sábado, 2 de dezembro de 2017

O pelicano e a moça de vestido branco

Ela parecia uma noiva. Mulata. Usava um vestido todo branco. Curto.
Olhava as aves aquáticas no Passeio Público. Entre elas, um pelicano. Meio rosado. Será que todos os pelicano são dessa cor?
Aos poucos, entediada, ela caminha em direção ao portal da saída.
O pelicano não se vira. Continua virado para o interior do parque. Mas, contorce o pescoço. A cabeça vem toda para trás. Em direção ao solo. Parece querer enxergar por baixo do vestido da mulata.
Pelicano safado!
Ela? Tomou o rumo da catedral. Iria atrás do noivo?
Fui atrás. Entrou na catedral. Eu também. Fez o sinal da cruz. Eu não.  Ajoelhou-se. Me sentei. Contorceu o pescoço. Sua cabeça caiu em direção ao piso. O pescoço longo como o do pelicano. Ao seu redor, velas acesas surgiram. Do Passeio Público, ressoou o grasnado do pelicano.

domingo, 24 de setembro de 2017

Sonolência

A leitura e o balanço do ônibus me fazem sonolento. Ao escrever a última palavra da frase anterior me dou conta de que ela contém duas outras: "sono" e "lento". Estou com sono, me sinto lento. Sonolento.
Não sou linguista. Embora já tenha sido casado com uma estudiosa da linguística, não vou entrar nesta seara. Me faltam a necessária competência e a devida apetência. Só registro a descoberta puramente pessoal. Sem nenhuma possibilidade de teorização.
No fim da tarde, naqueles minutos em que não é noite ainda, mas essa chega lentamente, e a luz do sol se transforma em lusco-fusco, para espantar o sono que me deixa lento - ou seria para vencer a lentidão que me induz  ao sono? - escrevo.
Ufa! Tinha que, de algum modo encerrar a sentença anterior. Tão longa! Vezenquando me empolgo e vou abrindo parênteses na escrita (será que devo usar os símbolos como faço agora? ).
Mas, voltando ao propósito do  parágrafo anterior: se não o fizesse, talvez você, meu eventual leitor, ou ainda eventual leitora - essa política de gênero torna a escrita ardilosa, não é? - possa começar a se sentir sonolento ou sonolenta (de novo o cuidado com o gênero). E mais um parêntese. Isso não acaba nunca!
Ei, você aí. Acorda! Se você parar de ler, eu tenho que interromper a escrita. Assim, eu durmo!
Zzzzzzzzzzzzzzz.

domingo, 27 de agosto de 2017

Chegando ou voltando?

Mais uma viagem. No hotel as perguntas de sempre na ficha da recepção. Turismo ou trabalho? Nenhuma das opções. Me lembro do filme "viajo porque preciso, volto porque te amo". Deveriam por estas  opções na ficha: precisão ou amor.
Me lembrei do verso do poeta: navegar é preciso, viver não é preciso. Será uma precisão no sentido de exatidão? Ou de premência, urgência? Tenho amigas que pensam que o poeta disse que é exato. Navegar é exato,viver não é exato. Seria tão chato se fosse verdade! Exato demais!
Prefiro a minha precisão. Nada exata. Só me leva. Faz tanto sentido.
Navegar é preciso. Viver é dor no siso.
Navegar é desejo. Viver é bocejo.
Navegar é ardência. Viver é só permanência.
Navegar é anseio. Viver é cheio de freio.
Navegar é tentação. Viver é negação.
Navegar é fruição. Viver é decepção.
Navegar é voar com eros. Viver é cair no colo de tanatos.
Chegando ou voltando? Sabe que nem eu sei! Nesta altura da vida acho que não há lugar onde não tenha estado. Mesmo que imaginado.  Assim, é sempre uma espécie de volta. Em cada lugar um "volto porque te amo". Mesmo que não saiba quem. Em cada destino um "viajo porque preciso". Mesmo que não saiba por quê. Afinal, navegar é preciso.


terça-feira, 11 de julho de 2017

Para um leitor desconhecido

Termino de ler O melhor de Caio Fernando Abreu contos e crônicas. No ônibus. Quase perco meu ponto de descida. Felizmente, alguém fora do ônibus acenou e ele parou. Levanto. As portas de descida também se abrem. Devem funcionar automaticamente. Ou então, foi gentileza do motorista que me percebeu. Levantei e me pus frente à porta. Pensei em acionar o botão de parada. A porta se abriu antes de fazê-lo.
Me distraíra pensando que deveria deixar esse livro na estação Central. Nela há um espaço onde livros podem ser deixados e pegos. Por qualquer um. Livros não foram feitos para ficar guardados. Em estantes. Em qualquer lugar. Eles precisam circular. Como um tesouro a ser compartilhado. Porque se você pensar bem, nada vale um tesouro guardado! Vai acumulando sujeira. Pó. Melhor que caia nas mãos de um leitor. Ou leitora. Desconhecida. Desconhecido.
Talvez aquela adolescente que volta pra casa depois das aulas no Colégio Estadual. Poucas amigas. Sempre distraída. Sentada perto das janelas. Fora da sala, o jardim. A avenida. O constante ir e vir de ônibus e carros. Se sente prisioneira. O professor chama a atenção. Maria Cláudia! De novo olhando pra fora. Depois vai mal na prova e não sabe porquê. Escreve poesia. Acho que vai gostar da crônica Carlos chega ao céu.
Ou será aquele senhor que vai ao Passeio Público. Dia sim. dia não. Vezenquando (empresto uma palavra que aprendi com Caio Fernando Abreu) para em um bar na Presidente Faria. Toma uma cerveja. Come torresmo. No fim do dia. Observa as pessoas andando apressadas. Voltam para casa depois de um dia de trabalho no centro. Aposentado. Não aguenta ficar em casa. Quarenta anos trabalhando como porteiro. Ficou sabendo que o prédio onde trabalhava passaria a ter portaria eletrônica. Não quis ser demitido. Uma humilhação. Segundo ele. Se aposentou. A mulher fica em casa. Para ele, recomendo o conto O coração de Alzira.
Pode ser, ainda, aquele bancário. Carrega o título de gerente de contas. Mas, não se ilude. Hoje em dia, quase todo bancário é gerente de contas. Pelo menos os que sobraram. Que ficaram no emprego. Muitos foram demitidos. A culpa dizem, é do avanço tecnológico. Não sei não! Tenho minhas dúvidas. Todo dia tem uma meta a atingir. Seguro de vida. Crédito consignado. Fundo de investimento. Tantas siglas na sua jornada. CDB. SELIC. RDB. BTN. PQP. Opa, esta não! Para ele, recomendo Os sapatinhos vermelhos. Está precisando de um pouco de graça e sacanagem na vida.
Ou pode ser aquela senhora que volta da feira. Carrinho transbordando. Por cima, uma caixa de caquis. Vermelhinhos. Devem estar muito doces. Ela ocupa o lugar destinado aos portadores de necessidades especiais. Sentada. Carrinho a seu lado. Volta da Praça Dezenove de Dezembro. Às segundas há uma feira com preços subsidiados. Nesses tempos bicudos, qualquer economiazinha ajuda. Vai gostar de ler As corujas. Tenho certeza que depois vai ler de novo. Para os filhos. Uma menina e um menino. Assim que chegarem em casa. Mas, não vai ser fácil. Eles só querem ficar mexendo no celular.
Mas, eu tenho uma preferência. Não dos contos e crônicas do livro. Todos me afetaram. Me fizeram sorrir. Me entristeceram.  Ou me iluminaram. Minha preferência é por uma leitora ou leitor. Alguém que tenha acabado de sair de uma sessão de clarividência. Você já percebeu como há uma oferta muito grande desse tipo de serviço em Curitiba. Eu, que ando muito pela cidade, vejo sempre pequenos cartazes em muros e postes. Uma infinidade deles. Tantos nomes. Rita Paula. Dona Joana. Pai Tomás. Cacique Pedro. E por aí vai. Acho que é mais uma evidência dos tempos bicudos que vivemos. São diversos os problemas que podem ser resolvidos. Amor. Trabalho. Mal olhado. Inveja. Doença. O que mais gosto é uma unanimidade. Nos cartazes. Trago ele ou ela de volta. Pagamento só após o retorno. Ah! O amor! Esta coisa indispensável na nossa vida. Quando falta apelamos pra tudo.
Pois é. eu queria que esse livro fosse colhido por alguém que tivesse ouvido algo assim: Tenha fé e paciência. A vida vai melhorar. A qualquer momento algo vai se transformar. Você vai ser feliz de novo.
Que o livro de Caio Fernando Abreu seja este momento!


domingo, 2 de julho de 2017

O filho que virou sobrinho

Desciam pelo elevador. Iam em busca do sol na fresca manhã de inverno. No quinto andar, uma vizinha se juntou a eles. Depois do cumprimento, ela perguntou:
_ Você o conhece?
_ Claro que sim, disse a vizinha.
_ Meu sobrinho.
A vizinha olhou para ela. Entre surpresa  e espantada, ia dizer algo. Não teve tempo. Ela completou:
_ É mais que um filho!
Ele gargalhou. O elevador parou. A porta se abriu. Todos desceram. A vizinha foi conversar com o porteiro. Eles foram em direção à praça.
O sol das dez aquecia na medida certa.  Escolheram um banco. Como sempre fazia, ela comentou:
_ Vamos ver se aparece algum conhecido.
Mas,  a cidade crescera tanto. Muita gente desconhecida. Nenhum conhecido apareceu. Além disso, seus contemporâneos, pioneiros da cidade, já não estavam mais vivos. Eram lembrados no monumento aos pioneiros a poucos metros de onde sentaram. Ela era uma das últimas. Com 91 anos, estava na cidade há 77. A cidade é apenas seis anos mais velha do que isso.
Nessa idade, a memória começava a lhe falar. O filho vinha a cada três semanas. Ficava três dias. Percebia a deterioração rápida da memória dela. Ficou sem saber se a gargalhada fora genuinamente um reflexo de ouvir algo engraçado. Ou teria sido uma reação nervosa fora de controle? Ainda não tem a resposta.
À noite, após um leve jantar, percebeu que ela o tratava como se fosse uma visita. Quando disse que iria embora no dia seguinte, ela respondeu:
_ Vem mais vezes. Traz a família.
Ele respondeu:
_ Sou seu filho.
Surpresa, ela perguntou desde quando ele sabia disso. Se a família dele também sabia. Perguntou quando nasceu. Disse que ia tomar nota. Para verificar depois. Lamentou que ninguém aparecera para vê-lo.
Na manhã seguinte, ela continuou sem reconhecer o filho. Depois do almoço, ele se despediu:
_ Tchau mãe. Estou indo.
Ela repetiu, estranhando, como se fosse a primeira vez que tivesse ouvido:
_ Tchau mãe. O tom de voz era de alguém que não sabia bem o que dizer. Entre incrédula e nervosa.
A caminho da rodoviária,  andando pelas ruas quase desertas, foi pensando que não sabia como se sentia. Ainda não sabe. O que sabia  é que um dia isto poderia acontecer. Foi dessa vez.
Tenta se consolar pensando que a memória dela é tão volátil. Não deve sofrer muito. Esquece tudo tão rapidamente. Provavelmente já se esqueceu da visita do sobrinho que lhe disse que é seu filho. Carrega consigo uma certa ansiedade: quem será na próxima visita? Filho, sobrinho, ou um desconhecido?

domingo, 18 de junho de 2017

O farmacêutico sincero

Alguns colegas já haviam notado. Os fregueses começavam a reclamar. Mas, para ele não havia nada demais. Sempre fora assim. Se perguntava:
_ Nunca haviam percebido? 
Já trabalhava naquela rede há quase oito anos. Era uma farmácia de bairro. O mais distante do centro. Muitos clientes antigos. Quase toda semana iam comprar algum remédio. Gostavam de lhe pedir orientação sobre os medicamentos. O posto de saúde vivia lotado. Ele bem que podia ajudar. Era o que eles pensavam. Mas, de vez em quando a sinceridade dele os deixava boquiabertos.
Ele não gostava muito quando alguma frequesa chegava e falava:
_ Ando com umas tonturas ultimamente. O que pode ser?
_ Não sou médico, ele respondia. Por que a senhora não vai no posto de saúde?
A última vez fora com Seu Gervásio. Ficara viúvo há menos de um ano. Com mais de 70, enquanto a mulher vivera, a rédea fora curta. Mais de cinquenta anos juntos. Leopoldina, esse era seu nome, não dava moleza para o marido. Ciumenta. Era cinco anos mais velha que ele. Sexo era coisa do passado! Para ela. Gervásio pensava que ainda dava no coro. Queria se aventurar. Alguns amigos chamavam para ir ao Passeio Público. Mas, os dois aposentados, Leopoldina não deixava ele ir para lugar nenhum sozinho. Quando ela morreu, ele chorou. Mas, por dentro, sentia um certo alívio. Livre enfim.
Estava decidido a ir atrás das moças no Passeio Público. Um dos amigos tinha lhe recomendado que tomasse sildenafila. Ele estranhou o nome. O amigo explicou;
_ É o genérico de viagra. Nunca ouviu falar?
_ Já. Mas, nunca usei. Você sabe como a Leopoldina era. Não me dava folga. e, com ela, já não rolava nada.
_ Então, vai na farmácia e pede. Disse o amigo. Pergunta pro farmacêutico que dosagem ele recomenda. Na sua idade, acho que tem que ser pelo menos 50 miligramas.
_ Não precisa receita?
_ Não. Respondeu o amigo e se despediu. Tinha que ir na padaria.
Gervásio se empolgou com a notícia. Foi atrás do farmacêutico. Meio envergonhado, esperou a farmácia ficar vazia. Tinha uma vizinha lá dentro. Esperou ela sair. Chegou junto ao balcão e falou:
_ Tenho uma dúvida sobre um remédio. Não sei se posso usar. Uma tal de sil alguma coisa. Esqueci o nome. 
_ Para que serve? Perguntou o farmacêutico.
Gervásio ficou encabulado. Até meio corado. Deu um sorriso, meio sem jeito, e disse:
_ È para levantar o falecido. E fez um gesto com o braço de baixo para cima.
O farmacêutico deu uma gargalhada. Disse:
_ Seu Gervásio, no seu caso nem Jesus salva. Vai jogar dinheiro fora.
Gervásio insistiu:
_ Um amigo disse que é muito bom. Que funciona.
Mas, o farmacêutico estava mal humorado naquele dia. Arrematou:
_ No estoque só tem de 25 miligramas. Pro senhor tem que ser no mínimo 100. E, olhe lá. Não garanto que vá resolver.
Gervásio saiu puto da vida. Devia ter sido praga da Leopoldina. Nem morta, a desgraçada lhe dava sossego. O pior é que no bairro só tinha aquela farmácia. Mas, não desisitiu. Partiu em direção ao ponto de ônibus e disse para si mesmo:
_ Lá no centro tem um monte de farmácia. Em alguma deve ter o que preciso. É hoje! 

sábado, 3 de junho de 2017

A mesmice no diverso

Diversidade. Gente de todas as formas. Meu olhar não consegue encontrar nada extraordinário. O comum impera. Não era o que esperava. Afinal é um festival de blues e jazz.
O comum é feio. O menos comum também. O mais comum? Pior ainda.
Serão meus olhos? Teria ficado mais míope? A beleza está me chegando fora de foco?
Faz tempo que não consulto meu oftalmologista? Espero que não seja nada grave. Mas o comum é assustador.
Mudando de assunto. Mas, continuando no diverso. De pato pra ganso. A vida é muito longa para essa mesmice. Sete dias em uma semana. Cinquenta e duas semanas no ano. Às vezes cinquenta e três. Já  se foram umas três mil e vinte sete semanas. E, se você pensar bem, uns 90 por cento delas foram muito iguais. Só dez por cento de diferença. Haja tédio.
E todo esse tédio, por que? Porque alguém botou na cabeça que precisamos das instituições para viver em sociedade. E, já que as instituições precisam de repetição e constância para serem dignas desse título, haja mesmice.
E segue a vida. Se repetindo. Ainda bem que de vez em quando o diverso aparece. Salve o diverso! Vida longa. E que não vire mais uma instituição.
E, pensando bem, até eu me repito. Se você refletir o suficiente, vai enxergar nesse post, a minha mesmice: caminho. Qual? Para onde? Por que?

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Galeria de Horrores

A reunião começara há dez minutos. De repente, ele se deu conta da fileira oposta. Bem à sua frente. Pareciam um bando de aves de rapina. Narizes aduncos. O inverno, no seus primeiros dias, já exigia capotes e blusas mais pesadas. Eram como plumagens. Cores variadas. Uma galeria de horrores.
Lembou-se do último domingo. Uma tarde no Passeio Público. Fora sozinho.  Gostava de observar o espaço maior. Uma enorme gaiola. Dedicada às grandes aves. As grades tinham quinze ou vinte metros de altura. Sem cobertura.
Sempre se indagara por que as aves ficavam naquele espaço. Devia ser por causa da comida fácil. No espaço urbano é difícil para aves de rapina encontrarem o que comer. Ali, todo dia, os tratadores não falhavam.  Distribuição farta. De vez em quando, até pequenos roedores vivos eram soltos. Uma agitação entre as aves. As mais ágeis faziam a festa.
Ao contrário das aves de rapina na reunião, eram até bonitas. Mais que isso. Tinham uma elegância que faltava às outras.
De repente uma ideia. Precisava alimentar as aves da galeria de horrores. Elas já estavam agitadas. Falou sobre maior liberdade para aprender. Foi um alvoroço. Todas voaram para cima da presa. Ficou destroçada.
Mas, manteve um sorriso estranho na face. Lembrou da elegância das aves do Passeio Público. Voltaria lá no próximo domingo.

sábado, 27 de maio de 2017

Mola do mundo

Dizia à amiga. Ele me pergunta se ainda sinto algo pelo outro. Digo que não. Não quero magoar ele. Mas,você sabe né? Quando vejo ele. Minha perna amolece. Tudo amolece. Quando me dou conta, acordo na cama dele. É um vício. Mas também é o único.
A amiga só escutava. Não falava nada. Percebeu que eu ouvia. Piscou para mim. A outra não percebeu. Devo ter ficado com o rosto vermelho. Afogueado. Não pude evitar. Ouvi a conversa no ônibus. Elas estavam na minha frente. Os três em pé. Carro lotado. De frente para elas, era como participasse da conversa. Era mais um monólogo.
Ela continuou.  Perguntou a opinião da amiga. Mas, antes da outra responder falou do corno. É um fofo. Tadinho! Não queria fazer isso com ele. Não aguento. Quando vejo já abri as pernas
Vadia. Foi a única palavra que saiu da boca da amiga. Seguida de duas gargalhadas. Eu ri também. Fazer o quê?
Sexo, a mola do mundo. Foi o pensamento que me ocorreu. Não importa como. Nem onde. Ou com quem.
Minha solidariedade de macho, de repente, me fez entrar na conversa. Tenho certeza que o fofo também dá umas por fora. Falei em voz alta. Ela me olhou. Ficou de boca aberta. Incapaz de qualquer som. A amiga deu mais uma gargalhada.
Desci do ônibus que acabara de chegar a meu tubo. Dei uma gargalhada. Guardei na memória aqueles olhos arregalados e a boca aberta. Foi quase tão bom quanto sexo. A mola do mundo.

sábado, 13 de maio de 2017

Dia das Mães

Ela virou uma biscate. Todo fim de tarde ia encher a cara no bar da esquina. Caçando macho. Arrumou um velho. Quando encontrava ele, não dormia em casa. Ia se esfregar com ele. Passava em casa de manhã. Toda amassada e descabelada. Tomava banho. Ia pro trabalho de cara limpa. Biscate.
Eu? Tinha que cuidar da filha. Nem sou o pai. Quer dizer, acho que não. Biscate, Quem vai saber de quem é a menina. Três anos. Coitadinha. Perguntava da mãe. Que que eu podia dizer? Falava que estava trabalhando. Biscate. Quando saía do emprego, pintava a cara e passava aquele batom vermelho. Vermelho puta. 
Quase nunca via a menina acordada. Antes de sair, dizia que amava a gente. Pedia pra eu cuidar dela. Mas, de que jeito? Nem dinheiro ela me dava mais. Gastava tudo em pinga. Eu fazia uns bicos pra poder dar o que comer pra menina. De vez em quando ficava na porta da igreja com ela. Pedia. Pedir é melhor que roubar, não é doutor? Ela tinha vergonha. A menina. A biscate nem sabia. Acho que me matava se soubessse. Mas, como que eu ia fazer? Ela não dava mais dinheiro pra mim. Ainda tinha coragem de me pedir pra cuidar da menina. Biscate.
Outro dia chegou bêbada. Uma hora da manhã. Não achou macho que a quisesse. Veio se esfregando em mim. No começo eu resisti. Mas, a carne  é fraca, doutor. Tava a perigo. De madrugada, acordei do lado da biscate. Peladinha. Dei mais uma. Ela parecia morta. Fria. Fedia a cachaça. Meu sangue ferveu. Enchi ela de porrada. Achei qeu ela fingia. Devia tar sonhando com o velho dela. Mas, ela já estava morta. Biscate.
Agora tenho que me virar pra cuidar da menina. Três anos. Coitadinha. Perguntava da mãe. Eu dizia que estava no trabalho. Biscate.
E agora?
No dia das mães vai ter festinha na escola. A biscate não vai. Tá morta. Não podia esperar passar esse dia. Não.  A biscate tinha que morrer antes. Agora tô aqui preso. Mas, o doutor acredita em mim, não? O que vou dizer pra menina? Coitadinha. Que vai ser dela?
Biscate.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Caminhos

Caminho em direção ao cinema. É sábado. Manhã. Quase no destino, uma parada em um sebo. Busco livros de bolso para minha coleção. Encontro um de Afonso Romano de Sant'Anna. Como andar no labirinto. Coletânea de crônicas.
Morador de Curitiba há quatorze anos, nessa caminhada matinal encontro dois conhecidos. Não é usual. Em geral, quando flano pelo centro da cidade, raramente reconheço algum rosto. Breve troca de palavras. Em seguida, cada um segue seu rumo.
Enquanto espero o horário da sessão, um café acompanhado das primeiras crônicas. Na contracapa aprendo que Sant'Anna nasceu em 1937. Me antecedeu em duas décadas. Fernanda, minha segunda filha, é de 1987. Ontem tomamos um café juntos no meio da tarde. Em 2017, ela chegará aos 30. Eu aos 60. Fazemos parte dos nascidos em anos terminados em 7. Ela terá vívido metade de minha vida.
Andamos no labirinto. Às vezes juntos. Na maior parte do tempo, separados. Cada um faz seu caminho nessa linda metáfora de Sant'Anna. Mais vivido, eu já encontrei muitas paredes. Voltei parte de caminhos já trilhados. Explorei outros desconhecidos. Ela deve ter encontrado suas paredes também. Soube retornar. Tomar outras direções. De vez em quando, nos encontramos no mesmo beco. Caminhamos um pouco juntos. Mas, sabemos que os labirintos são distintos. Se tocam. Se cruzam. Se afastam.
O importante? Acho que é não desistir das andanças. Cada um segue em seu labirinto. Quando é preciso, fazemos eles se cruzarem. Ontem foi o caso. Ela me chamou para um café. Eu estava precisando. Ver a filha caçula. Seu sorriso. O rosto afogueado pela caminhada. Das Mercês ao MON. Chegou acompanhada do amigo farmacêutico. Os dois apaixonados pelo flamenco. Mas, impossível viver dele nesse país. É um dos becos do labirinto. Mas, um beco muito frequentado. Todos nós temos nossos becos muito frequentados. Teimamos em voltar a eles. Com a esperança de um dia encontrar um vão, mesmo que pequeno, em uma das paredes.
Caminho de volta. Entro em uma estação-tubo. Sol das 13 horas na Praça Tiradentes me convence de que a caminhada não será fácil. Nunca é. Mas, não preciso torná-la mais difícil. Depois do filme, mais um nascido em 1937 cruza meu caminho. Um desconhecido. Me pergunta quando será o carnaval em 2017. Ao ouvir minha resposta, indaga da minha certeza. Respondo que, como professor, preciso saber. Quer saber o que ensino. Me pergunta quantos anos falta para o terceiro milênio. 983. É minha resposta. Se impressiona com meu cálculo rápido. Digo que não chegaremos lá para ver como será. Concorda comigo. Me diz que dia 17 fará oitenta anos. Mais um de ano terminado em 7. Assim como Sant'Anna penso eu.  Nossos labirintos se tocam nesse rápido encontro. Chega o ônibus. Embarcamos. Desço no próximo tubo. Ele segue em seu labirinto. Eu no meu. Quem sabe quando se cruzarão novamente?