segunda-feira, 23 de julho de 2018

Três partidas e uma chegada

Esse texto levou pouco mais de oito meses para tomar a forma escrita. Em 15 de novembro do ano passado, meu irmão Christovam Gimenez Júnior faleceu. Onze dias antes de completar 63 anos. Vitimado por um câncer de fígado resistiu por cerca de um mês.
Fui o terceiro filho em uma família de quatro. Christovam era o primogênito. Kilda nasceu dezoito meses depois. Eu viria no ano seguinte. Por fim, Arlindo que nasceu pouco mais de dois anos depois de mim. Em alguns momentos de minha vida, considerava minha posição na ordem cronológica dos filhos como peculiar. Sempre tive uma natureza mais reservada, e creio que essa posição me permitia exercer a prática da solidão com muita frequência. Me sentia posto de lado, algumas vezes. Afinal, havia o primogênito, a primeira filha e o caçula. O terceiro filho não era uma posição relevante. Mas, não pense que isto me incomodava. Ao contrário, não ser percebido ou notado me permitia observar questões familiares em silêncio. Acho que ser o terceiro filho me tornou um bom observador.
Assim, nesse texto quero registrar quatro momentos de minha relação com Christovam que foram, em minha opinião, fundamentais na construção do homem que vim a ser, embora ainda em constante transformação. Na vida somos como um rio que passa. Aparentemente, o mesmo. Mas, sempre em fluxo. Se transformando.
Me lembro, em primeiro lugar, de uma situação em que eu saía da infância para a adolescência e Christovam se aproximava dos primeiros anos de juventude. Certa madrugada, eu o vi arrumando uma pequena mochila com algumas peças de roupa para fugir de casa. É a primeira partida do título.
Os três irmãos dividiam o mesmo quarto com três camas. A de Christovam próxima à janela. A minha encostada na parede oposta. A de Arlindo ficava no meio do quarto. Kilda tinha um quarto só dela. Naquela madrugada, eu poderia ter impedido a partida dele. Por que não o fiz? Já naquela época, eu começava a desenvolver minha crença no pleno exercício da autonomia e liberdade de escolha que devemos ter. Quis respeitar a escolha de meu irmão mais velho. Não interferi em sua primeira partida. De manhã, acordei e fui para o colégio sem dizer nada para ninguém. No meio da manhã, foram me avisar em sala para eu ir pra casa, pois havia uma questão familiar em que precisariam de mim. Eu já sabia o que era. Viajei com minha mãe para ir em busca do Christovam que já tinha sido localizado em outra cidade.
Muitos anos depois, todos casados, Christovam já era pai de Netto e trabalhava com meus pais no pequeno supermercado da família. Assim como eu e Arlindo. Como em toda empresa familiar, havia muitos conflitos. Um dia Christovam e Dirlene, sua mulher e mãe de Netto, decidiram mudar para algum lugar do Mato Grosso e tentar a vida lá. De noite, na rodoviária, quando fomos nos despedir, tive uma forte crise de choro. Não me conformava com a ideia dessa segunda partida. Meu choro era tão compulsivo que foi necessário que tia Amélia se afastasse comigo da estação rodoviária. Por que chorei tanto? Deve haver muitas explicações, mas a que me serve é a ideia de que naquele momento eu me vi em conflito. Como conciliar meu respeito pela liberdade de escolha com o sentimento de que precisava proteger pessoas queridas de uma aventura que para mim seria muito cheia de sofrimento? Não foi fácil lidar com esta segunda partida de meu irmão!
Anos antes, quando eu estava cursando engenharia em São José dos Campos, cheguei de volta a Londrina para alguns dias de feriados. Trouxe dois amigos: Joubert e Élcio. Certa noite, Christovam levou a nós três para passear de carro com outro amigo. Depois de algumas voltas pelas ruas centrais de Londrina, ele e o amigo convidaram uma prostituta a se juntar a nós. Fomos a um drivein. A ideia era que a mulher fizesse um boquete em cada um de nós. Joubert e eu recusamos a ideia. Os outros três se deleitaram com os serviços prestados. Naquela época, eu tinha uma visão altamente romântica do sexo. Tinha que ser feito com amor! Essa situação marcou a chegada do título desse texto. A chegada do terceiro filho que queria se mostrar muito diferente do primogênito. E, ainda, livre para suas escolhas. Creio que foi um momento de afirmação. De autonomia.
Por fim, alcanço neste texto a terceira partida. Era o feriado de 15 de novembro. Eu estava levando Sara até Maringá de carro. Saíramos de Curitiba naquele dia. Depois de descansar um pouco em Maringá, eu iria para Londrina. Visitar meu irmão que estava doente. Ao estacionar em frente ao prédio onde mora a mãe de Sara, fui pegar a mala de Sara para subirmos. Sara então me disse:
_ Não precisa Fernando.
Eu, a princípio não entendi. Insisti. Sara completou:
_ Eu vou com você. Não vou ficar. Sua tia Amélia informou no Facebook que seu irmão faleceu meia hora atrás.
Depois que descansamos um pouco, embarcamos para Londrina. Lá chegando, depois de passar na casa de minha mãe, fui em direção ao órgão funerário da prefeitura. Lá encontrei Netto. Junto com ele, fui fazer o reconhecimento do corpo de meu irmão. Uma formalidade legal que alguém da família deveria cumprir. Algumas decisões tinham que ser feitas. Escolhas novamente. Nesta terceira e última partida, eu não tive escolha. Tive que decidir pelo meu irmão. Ele já não podia escolher! Fiz o que pensei que deveria ser feito. Um momento nada fácil para o terceiro filho.
Foi assim. Em quase 60 anos, a vida me distanciou e me aproximou de Christovam inúmeras vezes. Contudo, foram estas três partidas e uma chegada que marcaram mais profundamente a jornada do terceiro filho. Uma posição peculiar!

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