sábado, 10 de setembro de 2022

Duas amigas, três quartos de século

Foi ela que me contou da amiga. Não uma,  mas inúmeras vezes. Aos finais de semana. Quando a visitava. Quase que quinzenalmente. Entre 2009 e 2019. Uma década de histórias contadas. Algumas já relatei em outros momentos. Muitas vagam pelos escaninhos da minha mente. Difíceis de resgatar. Vezenquando uma salta aos meus olhos. Como se tivesse vida própria. Porém, a maioria está lá aonde minha consciência não alcança. Impotente, me rendo às desmemórias do inconsciente. Ou será ao poder implacável do esquecimento?
O que conto hoje é um amálgama de várias memórias. Minhas e das que ela me contou. Lembranças daquilo que me contou misturadas ao que imagino ter ouvido. Afinal, memórias surgem daquilo que vivemos, do que pensamos ter vivido e do que gostaríamos de ter vivido. Enfim, eis do que me lembro.
Ambas se conheceram entre 1945 e 1950. Ela já professora. A amiga, filha de um comerciante. Em Londrina. A cidade menina, de pouco mais de dez anos. As duas jovens nos seus vinte anos. A loja do pai da amiga ficava a meio caminho entre a casa onde morava com os pais e a escola onde trabalhava. Ao final da tarde, as amigas se falavam. De segunda a sexta. Aos finais de semana, ainda se encontravam em algum festejo da cidade. Quermesse, baile, sarau, teatro, até mesmo um cinema que já chegara a Londrina. Nunca muito distante de onde viviam. No centro de Londrina. Nas proximidades da catedral.
No começo dos anos 50, o distanciamento. Geográfico apenas. Ela mandou construir uma casa para os pais. Um pouco afastada do centro. O caminho da escola até a casa se tornou distinto. Já não se viam diariamente. Mas, a amizade continuou. A cada oportunidade de reencontro, a conversa era posta em dia. Casaram-se. Tiveram filhos. A amiga continuou morando no centro. Ela, após o casamento, mudou-se da casa dos pais. Não muito longe. Os anos foram se passando. Contando décadas. Anos 60. Anos 70. Anos 80. Mesmo afastadas pelos compromissos familiares e de trabalho, a amizade seguia firme. A amiga e as irmãs assumiram a loja do pai. Ela tornou-se comerciante junto com o marido. Afastou-se da vida de professora. Porém, cada encontro era celebrado com o afeto das amizades verdadeiras. A conversa era posta em dia.
Em meados dos anos 80, ela e o marido venderam a empresa e mudaram-se para o centro de Londrina. Muito próximo à Concha Acústica. Inaugurada em 1957. Ano em que nasci. A amiga e as irmãs também já tinham se desfeito da loja. Moravam, no entanto, no mesmo local. As amigas se reencontravam com maior frequência. As conversas eram postas em dia. Sempre. Recheadas de lembranças e memórias da cidade que viram crescer. Os anos foram se passando. Virando décadas. Anos 90. Anos 2000. Um novo século. Anos 10. Na última década se viram menos. O peso da idade se fazendo sentir. Uma vida mais caseira. Vezenquando a visita dos filhos. De irmãos e irmãs. Sobrinhos, netos e algumas poucas amigas.
Quase ao final da década, no começo de 2019, um novo reencontro. As duas abatidas pela senilidade, foram viver em uma casa de repouso para idosos. Os filhos acreditavam, ou queriam acreditar, que seria melhor para elas. Por acaso, em uma manhã, se reencontraram lado a lado à mesa do café. Se reconheceram. Se abraçaram. E puseram a conversa em dia. Foi assim, durante algumas semanas. Às vezes durante o café. Outras vezes no almoço ou no jantar. Era sempre um novo reencontro. A conversa era posta em dia. Afinal, havia muito o que relembrar. Três quartos de um século de amizade. Um dia, uma delas já não estava mais por lá.
Ficou essa memória que insistiu em sair de um dos meus escaninhos da mente. A mim, só me cabia contá-la. Não é mesmo?