segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Rolando

Ele estava exausto. Dirigira por aquela estrada que subia e descia montanhas o dia todo. A cada hora, hora e meia, uma breve parada. Não mais que cinco minutos. Em algum trecho de reta um pouco mais longo. Sem acostamento, a estrada era perigosa. Embora, pouco movimentada. Vezenquando, um caminhão transportando porcos passava em direção oposta à sua.
Era uma região de granjas suínas. Vai que um viesse da outra direção. Na reta seria visto mais facilmente. Mas, entre as oito paradas na estrada apenas uma vez, passou alguém. Um jipe velho. Nada de caminhão.
Lembrou-se de um primo de seu pai. Tinha um jipe também. O primo e o pai moravam em cidades diferentes. Separadas por 60 quilômetros. Certa vez, quando criança, o pai disse para ele ir ficar com o primo e a mulher uns dias. No domingo, o pai o buscaria. Memória antiga. Foi na parte de trás do jipe. A mulher e o primo do pai nos bancos da frente. A parte de trás não tinha almofada. Em cima do motor, sentiu a bunda queimar a viagem toda. Curta, mas quente! O primo do pai ficava rindo. Troçando dele.
O pior aconteceria na casa deles. De noite. Já dormindo, sentiu alguém ao lado da cama. O quarto escuro. Sentiu uma mão no seu pinto. Subia e descia. Em silêncio. Ele paralisado. De repente, o jorro quente e úmido.
De manhã, o primo do pai e a mulher olharam para ele de forma estranha. Nunca soube qual dos dois! Desde então, durante o sono, tinha um sonho que era recorrente. Nú em uma estrada. Em busca de uma luz. Vermelha. Inalcançável.
A viagem foi entre seis da manhã e sete da noite. Um trajeto de 350 quilômetros. Estrada de barro e sinuosa. Ao chegar ao vilarejo impossível não sentir um certo alívio. 
No meio do caminho, a única parada mais longa. A nona parada do trajeto. Em ordem cronológica, foi a quinta. Meio de caminho. Um antigo posto, com um casebre ao lado. Na porta do casebre, a placa escrita informava: comida cazeira, converssa fiada e presso baixo. Tinta branca, sobre a madeira crua.
Achou graça dos erros de grafia. Mas, naquele fim de mundo quem se incomodaria com a escrita incorreta. Ele? Nem pensar. Naquela altura do dia, alem do cansaço, a fome era o maior incômodo. Cazeira ou caseira? Lhe era indiferente. Que fosse boa e barata. Tinha medo era da conversa fiada. Um temor estranho. Será que aguentaria. Pensou em não entrar. Pagou ao moleque que enchera o tanque. E arriscou:
_ A comida é boa mesmo?
_ Mãe que faz. Não há de ser, uai?
Achou graça da resposta. A fome era grande. O cansaço também. Não tinha pressa. Fez outra pergunta:
_ E a conversa?
O moleque deu de ombros e falou:
_ Cada um fala o que que!
Menino esperto. Pensou ele. Pelo tamanho e jeito, devia ter a idade dele quando foi para casa do primo do pai. Entre dez e onze anos.
De novo, essa memória. De mais de 60 anos. Por que isso agora? Se perguntou. Chacoalhou a cabeça, como se quisesse tirar ela da mente. Deixou o carro ao lado da bomba. Caminhou em direção ao casebre.
Empurrou a porta entreaberta. Casa de chão batido. Uma mesa e três cadeiras. Em uma delas, um homem. Com jeito de ser o pai do menino. A mulher na beira do fogão. À lenha. Como o que tinha na casa de sua avó.
Com um movimento de cabeça, a mulher lhe indicou uma cadeira. Logo depois, trouxe um prato feito. Arroz, feijão, bisteca de porco, chuchu e um ovo frito. Comeu de se lambuzar. Enquanto comia, o homem falava. Do tempo. Da chuva que prometia cair no fim da tarde. De como não parava ninguém por ali. Da criação de porco. Nenhuma palavra sobre o moleque.
E fazia perguntas. De onde vinha? Para onde ia? Se já conhecia a estrada? Por que sozinho? Não tinha medo?
Ele respondia com má vontade. Estranhou a última pergunta. Não soube o que dizer. Apesar do espanto,  depois que pagou, brincou:
_ A placa lá fora não mente.
A mulher riu, o homem fechou a cara. Nisso, o moleque entrou e pediu:
_ Me dá carona até o vilarejo? O senhor vai passar por lá.
Ele olhou para a mulher e o homem. Nada disseram. Como não se importassem. Constrangido pelo silêncio, não conseguiu negar. O moleque saiu. Foi em direção ao carro.
O moleque quase não falou nada a viagem toda. Nas paradas, não saía do carro. Era como se não estivesse acompanhado. O moleque respondeu três daa quatro perguntas dele. Respostas curtas.
Nome? Rolando.
Idade? Onze.
Estudava? Não.
O que ia fazer no vilarejo? Silêncio.
Chegaram pouco antes da sete. Não mais do que quinze casas. Ao redor de uma praça quadrada. Em um dos lados a igreja. Pequena. Um pouco mais afastado, o cemitério. Sem muro ou cerca.
Parou o carro na praça. O moleque desceu. Caminhou em direção à igreja. Ele chamou:
_ Rolando, sabe se tem lugar onde eu possa passar a noite?
O moleque se virou. Apontou uma das casas. Correu em direção à igreja. Ele foi na direção da casa. Bateu à porta. Uma mulher muito velha, corcunda, com um cachorro preto de olhos vermelhos, abriu a porta.
Ele pediu pouso. Perguntou o preço. No pequeno quarto, uma cama, uma cômoda e uma cadeira. Perguntou do banheiro. A velha mostrou a casinha no quintal dos fundos da casa. Mais tarde, ele perguntou se ela faria alguma coisa para ele comer. A velha esquentou um pouco de arroz com feijão. Além disso, tinha umas linguiças. Fritou uns pedaços para ele.
Depois que comeu. Foi para o quarto. Foi um sono agitado. O mesmo sonho recorrente.  Sonhava que andava nú em uma estrada. Tarde da noite. Não via ninguém. Vezenquando, enxergava uma luz. Vermelha. Caminhava em direção à luz. Esta, ao mesmo tempo, se afastava dele. De repente, sumia. Ele caía. Em um buraco profundo. Acordava com o susto. Suado. Adormecia. O sonho voltava. Foi assim a noite toda.
De manhã, acordou tarde. O sol já ia alto. Na casa da velha, ninguém. Foi para a praça. Vazia. Sem viva alma.
A porta da igrejinha aberta. Entrou. Um padre estava arrumando o altar. Perguntou de Rolando. O padre disse que não conhecia. Contou sobre a carona para o moleque do posto. Que Rolando fora para a igreja. Que este lhe indicara a casa da velha para passar a noite. Do cachorro de olhos vermelhos. Que Rolando viera do posto. Do casal e da comida no meio da estrada.
O padre ficou espantado. Se benzeu três vezes com o sinal da cruz. Perguntou em que casa ele dormira. Depois da resposta, se benzeu mais três vezes. E disse:
_ Esta é a casa de Durvalina. Está fechada há muitos anos. Depois que ela foi embora com seu cachorro. Era preto e de olhos vermelhos. O casal do posto não tem filho.
E se benzeu mais três vezes.