quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sutileza gera sutileza

Dias atrás, assisti a trechos de um programa tradicional de um canal de televisão brasileiro. O tema do programa foi a expressão "gentileza gera gentileza" que deu fama ao Profeta Gentileza, batizado como José Daltrino no ano de 1917 em sua cidade natal. Assim como eu, um homem nascido em ano terminado em sete. Veio ao mundo quatro décadas antes de mim.
A bem da verdade, esta edição do programa não me atraiu muito, e acabei me distraindo com outros pensamentos e afazeres naquela noite. Lembro-me vagamente da repórter ter feito menção ao Profeta e pouco recordo das outras informações e entrevistas do programa.
De qualquer forma, a expressão deve ter ficado em minha mente e, por motivo que não me é consciente, ressurgiu hoje enquanto deitado em uma rede à beira do jardim da casa de minha irmã em São Francisco do Sul.
Depois de uma soneca, induzida pelo leve balançar da rede e pela leitura das páginas iniciais de um livro de Autran Dourado, despertei com o toque de uma brisa. Ao abrir os olhos, vi as folhas de uma planta pendurada em um pilar da varanda da casa se movendo lentamente. A brisa sutil causou um sutil balançar das folhas. Dessa visão, a minha constatação: assim como gentileza gera gentileza, sutileza gera sutileza!
Ao mesmo tempo, percebi que a rede também balançava lentamente. Impossível que a brisa sutil fosse capaz de movimentar o corpo de um homem quase obeso como eu. Atualmente, voltei aos três dígitos, pesando pouco mais de 100 quilos. Aliás, esta marca fez com que, de forma igualmente sutil, duas médicas que me acompanham com exames anuais, sugerissem a retomada das minhas caminhadas diárias. Prometi tentar. Mas, aqui me desviei do assunto.
Se a brisa, em meu entendimento, não era a responsável pelo movimento da rede, o que seria? Pensando nisso, troquei a posição de minhas pernas que formavam um quatro com a direita estendida e a esquerda dobrada, para outro quatro, estendendo a esquerda e dobrando a direita. Esta sutil troca de posição, levou a um sutil balanço da rede. Ah, a famosa inércia das aulas de física sutilmente se mostrando a mim!
Dessa lembrança, dos tempos de educação pré-universitária, me veio outra mais recente: aulas de yoga com o mestre Rodrigo Bora. Desde 2020, faço sessões de yoga com ele. Nos momentos iniciais de todas as sessões, uma instrução se repete: ficar imóvel em pé, com os olhos suavemente fechados e respiração livre. Nesse momento, Rodrigo sugere: veja como mesmo parado, o corpo se movimenta com a respiração. O peito se expande com a inspiração e se contrai com a expiração. Sutilmente!
Passei alguns minutos de olhos fechados, respirando levemente, sentindo meu corpo se movimentar, mesmo parado. E com esse movimento sutil, a rede sutilmente subia e descia. O movimento se reproduzia de forma suave. De mim para a rede. Em sintonia 
Fico aqui pensando: a sutileza pode gerar sutileza em outras esferas da vida humana, que não só a física?
Recordei de um colega, professor como eu, que dizia falar cada vez mais baixo frente a uma turma de estudantes barulhenta. Segundo ele, sutilmente, a turma silenciava. Nunca experimentei! Meu jeito de lidar com isso é me calar abruptamente. Um pouco menos sutil!
Enfim, fica aqui minha sutil sugestão. Quando desejar que alguém pense em outras possibilidades de entendimento de algo, seja sutil. Não tente ganhar no grito! Exponha sua ideia suavemente. Pode ser que sua sutileza seja como a brisa e balance sutilmente as convicções do outro. Sutileza gera sutileza. Não custa tentar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Um trivial variado

_ Agora vou comer meu peixinho.
Essa afirmação partiu de Douglas, enquanto não aceitava uma corrida no aplicativo. E completou:
_ A partir de agora não estou pegando mais corrida.
No banco de trás do carro, lhe perguntei:
_ Parando já?
_ Não. Vou pausar para o almoço. Depois eu volto. Tem um peixinho me esperando em casa.
Em seguida me explicou que já estava planejando a pausa, quando o aplicativo mostrou minha corrida. Calhou que meu destino, minha casa,  estava justo na direção da sua, no Capão da Imbuia, bairro vizinho do Cristo Rei e Jardim Botânico em Curitiba. A corrida anterior terminava, não muito longe de meu ponto de partida. Após deixar o outro passageiro em uma praça, veio em busca de uns trocos a mais. Ou seja, juntou a fome com a vontade de comer! Você que me lê que me perdoe o trocadilho!
Logo depois, indaguei sobre o movimento. Douglas disse que não dá pra reclamar. Comentou sobre os colegas que reclamam do trabalho de motorista de aplicativo. Segundo Douglas, o problema é que querem escolher corrida. Assim não dá!
Ele, por exemplo, disse que logo cedo surgiu uma corrida para Quatro Barras. Outro município na região metropolitana. Segundo Douglas, os colegas dizem que não pegam, por que não tem retorno. Isto é, corrida de volta. Para ele, no entanto, a solução é simples:
_ Fiz umas quatro ou cinco corridas por lá. Foi o suficiente para cobrir o gasto do retorno vazio.
E completou:
_ Sem falar que quase sempre surge uma corrida de volta.
Um pouco antes, comentamos sobre o calor intenso. Atípico para Curitiba. Daí a conversa rumou para o período natalino. Douglas disse que este ano o clima está diferente. Não sente um ar festivo na cidade. Fiquei sem saber o que dizer. Ele, no vácuo do meu silêncio, completou:
_ Deve ser coisa da minha cabeça.
Parece satisfeito com a vida. Comentou sobre um amigo aposentado que mora na praia. De como um dia o amigo, lhe mandou um vídeo do céu no litoral com apenas uma pequena nuvem. E, junto com o vídeo, o comentário: Parece que vai chover. Não vou trabalhar hoje. Sonho de muitos que planejam a vida na praia após a aposentadoria. Minha companheira e eu estamos nesse grupo.
Douglas foi bancário e já se aposentou. Está esperando um processo de revisão da aposentadoria, pois na época foi prejudicado. Recebe apenas um salário mínimo. É um dos que estão aguardando a decisão da justiça sobre os processos contra a Previdência chamados de "revisão de toda a vida". Disse que já avisou a mulher:
_ Se ganhar o processo, os lambaris que se cuidem. Vai viver na pescaria.
Pelo jeito gosta de um peixinho. Imagino que os acompanhamentos do peixinho variem. Como dizem: na cozinha nada como um bom trivial variado! Será que hoje, o peixinho estará acompanhado de arroz, feijão e uma boa salada de tomate com alface e cebola? Ou com fritas, arroz e um bom pirão?
Eu já havia almoçado quando chamei um carro pelo aplicativo. Comentei com minha companheira, quando disse a ela:
_ Vamos tomar um café no Paço antes de ir pra casa. Quem sabe me aparece tema para uma crônica.
Não é que surgiu! No trivial variado da conversa com Douglas, encontrei um pouco da poesia do cotidiano. Concorda comigo?
Enquanto termino essa crônica, depois de uma merecida soneca vespertina, rendo minhas homenagens à vida que, mesmo nos momentos triviais, pode inspirar um cronista.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Quando quis ser presidente do Brasil

Dias atrás, mexendo em meus guardados encontrei um recorte de jornal datado de 28/04/1991. Publicado na Folha de Londrina, no começo de meu doutoramento na Universidade de Manchester na Inglaterra, tinha o formato de uma crônica em que eu juntei duas notícias inglesas com uma ameaça do governador do Paraná à época contra as universidades que haviam iniciado uma greve.
Do outro lado do Atlântico, juntei o elogio de um juiz inglês a um estrupador que, segundo ele, ao cometer o odioso crime contra uma mulher, tivera a consideração de usar camisinha, com o comentário de uma auto denominada "old fashioned lady" publicado no Lancaster Guardian que alertava as mocas do Lancashire sobre o risco de usar minissaias, e a possibilidade do governador paranaense de mandar fechar as universidades por 90 dias como forma de resolver a greve. O título da crônica que, para minha surpresa, foi realmente publicada na Folha de Londrina foi "Estupro, mini-saia, UEL". O teor da crônica você pode conferir na fotografia que acompanha este post.
Então, este precioso registro de um texto que escrevi há mais de 32 anos existe graças ao trabalho valioso de minha mãe que se atribuiu a tarefa de manter ao longo de sua vida um "livro da vida" de cada um dos seus filhos: Christovam Junior, Kilda Maria, este que escreve este post, e Arlindo, nascidos em 1954, 1956, 1957 e 1959, respectivamente. Veja você, eu já estava com 34 anos e minha mãe continuava seu trabalho de historiadora da vida de seus filhos, além de outros registros sobre nossos ancestrais tanto do lado materno quanto paterno.
Após o falecimento de minha mãe, em 2019, eu trouxe para Curitiba todo o material que ela coletou ao longo de sua vida. Um dia ainda vou me dedicar a organizar essa reliquia histórica  e, quem sabe, construir uma narrativa em formato de livro da história dos filhos de Kilda e Christovam Gimenez.
Porém, este é um projeto para o futuro. Neste post hoje, quero relembrar um momento em que ainda criança, talvez transitando para a minha adolescência, em que tive um diálogo breve e marcante com minha mãe. Eu nunca me esqueci e ela também vezenquando rememorava este fato.
Certo dia, morando ainda na nossa casa da Rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez, vi minha mãe trabalhando com os livros da vida dos filhos. Talvez fosse um domingo, pois de segunda a sábado, ela e meu pai estavam sempre atarefados com a condução da pequena empresa familiar. Ao vê-la, me aproximei e disse:
_ Mãe, sabe que eu acho isso que você faz muito importante, viu!
Surpresa, ela se virou e perguntou:
_ Por que Fernando?
Ao que imediatamente respondi:
_ Quando eu for presidente do Brasil, o trabalho dos historiadores ficará bem fácil.
Ja rindo, ela continuou:
_ Por que?
Ao que logicamente respondi:
_ Ué! Você já está deixando tudo bem organizado para eles. Vão ter só que pegar este livro com você!
Hoje, a caminho de casa, me veio esta lembrança. Mistérios da mente humana. Foi uma memória que surgiu de forma graciosa e me fez rir sozinho no meio do caminho.
Ainda bem que, ao longo dos anos, fui criando juízo e abandonei esta ambição nas memórias da infância. Ou será que ainda dá tempo? Pros historiadores, boa parte do trabalho Dona Kilda já fez!

domingo, 26 de novembro de 2023

Rachel de Queiroz, a cronista


Dias atrás, minha companheira e eu fomos a um evento organizado pelo Plural, jornal online curitibano. No Beck's Bar, o evento era uma oportunidade de trocar livros. No convite o mote: traga um livro e troque por outro. O tão antigo escambo transformado na oportunidade de acessar um livro ainda não adquirido.
Eu, com meu recém lançado livro de crônicas - O Clarinetista na Janela - e outro livro de escritor londrinense também, aproveitei a oportunidade para trocar o segundo por um livro de Cristóvão Tezza - Beatriz e o Poeta. Deixei o meu de crônicas na esperança de que fosse o objeto de escambo por leitor ou leitora anônima. Minha companheira trocou o livro que levou por uma coletânea de crônicas de Rachel de Queiroz. Depois dos comes e bebes no Beck's Bar, retornamos para casa com os livros escolhidos.
Dias depois, no domingo passado, embarquei para Brasília onde passaria quatro dias a trabalho, em atividades vinculadas ao curso de pós-graduação em políticas públicas em que atuo na universidade. Pensando nas pouca mais de duas horas de vôo entre Curitiba e Brasília, mais algum tempo de espera no aeroporto, levei o livro de crônicas de Rachel comigo. É claro que devidamente autorizado pela proprietária do livro, minha companheira.
Depois que passei pelos controles de segurança no aeroporto, sentei-me próximo ao portão de embarque previsto para o vôo. Iniciei a leitura das cronicas de Rachel de Queiroz, de quem, em minha memória trago a lembrança de ter lido seu livro de estreia, O Quinze. Leitura que fiz ainda adolescente, provavelmente guiado por sugestão ou tarefa de algum professor ou professora de literatura durante meus estudos de ensino médio. Teria sido a professora Zita Kiel, no Colégio Londrinense, quem me aproximou de Rachel de Queiroz?
Não sei dizer! Porém, guardo uma memória afetiva dessa professora que muitos e muitas conheceram em Londrina, minha cidade natal. Foi com a professora Zita com quem aprendi a diferença entre rima rica e rima pobre. Foi ela, também que, ousadamente em uma aula matinal, sugeriu a uma turma de rapazes e moças que o mênstruo, que explicou ser a menstruação, feminina, poderia ser tema de poesia. Foi ela, ainda, que certa manhã sugeriu um tema de redação - Encontro - que, para mim, até onde minha memória me serve, foi meu primeiro escrito de ficção em que explorei os múltiplos significados que uma palavra pode assumir. Ah, professora Zita! Cinquenta anos atrás, você me guiava, talvez inconscientemente, nos caminhos da literatura que ainda hoje me atraem. E, quem diria, praticante da escrita em vários gêneros.
Não esperava, que ao desejar comentar sobre as crônicas de Rachel de Queiroz, eu trilharia por memórias da adolescência. Volto a Rachel de Queiroz. Confesso que as primeiras crônicas que li, me desagradaram. Ousadia minha criticar a escrita da primeira escritora a integrar a Academia Brasileira de Letras? Talvez não! A crônica, como estilo literário, às vezes, pode ser datada. Isto é, tratar de assuntos que com o passar dos anos, perdem o interesse. Talvez, tenha sido esse o motivo de meu desagrado com as primeiras crônicas. Ou talvez, por serem crônicas iniciais dessa grande escritora brasileira. 
A coletânea de crônicas de Rachel de Queiroz segue uma ordem cronológica. A primeira é de janeiro de 1946. A última foi publicada em fins de 1956. Pouco mais de uma década de textos. No conjunto, são, como diz o título do livro, 100 crônicas escolhidas: um alpendre, uma rede, um açúcar.
No vôo de volta, continuei as leituras. Hoje avancei um pouco mais. Cheguei aos textos do começo da década de 50. Ah, a persistência é recompensada! 
Crônicas deliciosas e inspiradoras surgiram na segunda metade da coletânea. Entre elas, Jimmy escrita na Paris de 1950, e História alegre, no Rio de Janeiro, em 1951. Memórias de 1952 e O direito de escrever do mesmo ano são crônicas impecáveis sobre a própria escrita. Também desse ano, a dolorida Cantiga de navio e a divertida Um punhado de farinha. Entre tantas crônicas que me ajudaram a refletir sobre esse gênero que me atrai, por fim, destaco O rei dos caminhos, descrição inesquecível da profissão de caminhoneiro no nordeste brasileiro dos ano 50 do século passado.
Ah. Rachel de Queiroz, a cronista! Quem diria que, 50 anos depois de ler O quinze, eu teria esta oportunidade de reencontrá-la! E aprender com você, que mesmo na crônica há espaço para a ficção e poesia.
Você que me lê, quer um exemplo? Leia a Simples história do amolador de facas e tesouras, escrita em 1956, na qual a cronista escolhe um final da história diverso do que lhe foi contado. Ao invés de uma triste tragédia, a felicidade do sonho realizado!

domingo, 12 de novembro de 2023

De onde vem a inspiração? (ou uma crônica em busca de um título)

Na manhã de domingo, o calor primaveril está mais intenso. Uma caipirinha ajuda na busca do frescor. No aplicativo de músicas, uma seleção feita para ele. Assim, informa o menu. Corre o risco, e clica sobre ela. A escolha não o desaponta. Logo depois de Elba Ramalho, entra Chico César com Estado de Poesia.
De repente, talvez inspirado pela canção, ele se põe a escrever. Apesar de poeta também, a escrita segue o rumo da prosa. Naquela manhã, já acordara com vontade de escrever. Às cinco e meia, o sol nascera e seus raios se intrometiam nas frestas das cortinas que não davam conta do tamanho da janela do quarto.
Levantou e fez o café. Na cama, a mulher ainda dormia. O cão, já idoso, saíra de sua cama e se prostara frente ao ventilador que ficara ligado desde que se deitaram. O calor noturno continuava pela manhã. Ao passar pelo cão, desligou o ventilador. A mulher estava coberta, apesar do calor. Não reclamaria. O cão lhe olhou. Parecia aborrecido. Levantou-se e o seguiu à cozinha. Um pouco de ração o acalmou.
Uma xícara de café com uma fatia de pão. O seu desjejum sempre frugal. No pão, sempre manteiga com geleia. Primeiro a manteiga, depois a geleia. Às vezes, um pedaço de fruta. Mamão ou banana. O cão sempre ganha sua parte das frutas. Na manhã de domingo ficou frustrado. Não houve frutas. Mais tarde, quando a mulher se levantasse, uma fatia de mamão estaria à mesa. O cão que esperasse. Ela sempre salva um pedaço para ele. Mais tarde, o levaria para a caminhada matinal e alívio da bexiga e intestino.
Enquanto isso, na penumbra da sala, lhe vieram à mente lembranças do pai. O pai que comia as sementes do mamão. Nunca entendeu como o pai conseguia engulir aquilo. Aliás, havia muitas coisas da vida do pai que não compreendia. Na relação entre pai e filho, havia mais silêncios do que falas. Talvez, se as conversas tivessem sido mais amiúdes, as incompreensões pudessem ter sido menos frequentes. 
Qual o quê! Com um abano de mão, tentou afastar a memória. Reminiscências de uma visão romântica que lhe inculcaram na infância e adolescência. Compreender os mais velhos é obrigação dos mais jovens. Me poupa! Ele falou sozinho na sala.
O cão, já quase surdo, virou a cabeça em sua direção. Teria ouvido? Impossível saber. Mas viu quando  pegou a guia do cão. Imediatamente levantou-se e caminhou em sua direção. Desceram para a caminhada matinal.
Nada como pegar as bostas do cão na calçada para trazer alguém de volta ao mundo real. Que importam as incompreensões? O cotidiano da vida se impõe a qualquer filosofia. Haja chuva ou  faça sol, sigamos em frente. Entre bostas de cachorro, sol primaveril e pouco vento, quem sabe nasça um haicai!

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

O epilético da Praça João Mendes

Manhã de segunda em São Paulo. Antes de meu retorno a Curitiba, previsto para o meio da tarde, caminho em direção à Praça da Liberdade. Google maps estima 30 minutos para alcançá-la. Meu ponto de partida é o hotel em que me hospedei por uma semana. Nas proximidades do Parque Augusta.
Na Praça João Mendes, uma breve parada no Sebo do Messias. Busco um livro autobiográfico de Nair de Teffé publicado em 1974. Não o encontrei. Porém, memórias do tempo vivido no Bairro da Liberdade, nesse mesmo ano, me (re)encontraram.
Aos 17 anos, morava na Pensão de Dona Genoveva e Seu Orlando. Meu último ano do que agora chamam Ensino Médio. Também complementava a educação no Anglo, me preparando para os três vestibulares que enfrentei. Bem sucedido, pude escolher o que parecia a escolha correta. Sobre isso já escrevi em outra ocasião. Talvez, mais de uma.
Hoje, a memória vem também de 1974. Muito provavelmente, em uma lanchonete que já não existe mais. Era vizinha de onde se encontra o Sebo do Messias, fundado em 1969, cinco anos antes de minha vinda para a Liberdade. Mas, ainda viva na tinta de minha lembrança, expressão que empresto de Walter Firmo, o fotógrafo. Vinda para a Liberdade! Que frase de significados múltiplos! Eu aos 17 anos! Mas, esse não é o mote da memória de hoje.
Certa noite, provavelmente retornando de alguma sessão de cinema, talvez no Cine Jóia que ficava nas proximidades, antes de retornar à pensão que ficava na rua Tamandaré, resolvi fazer um lanche. A lanchonete tinha em seu centro, um balcão em forma de u. Havia também mesas espalhadas em cada canto do salão. Me acomodei em um dos bancos ao redor do balcão.
É muito provável que tenha pedido um beirute de rosbife, sanduíche que aprendi a comer em São Paulo. Seria um pedido frequente nos tempos em que vivi na Heitor Penteado, número 1310, Edifício Octavius. Do número do apartamento já não me lembro. Foram seis meses em 1982. Quando comecei meu mestrado na USP. Ao lado do prédio, havia também uma lanchonete. Inúmeras vezes, quando voltava das aulas, parava na lanchonete para comer um beirute. De rosbife. Sempre! Depois subia para o apartamento e aguardava a chegada de meu amigo José Antonio com quem dividia o apartamento, junto com sua irmã Renata e a amiga Sônia. Ontem, por acaso, um motorista de Uber, me levando ao encontro das filhas, Fernanda e Paloma, na casa de Telma e Luis, passou justamente neste endereço.
Volto, porém, à lanchonete na Praça João Mendes. Alguns minutos depois, um homem sentou-se ao meu lado. A lanchonete não estava cheia, e o fato me incomodou um pouco. Mas, como diria naquela época, fiquei na minha!
Meu beirute chegou. Comecei a comê-lo. De repente, o cara do meu lado caiu e começou a tremer. Teve um ataque epilético. Meu coração disparou e fiquei paralisado. Sem saber o que fazer. Para minha sorte, um dos atendentes deu volta ao balcão e permaneceu algum tempo segurando o homem caído para que suas convulsões não lhe causassem qualquer ferimento. Me disse, que ficasse tranquilo. Era um freguês habitual e logo se recuperaria.
Consegui terminar de comer o beirute. Paguei a conta. E comecei o caminho de volta à pensão. Foram os mais longos 1.300 metros que caminhei! Ao longo da rua Galvão Bueno na Liberdade, meu espírito foi se tranquilizando. Naquele domingo, sozinho em meu quarto, não pude contar o ocorrido para ninguém. Conto pra você hoje. 

sábado, 30 de setembro de 2023

Cenas paulistanas

 


Na manhã de sábado, decido caminhar um pouco. Nas proximidades do hotel, o Parque Augusta é minha escolha. Em pouco minutos o alcanço, e dou início à caminhada em passos mais rápidos. Logo árvores cobertas com flores roxas atraem meu olhar. Abaixo delas, um tapete de flores caídas. O dia começa bem. Mais tarde, ao final da caminhada, pergunto a um funcionário que árvores são estas. Não sabe me informar, mas diz haver outras que começam a florescer. Amarelas. De volta ao quarto do hotel, a googlada me esclarece: jacarandás-mimosos. Mas, este é o final da caminhada. Antes, durante a caminhada, cenas no parque e fora dela me puseram a pensar. Daí, a inevitável escrita desta crônica
Logo na primeira volta, um casal trocando carinhos. A beleza do amor. Sem pudor. A mão dele em um dos seios dela. Os braços dela ao redor de seu pescoço. A vida como ela é! Talvez, inspirasse um conto ao estilo de Nelson Rodrigues. Mas, quem sou eu para tal ousadia? Apenas registro a cena no Parque Augusta.
Cinquenta metros à frente, pai e filha no parquinho. Ele, entre dois balanços, movimenta em um a menina com pequeno rabo-de-cavalo. No outro, um cãozinho de pelúcia também vai-e-vem. Cuidadoso, o pai alerta: Não ponha as mãos para fora! Se quiser parar me avisa. Alerta a menina? O cãozinho? Ambos? Ah, que cena mais linda. O amor aparece de novo. Sem pudor também.
Na segunda volta, o casal continua se acariciando. Ela lhe beija uma das orelhas. Uma das mãos dele, busca o contato da pele dela ao final da camiseta e começo da calça. No parquinho, pai, filha e cãozinho ainda no balanço.
Na terceira volta, ao passar pelo casal mais uma vez, decido contar meus passos. Técnica que criei para medir as distâncias que caminho. Na falta de placas indicadoras, sei que a cada 120 passos, caminho 100 metros. Além do casal e do trio, muitos cães com tutoras e tutores surgem em meu caminho. Também, os trinados e cantos de aves. Os mais diversos. Escondidos nas árvores, reconheço apenas o inconfundível bem-te-vi. Em um canto, três pombas ciscam. Pouco se incomodam com minha passagem perto delas. Acostumadas à presença humana. Completada a volta, em frente ao casal ainda no mesmo lugar, chego ao número 600. Exatos 600 passos, ou seja, quinhentos metros.
Após completar mais duas voltas, decido ampliar a caminhada. Pela saída da rua Caio Prado, vou em direção à Igreja da Consolação e depois sigo no caminho para a Biblioteca Mário de Andrade. Na esquina da Consolação com a Martins Fontes, entro à direita, retomando a direção da Rua Augusta e do parque. Logo depois de virar, me deparo com dois jovens homens deitados na calçada, ainda dormindo. Em posição fetal, de frente um para o outro. Cabeças em direção opostas. Nesta posição, reproduzem o símbolo do Yin-Yang. Teria sido intencional? Ou teria sido fruto dos movimentos que inevitavelmente nós humanos fazemos quando adormecidos?
Ali, na minha frente, dois moradores de rua, me lembram da dualidade universal. Imediatamente, me lembro do casal e do pai, filha e cãozinho de pelúcia no Parque Augusta. No parque, o carinho, a atenção, o afeto. Na rua, o descaso, a desatenção, o desafeto. A vida como ela é?
Sigo afetado pela imagem. Nas proximidades do Parque Augusta, decido nele reentrar. Em busca de cenas que me aliviem a alma. Passo por baixo das árvores com flores roxas. Revejo o tapete de folhas caídas. Na saída, pergunto ao trabalhador o nome da árvore frondosa e florida. Mas isto você já sabe. Agora, vou me banhar. Tirar o suor e seu cheiro de meu corpo. Na ducha, me livrarei do que posso. Porém, na memória carregarei estas cenas paulistanas.

sábado, 19 de agosto de 2023

Longa vida aos livros!

"O vídeo cassete apareceu no mundo e sumiu. Eu nunca tive um." Quem disse isso foi o cobrador de uma estação tubo em Curitiba. Não pude deixar de ouvi-lo. Ele, já idoso, conversava com outro passageiro que, como eu, aguardava a chegada do ônibus. Falava alto. Talvez, devido à idade, como muitas pessoas mais velhas, a voz mais alta seja indicador de algum problema de audição. Quando entrei, não respondeu ao meu bom dia. Mas, pode ter sido apenas desatenção,  pois já conversava com o outro passageiro.

Enfim, não importa. O que merece atenção aqui é o que ele disse sobre o vídeo cassete. A fala dele me levou ao final dos anos 80 do século passado. Lembrei-me de minha viagem a Helsinque, capital da Finlândia, em 1988. Fora para participar de um evento científico de minha área de estudos. Primeiro evento internacional da carreira que já passou de quatro décadas. Os organizadores deram de presente para cada participante um CD com músicas de Jean Sibelius, compositor clássico finlandês.

Naquele ano, eu ainda não possuía um tocador de CDs, um CD player. A tecnologia era ainda recente, do começo dos anos 80. Trouxe o CD comigo. Mas, passaram-se uns dois ou três anos antes de eu ouvir as músicas de Sibelius em um CD player. Me sentia satisfeito com o famoso "3 em 1" que tínhamos. Além de rádio, tocava os discos de vinil e as fitas cassetes. Mas, um dia, enfim, com o novo aparelho, ouvi o CD de Jean Sibelius. E, aos poucos, os CDs foram ocupando o lugar das fitas cassetes e discos de vinil.
Assim como aconteceu com o vídeo cassete, o "streaming" está fazendo o mesmo com os CDs. Sumirão do mundo um dia. Se é que já não sumiram!
Mas, eu poderei dizer: eu tive um CD player! E o cobrador também! Pois, enquanto o ônibus demorava a chegar, ele contou ao outro passageiro que sempre gostou de música. Quando os CDs chegaram, ele não demorou a se desfazer do "3 em 1".
Com a evolução tecnológica, do que será que nos despediremos no futuro? Torço apenas para que a próxima vítima não seja o livro. Embora, eu publique minhas crônicas primeiramente nesse blog, vezenquando as junto em um livro. Longa vida aos livros!

domingo, 13 de agosto de 2023

O que está em um nome?

Hoje, em algum momento da conversa com Fernanda, a filha caçula, surgiu a questão: por que Fernando Antonio?
Falávamos de Londrina. Fernanda, minha companheira e eu. Sobre o que está no centro de Londrina. Biblioteca Pública, Museu Histórico, Museu de Artes, entre outros prédios e locais. De repente, alguém mencionou a Concha Acústica. Criada no ano em que nasci. 1957. Disso, veio a lembrança. E a pergunta: por que Fernando Antonio?
Então, no meu caso, a escolha foi fruto de uma disputa. Entre pai e mãe. No meio da disputa, um recem nascido: eu. Mas, não se assuste! A disputa não foi nada séria. Não que me lembre. Afinal, era eu apenas um recém nascido de poucos dias. Assim, me contou minha mãe. Me fio na história contada por ela.
Nasci um bebê grande. Cinco quilos e meio. Quando me viam, havia os que duvidavam de ser recém nascido. Desse tamanho? Perguntavam. E duvidavam! Depois da dúvida a pergunta: como vai se chamar o menino?
A resposta, dependia de quem respondia. Para minha mãe, seria Fernando Antonio. Nome composto. Seguindo a moda da época. Para meu pai, por outro lado, seria Antonio Fernando. Também nome composto! A dispusta era entre a ariana Kilda, nascida em um 26 de março, e o virginiano, Christovam, nascido em um 30 de agosto. Seria a teimosia uma característica comum a ambos?
Confesso que até dei uma googlada nos signos para entender, tantos anos depois, se os signos de minha mãe e meu pai eram compatíveis com uma relação duradoura, amistosa ou conflituosa. Viveram um casamento de mais de 50 anos. A essa altura, a pergunta e a resposta já são irrelevantes. Ambos, já não estão entre nós.
Mas, naqueles dias da última semana de maio de 1957, lá estava eu, um geminiano nascido no dia 23, ainda sem nome definido! No meio da disputa entre a ariana e o virginiano. Como se resolveu o conflito? Você quer saber, não é? Foi minha mãe que me contou. Aliás, isso já disse no terceiro parágrafo dessa memória.
Pois então, eis que entra em casa, tia Maria, irmã de meu pai, para conhecer o novo sobrinho. Depois do susto com o tamanho da criança, a pergunta inevitável:
_ Qual vai ser o nome? Perguntou tia Maria.
_ Antonio Fernando. Respondeu meu pai.
_ Igual ao nome do prefeito? Antonio Fernandes? Retrucou minha tia.
Ao que minha mãe, com um ar de vitoriosa, disse:
_ Está vendo Christovam? Vão chamar o menino de Antonio Fernandes!
E assim, graças à minha tia, a disputa foi resolvida. Eu me tornei Fernando Antonio, nascido em Londrina, em 1957. Mesmo ano em que o prefeito Antonio Fernandes Sobrinho inaugurou a Concha Acústica de Londrina.

sábado, 5 de agosto de 2023

O amor é opaco como as janelas do banheiro. E daí?

O amor é opaco como as janelas dos banheiros. Esta foi a frase dita por uma personagem em uma série italiana que assisti em algum canal qualquer. Não me lembro qual. A fala de Vitória, esse o nome da personagem,  imediatamente me fez lembrar das janelas de vidro martelado de alguns banheiros do passado.
O que é ser opaco? Busco no dicionário uma resposta: que não reflete ou permite a passagem de luz ou claridade. Que luz ou claridade o amor não permite a passagem? O amor causa a escuridão?
O amor, porém, já abordei em outra crônica. Não desejo voltar a escrever sobre ele. Não que o amor não mereça. Apenas, já não tenho o que acrescentar ao já dito, ou melhor, já escrito.
Você, talvez, e mesmo de forma justa, me indague: por que, então, começar a crônica com uma fala da personagem sobre o amor? E mesmo, usá-la no título da crônica?
Confesso serem estas perguntas difíceis de responder. Constrangido, confesso ainda mais. Ao iniciar a crônica minha intensão era tratar, mais uma vez, do amor. E, de repente, travei! Só me vinham à mente, as ideias já apontadas na crônica mais antiga. Me repetir? Melhor não!
E agora? De que tratar nesta crônica? Falar do branco na escrita? Já devo ter tratado do tema também. Um recurso que já foi usado por muitos. Usá-lo de novo? Melhor não!
Me rendo. Já que cheguei até aqui. E você também, não é? Sobre algo preciso escrever. Vamos lá, então.
Assim como em outras vezes, uma fala ouvida em filme,  me inspirou a vontade da escrita. Pensando bem, a fala de Vitória me encantou pela beleza. Somente isso! Meu desejo, nessa crônica, acabou sendo apenas a vontade de compartilhar a beleza. Tão bela quanto a personagem que a disse no filme.
De repente, já chegando ao final da crônica, talvez, mais uma vez, você tenha outra pergunta: por que você achou esta fala bonita?
Então, para essa pergunta, tenho a resposta: eu não sei explicar a beleza, mas sei reconhecê-la quando a vejo. Mas, isto também já escrevi em outra crônica. Me repito. E paro por aqui.

sábado, 24 de junho de 2023

Sons do cotidiano


O apito do trem soa mais uma vez. Tornou-se um som do meu cotidiano. Há pouco mais de um ano. Há outros que são menos frequentes. O apito do trem me alerta muitas vezes ao dia. Também durante à noite. Às vezes de madrugada. Não incomoda. Exceto quando se sobrepõe ao som da televisão. Mas, é um incômodo pequeno. Ligeiro.
A tosse de Carlos Alberto é menos frequente. Sem-teto que mendiga as migalhas que sobram da vida mais privilegiada dos que moram no bairro. No primeiro dia de minha vivência no bairro, o vi sentado no meio-fio esperando o sinal vermelho parar o trânsito. Lhe dei uma ajuda neste dia. Aos poucos fomos nos conhecendo. Indaguei seu nome um dia. Ele tosse com frequência. Enquanto trabalho em meu escritório no apartamento, sua tosse ressoa. Não é alta. Mas, incomoda. Muito. É um incômodo subjetivo. Acho que todos são. Mas, o que surge da tosse de Carlos Alberto lá de baixo, na esquina, me aflige. Indicador objetivo de uma sociedade que falha. Carlos Alberto deve ter minha idade. Não tenho certeza. Mas, não deveria estar na situação em que se encontra. Ao ouvir a tosse de Carlos Alberto, olho à janela. Falo à minha companheira. Carlos Alberto está lá embaixo. Temos algo pra ele? Não resolve meu incômodo, mas alivia a consciência um pouco. Faço o que posso. Será?
Mas, o que me incomoda mesmo é a resposta que me dá ao meu cumprimento quase cotidiano:
_ Bom-dia Carlos Alberto, tudo bem?
A frase soa sempre a mesma:
_ Tudo bem gracas a deus, seu Fernando. Como é possível estar tudo bem para Carlos Alberto?
São dois sons cotidianos. Um mais frequente. Outro menos. Um mais dolorido. Outro quase bucólico. Porém, há outros sons. O latido dos cães. As buzinas de carros pressionadas por motoristas apressados. O alto-falante do carro do sonho. Olhaí freguesia, o carro dos sonhos está na sua rua. Vezenquando, um diálogo mais estridente sobe da rua. Será briga? Será calor afetivo? Os ônibus acelerando após a parada no ponto quase em frente aonde moro.
Eu os ouço. E penso, que vida é esta? Só sei que estou vivo. É a vida que me cerca. É a vida que faço. Que vivo. Sons do cotidiano são parte dela. Eu sigo ouvindo. De ouvidos atentos. Como agora, no Deezer, Zeca Baleiro cantando "Quase nada".
Sigo esperando o dia em que a resposta de Carlos Alberto soe verdadeira! Não apenas uma frase que soa a resignação. O dia em que ele esteja realmente bem. Em que possa entrar no mercadinho do bairro. Sem constrangimento. Como no dia em que me perguntou se poderia comprar um maço de velas pra ele.
_ Te dou o dinheiro seu Fernando.
Nesta frase, o retrato da vida. Uma frase sonoramente dolorida. Mesmo com dinheiro, Carlos Alberto não poderia fazer a compra. Que vida é essa? Quase escrevi "Que vida é essa meu deus?". Mas, esse som não pode sair de meus lábios. Talvez, eu até arrisque, para aqueles que creem, uma pergunta que soa a indignação: Que deus é esse que está na fala de Carlos Alberto? Mais um som que dói. Muito.