junto.
Eu ouvia só um lado da conversa. Ele deve ter perguntado quanto custou.
_ Cento e quinze. Vinte e três cada um. Imagina, eu dou um pra ela, um pra você e os outros a gente come junto.
Cleber deve ter se oferecido para pagar uma parte. Pela resposta, ela não deve ter aceitado.
De frango a conversa saltou para romance. Foi o que eu deduzi.
_ Ele me tratou muito bem. Mas, é homem do interior. Não quer saber da capital.
E continuou:
_ É um homem de bem. Só vi bondade nele. Faz comércio de bois. Fazia tudo pra me agradar.
Na serra, a ligação foi interrompida. Novo toque de celular. Era o Cleber de novo. Queria saber mais.
_ Pois é. Me pareceu um homem bom. Me levou até a rodoviária. Esperou até eu embarcar. Alguém ligou pra ele falando de cinco bois.
Cleber deve ter insistido na vinda dele. Ela falou:
_ É homem do interior. Diz que vem me visitar. Mas, quer que eu vá para lá. Não se afasta de lá. Tem que cuidar do gado.
Pelo rumo da conversa, ela e Cleber devem ser colegas de trabalho. Ela comentou:
_ Pego no serviço depois de amanhã.
A situação não deve estar boa na empresa. Depois de um tempo ouvindo Cleber, ela respondeu:
_ Se me mandarem embora já tenho rumo. De vez em quando trago uns frangos pra você. Ele me pareceu um homem bom.
E assim caminha a humanidade. Não sei o nome dela, nem dele. Mas, pelo andar da crise, acho que o romance vai dar certo. Cleber é que vai se dar bem. De vez em quando vai comer um franguinho caipira.

No consultório? No hipódromo? Onde?

Você está abatido. Ela me disse. Preocupado com alguma coisa? Fiquei com vergonha de ser sincero. Em outros momentos, já nos posicionamos em pontos opostos sobre temas delicados. Será que ela entenderia? Preferi o silêncio.
Desligado do noticiário, carrego a incerteza comigo. O que penso não vai afetar o resultado. É como um páreo no jóquei. Depois do "Foi dada a largada", minha aposta já feita, não há o que fazer. Minha torcida não tem efeito sobre o resultado. Na dúvida, só o fotochart confirmará o vencedor. Em mim, qualquer que seja o resultado, sentirei o excesso de adrenalina. Na minha mão, a pulê terá apenas um destino: caixa pagador ou lixeira.
E depois, esperar o próximo páreo. Esse vício me deixa abatido.
Me diga você: eu poderia ter sido sincero com ela? Ela não gosta de apostas arriscadas. Confia nas falsas certezas.
Eu, ao contrário, sempre buscando o azarão. Não há saúde que aguente!

Histórias de Dona Kilda

Nessa tarde quente de outono atípico em Londrina, estimulo minha mãe a falar do passado. Aos 90 anos, ela confunde muitas das histórias que me contou outrora. 
Não importa. Gradativamente seu semblante vai perdendo o ar preocupado e triste. Mesmo confusa, narrar fatos que ocorreram há mais de sete décadas parece energizá-la. Seu semblante se transforma. 
Muitas histórias do Colégio Londrinense em que fez parte da primeira turma de ginásio. Lembra do gelo que duas colegas lhe deram logo no começo. Ela veio no segundo ano, em 1940, com a mudança de meus avós, tias e tios para cá. Ela ficou ainda um tempo em Jacarezinho para concluir o primeiro ano. A turma continuava a mesma do primeiro ano. Ela era a forasteira com mais dois colegas que vieram de outras cidades. Quando Estela, uma colega de classe, começou a lhe dar atenção, Silvandira e Paulina ameaçaram Estela com futuras represálias. Depois, as três se tornariam amigas inseparáveis. Por mais de 80 anos. Agora só sobraram Kilda e Silvandira. Ainda se encontram frequentemente.
Meus avós compraram uma pensão na rua Mato Grosso, entre a Maranhão e Sergipe. Alguns anos depois, um incêndio destruiu a pensão. Uma tragédia que não ceifou vidas, mas acabou com todos os bens da família. Inclusive quase toda a roupa da família. Foi o momento em que a solidariedade de vizinhos e amigos se mostrou forte. Conseguiram dois quartos em uma residência cedida por um jovem que foi morar na casa da tia. Não cobrou nada. O colégio também deixou de cobrar as taxas mensais. Apesar da tristeza, a memória guardou momentos felizes da vida na pensão. Nesse dia não houve aulas no ginásio. Colegas e professores vieram ajudar. Depois Silvandira, já amiga, conseguiu uma casa com uma de suas tias. Londrina crescia muito, e era difícil conseguir casas.
Sorri até mesmo das histórias de traições de seu pai, meu avô, e de meu pai. Homens bonitos usaram de seu charme para escapadelas fora do matrimônio. Meu avô chegou a ter uma filha com outra mulher. Mas, nunca houve contato dela com os outros irmãos e irmãs. De repente, dispara:
_ A mulherada era fogo, mas sua avô e eu não dávamos moleza. Elas davam em cima dos homens. E com você, isto também acontece? As mulheres dão em cima de você?
Desconverso. Pergunto sobre o que fizeram após o incêndio. Ela e alguns irmãos já trabalhavam e meu avô foi gerenciar uma loteadora.
Enquanto escrevo esta narrativa, ela continua falando. Fiel ao que fez a vida toda: preservou memórias de Londrina que sempre gostou de contar. Continua contando...

Sobre a amizade

Este não é um tema fácil. Ia dizer que é difícil. Mas, também não o é. Apenas não é fácil. Sei que você me entende. O oposto de fácil não é o difícil, é o não fácil.
Hoje à noite assisti Truman. Produção argentino-espanhola, o filme traz Ricardo Darin e Javier Câmara interpretando dois amigos que a vida distanciara apenas geograficamente e que se reencontram em Madrid. 
Em determinado momento, a personagem de Darin, Julian, se dirige ao amigo Thomas, vivido por Javier:
_ Com você aprendi sobre a generosidade. E você, o que aprendeu comigo?
Thomas titubeia na resposta. É uma pergunta difícil.
Esta é a única parte do filme que revelarei nesse texto. Não quero estragar o prazer de ninguém que porventura venha assistir a esse belo filme. Drama com tons de comédia na medida certa. Em outro momento me marejou os olhos.
Mas, o filme, acima de tudo é sobre a amizade. Esta forma de afeto que nem sempre sou capaz de compreender. No entanto, ao longo de meus quase 59 anos, tive a possibilidade de vivenciá-la muitas vezes. O destino tem sido gentil comigo. Assim como é uma amiga ou amigo.
Talvez, a primeira coisa que me ajuda a entender a amizade seja a gentileza. Queremos ser sempre gentis com os amigos. Só que isto não é suficiente para entender a amizade. Somos gentis com qualquer pessoa, não só com aqueles a quem dedicamos a amizade.
A amizade é um bem querer. Um bem querer diferente daquele que sentem os enamorados. Diferente do que há entre pais e filhos. Diferente de qualquer bem querer.
É um bem querer que não exige troco. É um bem querer que se satisfaz só com o estar junto. Um estar junto que pode ser até silencioso. Não necessita de palavras para se manifestar.
A amizade é um conhecer e reconhecer-se no outro. Amigos são tão diferentes, mas algo os une. Acho que é o enxergar no diferente aquilo que nos torna mais humanos. Na amiga ou amigo vemos o que não somos, o que queremos ser e o que não queremos ser. 
Julian viu em Thomas, algo que queria ser. Talvez, jamais conseguisse.
Outro dia, um amigo me perguntou sobre outro amigo de quem me afastei há pouco mais de ano. Parecia um afastamento definitivo. Para toda vida. Me vi sem saber o que dizer. Me dei conta de que o afastamento era absurdo. Em algum momento, nossas diferenças ficaram tão gigantescas que o convívio pareceu impossível. Ledo engano!
Lembrei-me de Niemeyer, próximo dos cem anos, dizendo:
_ A vida é um minuto.
Dias depois mandei uma mensagem para o amigo afastado. Falei da brevidade da vida e da inutilidade de afastamentos definitivos. Ele concordou.
A amizade é uma coisa difícil. Complicada! Mas, é o que nos diferencia do não humano. Assim creio eu. 
Na amizade aprendemos alguma coisa. Mas, se você é minha amiga ou amigo não seja como o Julian. Não me pergunte o que eu aprendi com você. É uma pergunta difícil! Só em filme alguém pode respondê-la. Na vida real, basta sabermos que somos amigos. Esse bem querer inexplicável, mas essencial para a vida. O cronometro vai girando...

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Você não gosta de doce, não é?

A cada duas semanas, com minhas vindas para Londrina, percebo a memória de Dona Kilda se esvaindo. Esta pergunta ela me fez hoje logo após o almoço. Depois emendou:
_ Mas, se quiser, tem goiabada e queijo na geladeira.
Será que tem mesmo? Não fui ver. Fiquei pensando:
_ Qual o lado positivo da perda de memória?
Lembrei-me de um indiano, proprietário de uma pequena empresa em Manchester, que entrevistei quando fazia a pesquisa de minha tese de doutoramento. Segundo ele, cujo nome não me lembro, tudo na vida tem dois lados: positivo e negativo. Foi ele, também, que me ensinou:
_ A qualidade vem da quantidade. Quanto mais você faz de algo, melhor fica.
Na velhice, qual o lado bom da perda de memória?
Alguém já falou que passado e futuro não existem. Nós estamos fadados a viver no presente. Tão efêmero, mas inesgotável! Só acaba quando a vida se encerra.
Antes disso, na velhice, chegará o momento em que as tristezas e alegrias serão esquecidas. Aí está, a sabedoria daquele proprietário de pequena empresa indiano. Ao mesmo tempo que esquecemos as tristezas acumuladas ao longo dos anos, coisa tão boa, as alegrias também se dissipam, o que é ruim.
Espero um dia poder chegar ao tempo de viver apenas o momento. Sem passado nem futuro.
Se você estiver comigo, não deixe de me dar um doce. Qualquer um. Adoro doce!