sábado, 23 de julho de 2022

Três garrafas de uísque

E não é que no final deu tudo certo! Mas, antes de chegar ao fim, muita coisa aconteceu. Houve momentos em que Maria Eugênia chegou a cogitar que estava na hora de desistir. Porém, no mesmo instante, surgia a dúvida: desistir e fazer o quê? Face ao questionamento, a resposta de sempre. Continuar tentando. Uma hora dá certo. E não é  que no final deu certo!
O começo foi até singelo. Quase romântico. Não fosse pelo acidente. Ela pensando na vida. Ouvindo a playlist do dia sugerida pelo aplicativo. Passando roupa. Otavinho chegou por trás. A abraçou e deu um cheiro no cangote. Arrepiou tudo! Os mamilos se eriçaram. Virou com o ferro na mão. O abraçou também. O ferro quente nas costas dele. Sem camisa. Urrou e saltou para trás. Enroscada, presa a ele pelo fio do ferro de passar roupa, Maria Eugênia foi ao chão com ele. O ferro embaixo dele.  Queimando.
Queimadura de terceiro grau. Na ambulância, Maria Eugênia rezava, na esperança de que não fosse grave. Três semanas depois, Otavinho recebeu alta. No momento da alta, mo meio da manhã, ela estava no trabalho. Cozinheira em casa de madame. Ele, sozinho, chamou um amigo, Juca. Perguntou se poderia ir para a casa dele. O amigo veio buscá-lo. No caminho, Otavinho comentou sobre o acidente. Desconfiava não ter sido acidente. Juca se espantou. Deixa disso rapaz. Ela te adora!
Uma semana depois, ela o encontrou. Às lágrimas, se disse traída. Sempre fez tudo pra ele. Nunca precisou trabalhar. Lhe dava de tudo. Inclusive o uísque que, vezenquando, subtraía do bar da patroa. O patrão, desembargador de prestígio, ganhava tantas de presente. E nem bebia. O estoque só aumentava. A patroa nem se dava conta.
Otavinho voltou com ela pra casa. Um sobrado que sobrara de herança da mãe dela, costureira. Famosa na vila, por ter sido costureira da mulher do desembargador, Dona Maria Eugênia de Castro Almeida. Deu o nome da cliente à filha. Otavinho, abraçado a ela, no táxi, ia  pensando  na vizinha. Sentia falta de Dagomar
Um mês depois, a vida seguia normal. Maria Eugênia cozinhando pra madame. Otavinho tomando o uísque. No estilo cowboy. Como via nos faroestes antigos reprisados infinitamente na televisão. Uma vez por semana dando atenção a Dagomar. Naquela noite, ele exagerou no uísque. Maria Eugênia tinha trazido uma garrafa nova. White horse. Coisa fina!
Subiram pro quarto. No topo da escada, a tontura. Ela ia à frente. Otavinho se agarrou na camisola dela, que virou de imediato. Não conseguiu segurá-lo. Ele sespencou escada abaixo. No hospital, o diagnóstico: duas pernas quebradas, uma luxação no pescoço. Escapou por pouco de um traumatismo craniano.
No dia da alta, lá estava o amigo de novo. No caminho da casa de Juca, Otavinho falava. Tenho certeza que ela me empurrou. Deve estar desconfiada. O amigo continuava negando. Deixa disso rapaz. Ela te adora! Nunca vai te fazer mal.
Maria Eugênia, quando soube da alta, foi pra casa. Não o encontrando, foi direto pra casa do amigo dele. Às lágrimas, repetiu a ladainha. O chamou de ingrato. Mal agradecido. Não teve jeito. Otavinho voltou com ela. No táxi. Abraçado. Pensando em Dagomar, a vizinha. E na garrafa de White Horse.
Tempos depois, a vida corria normal. Maria Eugênia na cozinha da madame. Otavinho tomando uísque e dando assistência semanal à vizinha. Vendo os faroestes na televisão. Até que chegou o sábado fatídico.
Aniversário de casamento e dele. 10 anos de casados! Ele chegando aos 35. Dez a menos que ela. A patroa deu folga pra Maria Eugênia. O Desembargador Castro de Almeida deu uma garrafa de uísque de presente para Otavinho.
Fizeram um churrasco pra comemorar. Chamaram os amigos da vizinhança e o amigo que o tirara do hospital. A vizinha também. Veio acompanhada do corno, Ariovaldo, caixeiro viajante que ficava fora da cidade de segunda a sexta. E Dagomar tão sozinha!
Durante a semana, Maria Eugênia surrupiara três garrafas de uísque. O estoque estava alto no bar do desembargador. Um White Horse, o preferido de Otavinho, um Johnie Walker e um Old Parr. Juca não tomava uísque. Para ele, churrasco combinava com caipirinha. Vontade feita. Vezenquando, Maria Eugênia dava uma bicada na caipirinha de Juca.
Pilotando a churrasqueira, o aniversariante não tirava o olho da vizinha. O uísque cowboy era tragado de um só gole. Dose após dose. Muitas.
A festa rolava no quintal dos fundos. No declive do terreno, havia uma parte mais elevada onde ficava o tanque sob uma cobertura de telhado de zinco. A churrasqueira foi colocada ao lado. Próxima à escada de quatro degraus que dava acesso à parte de baixo do quintal.
Maria Eugênia se aproximou dele por trás. Deu cheiro no cangote. Otavinho se virou rápido. Se desequilibrou. Maria Eugênia fingiu tentar segurá-lo. O empurrou de leve. Ele caiu em cima da faca do churrasco. No momento do abraço, cortava uma linguiças. Otavinho não resistiu aos ferimentos. Morreu na entrada do hospital. Olhando para Maria Eugênia que sorria.
E não é que no final deu tudo certo!