sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 12 - Notícias de uma jornada de 75 dias

Dois meses e meio depois de nossa chegada na Holanda, junto com o fim de 2021, chegam notícias de que este será o réveillon mais quente desde 2017. Naquele ano, a temperatura em 31 de dezembro atingiu 13,3 graus centigrados em nossa região. Em De Bilt, pequena cidade encostada em Utrecht, nas primeiras horas da madrugada de hoje, a temperatura foi de 14,4 graus centígrados. Por outro lado, uma semana antes do Natal, havia previsão de neve em Utrecht para o dia 25. Pensamos que teríamos um Natal Branco, mas isso não aconteceu. Apesar da temperatura oscilar entre -2 e 2 graus centígrados, nada de neve naquele dia.  Uma semana depois, esta temperatura atípica! Qie foi devidamente celebrada por nós com uma caminhada até o parque Grift na região nordeste de Utrecht. Até o sol deu as caras por volta de meio dia.

Nesse dia preguiçoso, em que aguardamos a simbólica passagem para um novo ano, decido escrever sobre notícias que me chamaram a atenção nestes 75 dias de vida na Holanda. Logo nos primeiros dias, após as impressões iniciais, angústias, incertezas e expectativas, pensei que precisava saber mais dessa terra e povo. Assim, na tentativa de melhor conhecer o país que seria minha morada por seis meses, busquei na Internet algum site em que pudesse me informar sobre o que aqui é notícia. Encontrei dois jornais online com notícias em inglês: o NLTimes.nl e o DutchNews.nl. Me tornei leitor assíduo do primeiro. O segundo acesso mais raramente. Hoje, nesta mini retrospectiva de quase onze semanas, relembro alguns fatos e notícias.

Logo na primeira semana, no campo da cultura, descubro que SinterKlaas iria passar com seu barco a vapor pelos canais de Amsterdam. Ao contrário dos outros anos, haveria apenas uma festa de chegada no dia 14 de novembro, quando o seu barco iria até o Prinsengracht pelo rio Amstel, e só depois iria até o Museu Marítimo como era o costume. Apesar da pandemia de Covid 19, as autoridades municipais informavam que seria possível que a população participasse das boas-vindas a SinterKlass, às margens do rio e dos canais, sem a necessidade de mostrar o Coronapass. Este é um passe eletrônico, na forma de aplicativo em celular, que é usado como controle sanitário na Holanda e outros países europeus para evitar que pessoas não vacinadas ou não testadas tenham acesso a lugares públicos de acesso restrito.

É claro que as notícias sobre a pandemia e as restrições governamentais estiveram no noticiário todos os dias. Toda manhã havia a atualização do número absoluto de novas infecções, hospitalizações, mortes e altas hospitalares, bem como as médias das últimas semanas. Amsterdam, Haia e Roterdã eram sempre as cidades com maior número de casos. Porém eventualmente, Utrecht, aparecia também com número elevados de caso e internações. As notícias mais recentes contam sobre o predomínio da variante Omicron, que foi a responsável por mais de 80% das infecções no dia 28 em Amsterdam.

Hoje, a meio caminho do lockdown determinado pelo governo no dia 19, e previsto para se encerrar em 14 de janeiro, a principal dúvida é se as escolas devem voltar a funcionar a partir de 10 de janeiro. Embora, o lockdown vá durar mais cinco dias, sete se contarmos sábado e domingo, 60 organizações fizeram um manifesto pedindo que o governo autorize a retomada das aulas antes do fim do lockdown. Fico em dúvida se uma semana a mais de folga escolar traria realmente tantos prejuízos quanto dizem os especialistas em educação. Afinal o que são sete dias em meio a 4.275 semanas, que é a expectativa de vida de um cidadão holandês hoje. Praticamente nada!

Outro tema que volta e meia aparece no noticiário é a questão da moradia na Holanda. Já comentei em outra crônica que há um déficit muito grande de moradia no país. Pois, a partir do próximo ano, as prefeituras municipais estão autorizadas a criarem restrições sobre o destino de imóveis residenciais negociados no mercado imobiliário. Muitas das cidades estão criando normas que impedem que imóveis recém-comprados sejam colocados para aluguel, antes de decorridos entre 4 e 5 anos. Ou seja, há uma tentativa de controlar o mercado imobiliário e a constante elevação de preços de compra e aluguéis, restringindo a ação de grandes corporações que compram imóveis como investimento.

Aliás, pelo que pude entender do pouco que li sobre o sistema parlamentarista de governo aqui na Holanda, parece que no primeiro dia do ano, entram em vigor novas leis e regulamentos que são aprovados no ano anterior. Assim, conforme notícia que li no NlTimes, 72 leis e normas começam a valer a partir de amanhã. Entre elas, estão cobertos os mais diversos aspectos da vida neste país que foram classificados em seis áreas: trabalho e renda; cuidado e saúde; famílias e parentes; moradia e vida; negócios; e governo e segurança. 

Aliás, por falar em governo, finalmente os quatro partidos que conseguiram formar a maioria parlamentar, fruto das eleições ocorridas há mais de 14 meses, chegaram a um acordo e irão formalizar a proposição de um novo Gabinete (Cabinet) ao rei holandês no dia 8. A posse está prevista para o dia 10. Serão 29 membros de governo (20 ministros e nove secretários) distribuídos pelos partidos que integram a coalizão. Foi o Gabinete que mais tempo levou para ser acordado na história do parlamento holandês. Nesse período, o governo anterior continuou atuando como provisório. Algo muito estranho para nós, que somos acostumados com o sistema presidencialista, entendermos, não é?

Pois então, nesse tempo de convívio restrito com o povo e a cultura holandesa, vou tentando conhecer seus hábitos e costumes especialmente pelas notícias eletrônicas. Uma rápida leitura hoje, me mostrou que as infecções de Covid 19 continuam subindo, o governo pretende vacinar toda a população adulta, que assim o desejar, com a terceira dose até o final de fevereiro, e viajantes dos Estados Unidos terão que fazer quarentena de 14 dias ao chegarem nos Países Baixos. 

Nesse campo de vacinação, porém, somos uns privilegiados. Já tomamos nossa segunda dose da Pfizer aqui na Holanda, que somadas às duas doses da Astrazeneca que recebemos em Curitiba, nos fazem ser um casal do venho chamando de “biboosters”! "Booster" é como está sendo chamada a terceira dose de vacina por aqui. Devemos ser quase únicos no mundo por, além da terceira dose, já termos recebido uma quarta dose. Apesar disso, continuamos cuidadosos e seguindo as regras sanitárias do país.

Por fim, no campo da cultura, continuam a surgir informações sobre a compra de um quadro de Rembrandt por 175 milhões de euros, dos quais 150 milhões foram pagos pelo governo. O restante foi pago por um fundo do Rijksmuseum e da Rembrandt Association. Será que faz sentido pagar tanto dinheiro para que um quadro fique exposto em um museu? Mesmo sendo o autorretrato chamado “The Standard Bearer” de Rembrandt, tenho cá minhas dúvidas!

É nessas horas que, eu penso, só a poesia nos ajuda na lida com a humanidade. Lembrei-me de Carlos Drummond e seu Poema de Sete Faces que aqui reproduzo, com minha esperança de um mundo melhor a partir de 2022:

Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida

As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos

O bonde passa cheio de pernas
Pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
Não perguntam nada

O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode

Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco

Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração

Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo

domingo, 26 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 11- Sobre livros e chás

Ainda em Curitiba, alguns meses antes de nossa vinda para os Países Baixos, me dei conta que jamais havia lido algum livro da literatura holandesa. Naqueles dias, estávamos tendo aulas de holandês com Mariângela Guimarães, que morou muitos anos por aqui. Embora, tenhamos parado com as aulas, devido às incertezas sobre a viagem, em uma de nossas aulas online, pedi a Mariângela, que é tradutora da língua holandesa para a nossa, uma sugestão de livro de escritor ou escritora daqui. Sua sugestão foi Tirza de Arnon Grunberg, traduzido pela própria.
A leitura foi apaixonante! Uma trama envolvendo a relação entre pai e filha, em meio a uma crise profissional. Com um final surpreendente, a narrativa me emocionou muito. Há alguns traços de Nelson Rodrigues no romance. Contudo, não imagino que Grumberg o tenha lido. É a vida humana que tem seus modos e trejeitos que, às vezes, me parecem ser universais. Afinal, Leon Tolstoi  já comentou sobre isso quando, supostamente afirmou: " Se queres ser universal, comece por pintar sua aldeia".
Depois de nossa chegada à Holanda, tive oportunidade de conhecer um livro de uma escritora holandesa. Fazendo uma busca na Internet, descobri Marieke Lukas Rijneveld, jovem escritora que ganhou o prêmio Booker de literatura em 2020 com seu romance "De avond is ongemak", que em português seria "A noite é desconfortável". Li a tradução inglesa feita por Michelle Hutchinson, sob o título "The discomfort of evening". Marielle atualmente mora em  Utrecht. Seu romance tem como protagonista uma menina de dez anos e narra sua vida, junto ao irmão mais velho e à irmã caçula, em meio a uma crise entre os pais devida à morte acidental do primeiro filho. Não sei se já foi traduzido para nossa língua, mas para quem lê em inglês é um romance que recomendo muito. As dores universais da passagem da infância para a adolescência narradas de forma brilhante. E, como se espera de uma escrita envolvente, com um final que se suspeita, porém impossível de imaginar. Só lendo para saber!
Outro dia, enquanto lia o NL Times, jornal online em que me informo sobre as notícias locais, vi uma notícia sobre a concessão do P.C. Hooft Prize para Arnon Grunberg. Este é um prêmio de literatura na Holanda e Grunberg foi contemplado na modalidade de prosa (ficção). A princípio não me lembrei de que já o havia lido. É difícil guardar esses nomes holandeses na memória! Busquei algum livro dele na Amazon e encontrei "Amuse-Bouche", "Amuse-Gueule" em holandês, traduzido por Lisa Friedman e Ron de Klerk, em 2008. É im livro de contos que Arnon Grunberg publicou em 2001. Uma tradução literal seria "Entradas" em uma refeição ou pequenas porções de comida que são preparadas pelas cozinheiras ou cozinheiros como amostra para os comensais.
Como disse, não lembrei que era o mesmo autor de Tirza. Ontem à noite, na cama, li o primeiro conto. Uma narrativa curta deliciosa em que o próprio autor é o protagonista. Em uma das cenas narradas, uma mulher oferece um chá a um convidado. Após serví-lo, antes que ele começasse a tomar o chá, após ter colocado o saquinho de chá no pires ao lado da xícara, ela pegou o saquinho de chá de volta. E comentou que o guardaria na geladeira. Surpreendente, não! Aliás, surpresas ao final da literatura holandesa parecem fazer parte da cultura local.
Eu ri sozinho com esta cena preciosamente narrada pelo autor. Minha mulher já adormecera ao meu lado. Hoje pela manhã, enquanto caminhávamos pelo bairro, lhe contei o que li ontem enquanto ela dormia. Especialmente, sobre a cena dos saquinhos de chá. Ela riu também, pois ambos lembramos da mesma coisa que aconteceu conosco em Amsterdam. Nos deixou boquiabertos.
Volto à ideia de guardar saquinhos usados de chá. Neste caso, porém, este fato talvez não seja surpreendente para quem vive por aqui. Quando estávamos em Amsterdam, hospedados por um brasileiro que vive aqui há mais de 30 anos, certa noite fiz um chá para nós. Depois de pronto,, quando tirava os saquinhos das xícaras, adivinha o que ele me disse?
_ Fernando, você pode guardar os saquinhos para usar novamente.
Eu, obediente que sou, pus os dois saquinhos em um pires no canto da pia. Mas, na manhã do outro dia, joguei no lixo sem reusá-los. Talvez se eu tivesse lido esse conto antes, não tivesse estranhado tanto a sugestão de nosso anfitrião.
P.S.: continuo jogando os saquinhos de chá no lixo sem reusá-los. Os dois que você vê na fotografia foram as vítimas de ontem

domingo, 19 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 10: Is het lekker, meneer?


Hoje, mais um domingo em Utrecht, se iniciou um período de quatro semanas de quase completo lockdown. Receosos sobre as imprevisíveis consequências da nova variante do coronavirus, a omicron, os membros da equipe de saúde que acompanha a evolução da pandemia em terras holandesas sugeriram medidas drásticas. E o governo resolveu adotá-las!
Exceto por algumas atividades essenciais, tais como saúde, supermercados e farmácias, mais algumas poucas profissões, todo o comércio e setor de serviços deverão ficar fechados até o dia 14 de janeiro. Vinte e oito dias!
Escolas e universidades que vinham funcionando parcialmente, agora estão fechadas também. Eu, que já enfrentava alguns percalços em encontrar meus colegas holandeses que me recepcionam na Utrecht University, mais uma vez, terei que me concentrar em um trabalho à distância nesse período.
Nada difícil para quem já esteve neste modo de trabalho entre março de 2020 e outubro de 2021. Porém, não deixa de ser um pouco frustrante, não é? No começo de outubro, quando precisava decidir se viria para Utecht, a cada dia as notícias sobre a pandemia eram menos preocupantes. A princípio teriamos que fazer uma quarentena de ao menos uma semana, quando chegássemos. Com esta informação, julguei que valeria a pena tentar. Uma semana depois, com visto confirmado, a situação melhorou. Bastava fazer um teste rápido 24 horas antes do embarque. Depois da chegada, a vida parecia quase normal. O uso de máscaras não era mais obrigatório.
Mas, cerca de dez dias depois, começaram novas restrições: uso de máscaras em lugares públicos, comprovante de vacinação, coronacheck (um aplicativo que demonstra sua situação de vacinado ou testado) exigido em bares, rstaurantes, museus, cinemas, etc. E, a partir de hoje, o lockdown parcial, com recomendação de sair de casa só quando estritamente necessário. Vamos lá, então! Afinal, parafraseando Euclides da Cunha, o professor é antes de tudo um forte!
Parece até que estávamos adivinhando. Ontem, sábado, resolvemos ir passear em Amelisweerd. É um parque que fica em Bunnik, pequena cidade encostada em Utrecht. Tanto Erik quanto Niels, dois dos meus anfitriões da Escola de Economia da Utrecht University, em momentos diferentes, sugeriram o passeio.
Amelisweerd fica há apenas 2,5 km de nosso apartamento no campus. Por volta das 11 horas da manhã, fomos fazer mais um teste PCR para que pudéssemos aproveitar e, após a visita ao parque, ir a um bar ou restaurante. Felizmente, mais uma vez, o resultado foi negativo para ambos. 30 minutos depois, enquanto nos aproximávamos de Amelisweerd, recebemos os resultados em nosso celular, que foi transferido para o Coronacheck. Estávamos tranquilos para nosso passeio.
Depois de passear por Amelisweerd, que realmente é um lugar belíssimo e muito prazeroso para caminhar, vimos um restaurante no próprio parque. Tinha fila de espera. No entanto, ao seu lado, um trailer de lanches e bebidas estava bem movimentado. Um cheiro bom de sopa vinha dele. Bem a calhar para a temperatura en torno dos 9 graus centígrados. Foi nossa escolha. Acertada. Uma delícia de sopa.
Com a fome saciada e o calor gostoso da sopa, decidimos aproveitar nosso teste de coronavirus e ir até o Museu Central de Utrecht. Um passeio pensado e adiado várias vezes.
Consultei o Google maps e vi que a caminhada até o museu seria longa. Felizmente, o mapa mostrava um ponto de ônibus relativamente perto, 800 metros. Fomos seguindo as instruções, mas não conseguimos localizar o ponto de ônibus. Perguntamos a duas mulheres que quiseram saber para onde íamos. Ao saber de nosso destino, uma delas disse:
_ É bom ir hoje mesmo. Há rumores de que a partir de amanhã haverá lockdown. O governo dará uma coletiva de imprensa mais tarde.
Nisso, a outra apontou para o outro lado da rua. Lá estava o ponto. Não o tínhamos visto. Enfim, logo depois chegou o ônibus, descemos nas proximidades do museu e o visitamos por pouco mais de duas horas. Merece uma nova visita. Muita coisa para ver em pintura, esculturas e outras manifestações da artes visuais de Utrecht e outras parte da Holanda.
Para encerrar o dia, fomos até o Vila Orloff, um bar e restaurante à beira do canal Oudegracht. O lugar fecharia às cinco horas devido às restrições que prevaleciam antes do novo lockdown. Ficamos quase uma hora por lá. A famosa happy hour! Foi um sábado delicioso!
De noite, em casa, fui acompanhando as notícias sobre o lockdown em um site da internet que publica notícias em inglês. Meu holandês, como você sabe, ainda é insuficiente para uma comunicação mais longa.
Contudo, vou progredindo com minhas lições diárias de autoaprendizagem. Não é que outro dia, quando comia um krantenbol, sentado ao lado de uma Oliebollenkraam, duas moças passaram por mim e uma delas me perguntou:
_ Is het lekker, meneer?
Ao que eu imediatamente respondi:
_ Ja.
Não é que meu parco holandês já me permite pedir um krentenbol com açúcar por favor (een krentenbol met suiker, alsjeblieft)! E depois responder que ele estava gostoso. Quer saber o que é oliebol e krentenbol? Leia a crônica de número 2 dessa série. Foi uma das minhas primeiras descobertas da gastronomia holandesa.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 9: O gato no campus, um médico capoeirista e alguns “floaters’

Ontem o dia nasceu com um pouco de sol, embora tardio. Por aqui, nessa época, o dia clareia com a luz do sol por volta das 8:30h e começa a escurecer em torno das 16:30h. É um sol avarento e quase burocrático! Sistematicamente, cumprindo sua função de iluminação e fonte de calor por meras oito horas diárias. Como se estivesse por aqui apenas para cumprir tabela, quase sempre encoberto pelas nuvens, como neste domingo, por exemplo. 

Mas, quero falar de ontem e de anteontem, nesta crônica. Não sobre hoje, já que às dez horas da manhã de um domingo, ainda não ocorreu nada de extraordinário. Apenas a rotina matinal: acordar, lavar rosto, escovar dentes, preparar o café, ligar o rádio na Sublime, estação que toca muita música, inclusive brasileira, e pouca notícia. As notícias são em holandês, é claro! Com minhas lições diárias da língua holandesa em um aplicativo gratuito, começo a entender algumas palavras. Poucas, porém! Ainda insuficientes para compreender as notícias. Mas, fujo do assunto, vamos a ontem e anteontem.

Ontem pela manhã. após minha prática diária do holandês, olhei em direção à Campusplein, praça central do campus universitário, bem em frente a nosso apartamento. Como sempre, há aves a sobrevoando, especialmente algumas gaivotas, as pegas rabudas (magpies que fizeram parte da crônica inaugural desta série) e pequenos corvos. Estes, quase sempre, caminham sobre o extenso gramado que ladeia a praça, sob as árvores já desfolhadas pelo outono que em dez dias dará lugar ao inverno.

Sob o sol claro, mas não intenso, e insuficiente para elevar a temperatura acima dos 5 graus centigrados, vi à direita um gato. Amarelo e branco, não muito grande, caminhava felinamente em direção a um bando de corvos que estavam à direita da praça, na altura do mastro em que está hasteada a bandeira da universidade de Utrecht. Em seu caminhar cuidadoso, e aparentemente silencioso, após alguns passos, o gato parava e olhava em direção ao bando de corvos. Atraído pela visão, me levantei da cadeira e fui apreciar o gato em sua aventura. Era um gato franzino, porém audacioso. Os corvos estavam em muito maior número. Me perguntei se o gato tentaria pegar um deles? E mais, teria sucesso? Aparentemente, ainda distantes, os corvos não se importavam com a aproximação do gato solitário. Ele continuava em sua caminhada silenciosa, pontuada por paradas estratégicas. Enquanto se aproximava ainda mais do bando de corvos, duas gaivotas passaram voando por ele, a uma altura muito segura. Foram em direção ao bando de corvos que, imediatamente, partiram em revoada. Frustrado, o gato deu meia volta e caminhou lentamente em direção a um dos prédios que circundam a praça. Não foi dessa vez!

A cena me trouxe à lembrança a visita que fiz na sexta-feira a um médico aqui em Utrecht. Talvez, porque a razão de minha consulta tenha sido relacionada a um problema de visão. Ao exercer a visão, acompanhando a frustrada tentativa do gato de alcançar um único mísero corvo, lembrei-me de outras visões involuntárias que tive recentemente. Calma aí! Não é nada de extraordinário! Nada a ver com irrealidades ou coisas de outro mundo. Já lhe explicarei. Mas, antes, falo do médico. 

Seguindo o modo de funcionamento do sistema de saúde na Holanda, após a mudança para Utrecht, já devidamente registrados e com permissão oficial de moradia no país, tivemos que nos registrar em uma clínica médica que faz os atendimentos iniciais da maioria dos casos de doença, exceto em emergências. Fizemos o registro em uma clínica não muito distante de onde moramos há cerca de três semanas. Não imaginava eu, que fosse precisar dos serviços médicos tão rapidamente. Na quinta-feira à tarde, alguns dias após os primeiros sintomas, liguei para a clínica e consegui agendar a consulta para o dia seguinte. Cheguei um pouco adiantado, mas não tive que esperar muito. Cinco minutos após o horário previsto para minha consulta, veio um médico em direção à sala de espera e me chamou pelo sobrenome:

_ Meneer Gimenez?

Com meu pouco holandês, entendi que era minha vez. Meneer Gimenez é a maneira formal de chamar um homem pelo sobrenome. Se fosse uma mulher, seria mevrouw. O médico me encaminhou a sua sala e iniciou falando em holandês. Perguntei se poderia me atender em inglês. Diante da resposta afirmativa, comecei a relatar minha condição. Ele levantou-se, me examinou, comigo ainda sentado, retornou a sua mesa e se dirigiu a mim em português:

_ Você fala português, não? Veio do Brasil?

Para minha surpresa, o médico fala português e joga capoeira. Perguntei onde aprendera nossa língua. Ao responder, me mostrou uma fotografia em preto e branco de capoeiristas em uma praia com palmeiras. Me disse que a fotografia era em Salvador e que lá estivera em 2000 ou 2001. Seu mestre de capoeira é brasileiro e eles conversam em português. Mas, imediatamente voltamos para o inglês, pois me disse que para explicar o meu problema de saúde seu domínio de nossa língua era insuficiente.

A esta altura, você já deve estar com muita curiosidade para saber o motivo que me levou ao médico, não é? É meu jeito de tentar prender a atenção de quem lê. Menciono algo nos primeiros trechos da crônica e vou enrolando! Me perdoe, mas você vai saber o motivo logo no próximo parágrafo dessa crônica. No entanto, se você for médico e tiver algum domínio do inglês já deve saber qual é meu problema de saúde a partir do título da crônica. Contudo, imagino que minha comunidade de leitoras e leitores não inclua muitos profissionais da medicina. Mesmo porque é muito pequena! Ou ainda, dependendo de sua idade, você pode saber o que são "floaters".

Dias atrás, uma semana talvez, ao sair do banheiro e ir para a sala do apartamento me sentei ao sofá e enxerguei alguns pontos negros em frente à minha cabeça. Me pareceram ser alguns pequenos mosquitos, ou até mesmo pequenas aranhas, pois tinha a sensação de enxergar fios de teias bem finos também. Passei a mão em frente ao rosto tentando afastá-los. Sem sucesso! Continuaram ao meu redor. Me levantei, um pouco aflito, e passei novamente as mãos pelo rosto. Eles continuavam lá! Minha mulher percebeu e falou:

_ Que foi amor? Está vendo coisas?

_ Sim. Uns pontos pretos ao meu redor. Foi minha resposta.

Ela me tranquilizou. Disse já ter lido sobre isso tempos atrás. Nada sério! Assim, decidi buscar informações sobre esta condição na internet. Descobri que são denominadas “floaters” em inglês e têm a ver com uma degeneração associada, em geral, à idade, e que se manifesta quando, conforme li, a substância gelatinosa (vítrea) dentro dos olhos se torna mais líquida. Isto faz com que as fibras microscópicas dentro do vítreo se agrupem, fazendo pequenas sombras na retina. Em português, encontrei a referência a “moscas volantes” em um site sobre doenças dos olhos. Ufa! Não estava vendo coisas! Nem tendo visões!

Durante a consulta, o médico disse que não encontrou anormalidades em meus olhos, mas de qualquer forma me encaminharia a um especialista para uma avaliação mais completa. Perguntei a ele se poderia esperar meu retorno para o Brasil previsto para final de abril. Ele sugeriu não aguardar. Na segunda-feira tentarei agendar a consulta com o especialista. Mas, após o exame de meus olhos, o médico capoeirista me informou que detectou os sinais iniciais de catarata. 

Essa informação me fez lembrar o que me disse o oftalmologista que me acompanha há mais de 15 anos em Curitiba. Certa vez, durante uma consulta, lhe perguntei sobre como surge a catarata. Dr. Idior é um profissional muito competente e muito didático. Muito atencioso, durante suas consultas sempre me explicou detalhadamente sobre meus problemas de visão. Nesse momento, ele pegou um dos modelos plásticos de olhos sobre sua mesa e me deu uma pequena aula sobre o surgimento e crescimento da catarata em nossos olhos. Ao final disse:

_ Todo mundo vai ter catarata um dia. Só não terá se morrer antes!

Em muitas ocasiões, conversamos sobre a possibilidade de eu fazer cirurgia para corrigir a visão. Era algo que planejava fazer, mas sempre adiava em função do custo, pois não seria coberta pelo plano de saúde. Na última vez que o consultei, quando minha situação financeira estava muito mais confortável, e eu disposto a fazer a cirurgia, ele mês respondeu:

_ Fernando, agora é melhor esperar a catarata surgir. Você já está em uma idade que convêm aguardar e fazer as duas cirurgias ao mesmo tempo.

Dr. Idior, além de médico atencioso e metódico, tem um humor muito sútil. Aprecio seu humor. Me diverti com a resposta e abri um sorriso amplo. Assim, com o passar dos anos, parece que vou desenvolvendo as doenças oculares da idade que avança. Espero que as moscas volantes sejam apenas consequência deste envelhecimento e não algo mais sério. Por enquanto, vou aproveitando o exercício do dom da visão. Não é sempre que se pode observar um felino tentando se fartar com um pequeno corvo, não é mesmo? Que venha a catarata e que eu continue nesta vida por muitos anos ainda! 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Crônicas na Holanda 8 - Quatro ícones holandeses

Então, eu sei que a leitora ou o leitor que acompanha esta série de crônicas, pode achar estranho o uso do adjetivo "holandês" e suas variações nos meus textos. Mas, é difícil mudar um hábito de toda uma vida assim de uma hora para outra. Embora eu tenho explicado, em outra crônica (https://brevestextos.blogspot.com/2021/11/cronicas-na-holanda-3-sobre-pessoas.html), que agora a Holanda deve ser chamada de Países Baixos, visto que Holanda é apenas uma parte desse país, para mim ainda surge automaticamente a palavra holandês para qualificar o povo e as coisas daqui. Afinal, será que alguém saberia do que eu quero falar se escrevesse neerlandês ou neerlandesa?
Desde a escola primária e secundária, aprendi sobre a Holanda e os holandeses. Principalmente nas aulas de geografia e história. Assim, com a devida vênia, como costumam se expressar os praticantes do Direito, sigo no uso do termo popular, mas consciente da minha falta de  precisão. Portanto, para não complicar muito minha vida e da meia dúzia de leitoras e leitores fiéis ao blog, continuarei usando o modo comum de me referir às pessoas, à vida e aos fatos desse país.
Todo esse falatório ou escrevinhatório serve apenas de mote para eu falar de quatro ícones da vida holandesa. É claro que pode ou deve haver outros pois a própria palavra "holandês" pode ser um ícone também que nos traz inúmeras imagens, indícios e significados . Três dos ícones que quero comentar são muito conhecidos por mim e, imagino por muita gente. O último, porém, só vim conhecer quando aqui cheguei.
Começo pelos mais comuns. Não há como negar que moinhos, canais e bicicletas são palavras e imagens que carregam um forte indício de vida holandesa ou sentimento de algo holandês. É claro que canais podem nos lembrar Veneza. Também, moinhos nos remetem à Espanha e as aventuras de Don Quijote de La Mancha narradas por Miguel de Cervantes. Mas, se falamos de canais, moinhos e bicicletas, não há como deixar de pensar em alguma paisagem holandesa, não é mesmo?
Por isso, na imagem que uso para ilustrar esta crônica juntei uma fotografia do Molen de Ster, moinho que fica no Molen Park em Utrecht. Ao lado do moinho, na fotografia e não na geografia, coloquei uma imagem do canal Kromme Niewegracht que fotografei hoje pela manhã a partir da Driftbrug (Ponte Drift) muito próxima à biblioteca da Utrecht University.
Na parte inferior da imagem, ao invés da fotografia de bicicletas, escolhi a fotografia de uma bomba manual de encher pneus de bicicletas. A bomba, um ícone por si só, me trouxe à memória lembranças do Supermercado Gimenez em Londrina. Tínhamos duas bicicletas utilizadas para entregas a domicilio e uma bomba desse tipo. Mas, isto é história para outro post. 
Aqui e agora quero falar do que me indiciou esta bomba de pneus de bicicleta em Utrecht. Esta fotografia tirei em frente a uma loja de venda, aluguel e consertos de bicicletas. A loja não é muito distante de onde moramos e, assim como observei em inúmeras outras lojas do tipo, que são abundantes em Utrecht, tem ao lado de fora esta bomba. Imagino que seja utilizada para encher os pneus das bicicletas que são vendidas ou alugadas. Mas, também, me parece ser uma cortesia aos inúmeros usuários de bicicleta que circulam na rua onde está instalada. Outro dia, quando voltava para casa, após uma caminhada, vi um senhor parando em frente à loja no seu trajeto de bicicleta para utilizar a bomba.
Por fim, chego ao quarto e último ícone holandês desta crônica. No canto direito e inferior da imagem estão SinterKlass e dois Zwarte Piet (São Nicolau e Pete Preto). A princípio, pensei ser a representação de Papai Noel, embora sem as renas. Mas, descobri que não tem nada a ver com as celebrações de Natal como estamos acostumados.
Como aprendi no livro sobre a Holanda que comentei na outra crônica mencionada ao início deste post, SinterKlass é celebrado a partir de meados de novembro, quando chega à Holanda vindo de barco da Espanha acompanhado de seus assistentes todos chamados de Zwarte Piet. Inspirada na generosidade de São Nicolau, em especial com as crianças, a tradição celebra o nascimento de SinterKlass no dia 5 de dezembro, com a troca de presentes na noite desse dia. Os assistentes de SinterKlass são os que sabem quais foram as crianças com bom ou mau comportamento, ou seja, quem merece e quem não merece ganhar presentes. É claro que, ao final, todas a crianças ganham presentes. Bem como os adultos. O interessante desta tradição é que as trocas de presentes são acompanhadas por pequenos poemas, com frases engraçadas, que aquele que dá o presente escreveu sobre quem ganha . Se referem, também, a situações vividas pelo destinatário do presente durante o ano. Pelo que entendi o poema é lido no momento da troca de presentes. A noite do 5 de dezembro se chama paksjeavond em holandês, a noite do presente. Muitas vezes, o presente pode ser feito por aquele que dá e se constitui em alguma "surpresa" para quem recebe.
Nos últimos anos tem havido resistência ao uso do nome Zwater Piet. Os assistentes de SinterKlass são representados por pessoas brancas com os rostos pintados de preto. A tradição diz que os Zwarte Pieten (plural de Piet em holandês) representam os moros que habitaram a Espanha. No entanto, devido a críticas associadas ao aparente racismo dessa representação, os Zwarte Pieten não têm mais pintado suas faces de preto. Como é, aliás, o caso dos dois que aparecem ao lado deste SinterKlass que fotografei hoje bem próximo à DriftBrug.  Eles têm sido chamados de Kleur Piet (Pete Colorido) ou Roet Piet (Pete fuligem), pois os rostos são coloridos com cinzas ou fuligem. 
Sobre uma coisa você pode ter certeza. SinterKlass e Santa Clauss não são a mesma tradição. Afinal, enquanto Santa Clauss vive no Pólo Norte e viaja em um trenó puxado por renas pelos céus frios do inverno, SinterKlass vive no Sul da Espanha e viaja para a Holanda pelos mares que, também, estão frios nesta época do ano. Ademais, o Natal é também celebrado três semana após a paksjeavond pelos holandeses que o chamam de Kerstmis. Com certeza, SinterKlass é mais um ícone que se adiciona aos outros três que me fazem imaginar alguma representação holandesa!