quinta-feira, 20 de junho de 2019

Uma jangada na Praia do Ervino

Lorde Kennedy foi o último a acordar naquela manhã. Isto fez com que os demais ficassem preocupados. Em geral, ele acordava logo depois do velho China que sempre era o primeiro. Dama foi a que falou primeiro:
_ O que aconteceu querido?
Desde que assistiram à Dama e o Vagabundo na Prainha, os dois passaram a ficar juntos. Lorde Kennedy respondeu:
_ Não dormi bem à noite. Tive um sonho estranho.
Alemão entrou na conversa:
_ Eu percebi. Você deu muitos grunhidos estranhos. Parecia estar sofrendo.
_ Estava mesmo. Era um pesadelo.
_ Conta pra nós, pediu Vina.
Mas, Lorde Kennedy não quis contar. Apenas disse:
_ Melhor esquecer esse pesadelo. Foi muito assustador. Nós todos acabamos mal nele. Vamos falar de coisa boa. Qual vai ser a aventura de hoje?
Dessa vez foi Chumbinho que entrou na conversa:
_ Ontem ouvi Nego comentando com a cozinheira que teria que ir à Praia do Ervino. Vamos com ele?
O velho China alertou:
_ Parece que ele está quase pronto pra sair.
Todos correram para a frente do Bar do Nego. Alemão os ajudou a entrarem na traseira da caminhonete do Nego.
Nisso Nego e a cozinheira chegaram à porta do bar. Ao ver a cena, ele sorriu e disse:
_ Vejam só. Parece que vou ter companhia.
Quando chegaram à Praia do Ervino, Nego estacionou a caminhonete em frente ao mar. Todos saltaram. Nego falou para a gangue:
_ Não vão para muito longe. Em uma hora estou de volta.
Lorde Kennedy e sua gangue partiram em disparada para a praia. No inverno, a praia estava deserta. Na areia viram uma  embarcação estranha. Muito diferente dos barcos que viam em São Francisco do Sul.
China, que já havia viajado o mundo, explicou para os demais:
_ É uma jangada. Uma embarcação muito comum no Nordeste do Brasil. Como será que veio parar aqui?
_ Vamos subir nela, sugeriu Vina.
_ Isso mesmo, se entusiasmou Chumbinho.
E Dama completou:
_ É. Vamos brincar que estamos em alto mar.
Enquanto estavam em cima da prancha, a maré começou a subir. De repente, com uma onda mais forte a jangada se pôs em movimento. E foi se afastando da praia. Os cães se assustaram. Alemão conseguiu pular e disse aos demais:
_ Vou atrás do Nego. Ele vai dar um jeito de tirar vocês daí. China nao deixe nenhum cair no mar.
Enquanto Alemão ia em direção aonde Nego tinha ido, o velho China ordenou:
_ Fiquem mais ao centro da jangada. Ela é muito segura. Não tenham medo.
A jangada tinha se afastado mais de 500 metros da praia. China estava com medo de que fossem para mar aberto. Mas, procurava não demonstrar sua apreensão para os demais. Olhando à frente enxergou um grupo de golfinhos brincando no mar. Ele falou para os outros:
_ Golfinhos. Vejam. Vou tentar atraí-los. Eles podem nos ajudar.
Começou a latir. Os demais o acompanharam. Dois golfinhos ouviram e se aproximaram. O primeiro disse:
_ O que está acontecendo?
Depois que China explicou o que lhes tinha acontecido, o segundo disse:
_ Tem duas cordas amarradas na frente da jangada. Nós podemos rebocá-los.
Lorde Kennedy entrou na conversa:
_ Poxa! Muita gentileza de vocês. Vão nos salvar.
Foi então que o outro golfinho disse:
_ Mas, antes de voltar à praia, que tal um passeio pelo mar. Podemos dar um giro e mostrar as ilhas da região para vocês.
Todos concordaram. Vina e Dama ficaram muito alegres. Cada golfinho prendeu a ponta de uma das cordas entre os dentes e nadaram.
O mar não estava muito agitado. A jangada singrava as águas e deixava um rastro de espuma branca. Passaram ao redor de três ilhas.
Depois de uma hora, quando os golfinhos estavam rebocando a jangada em direção à praia, eles viram Nego e Alemão sentados na areia. Os dois correram até a jangada e terminaram de arrastá-la para terra firme. Os golfinhos partiram rapidamente em direção ao seu grupo. Lorde Kennedy e sua gangue só tiveram tempo de acenar adeus. Tudo acabou bem.
Já acomodados na traseira da caminhonete, voltando para São Francisco do Sul, Lorde Kennedy disse:
_ Que aventura hein! Meu pesadelo essa noite foi no mar também. Mas, ainda bem que na vida real o final foi diferente.

domingo, 16 de junho de 2019

Memórias

A diferença surgiu quando ela terminou de narrar sua história. Ele disse:
_ Não foi bem assim, querida!
_ Como não? Ela respondeu.
_ Você tem mania de florear as coisas.
_ Você que é um insensível. Não consegue ver a beleza das coisas.
Ela terminara de contar como se conheceram e se apaixonaram 40 anos atrás. Antes que os ânimos se esquentassem, tentei trazer um novo assunto à baila:
_ Vocês viram o ultimo filme do Karim Aïnouz?
Depois de algum tempo, terminamos o nosso café. Eu os tinha encontrado no calçadão. Eram quase quatro horas da tarde. Há anos não nos víamos. Minha última separação havia nos distanciado. Algo mais comum, do  que você pode imaginar. Amigos do casal, sentiram-se constrangidos em manter a regularidade dos encontros semanais. Um sempre estaria de fora. Como na versão que prevaleceu eu era o culpado,se afastaram de mim.
Mas, não pense que carrego mágoas. Assim como as memórias, as versões diferem. Versões são memórias não comuns!
Os havia convidado para um café no Paço da Liberdade. Depois que partiram, resolvi tomar mais um café. Morando só, não tinha pressa em chegar em casa. Depois que consegui atrair a atenção do atendente, pedi:
_ Mais um machiatto e um pão de queijo por favor.
Me lembrou a fala de um personagem de um filme que assistira no último final de semana. Uma droga! Eu e essa minha mania de assistir cinema nacional. Vezenquando assisto cada porcaria! O filme me lembrara de um sonho antigo. Nunca compartilhado com nenhuma das mulheres que haviam passado por minha vida. Era meu modo de confirmar uma tese que havia deixado algumas delas enfurecidas. Eu costumava afirmar:
_ É impossível conhecer o outro completamente. Há sempre algo que guardamos só para nós. Esse segredo nunca será uma memória em comum!
A lembrança do filme me trouxe à memória a desavença entre o casal. Quase se estranharam por causa de memórias diversas sobre o mesmo fato. O que parecia ser uma memória em comum, mostrava-se diferente.
Até parece que é possível compartilharmos as mesmas memórias! Não acredito nisso.
Mas, um fio de memória arrasta outro fio de memória. Me lembrei de uma viagem. Estava casado.  Fizemos tudo juntos. Inseparáveis. Foi só um final de semana. Anos depois, relembrando, disse a ela:
_ Foram os momentos mais tristes de nossa história! Nunca fingi tanta alegria!
Para ela, ao contrário, foi uma viagem maravilhosa. Me perguntei:
_ Teria sido por minha companhia?
A resposta foi o silêncio e um sorriso discreto. Me dei conta que as memórias nem sempre são comuns. Elas podem ser não comuns.
Por isso, não estranhei a diferença na lembrança do casal. E, por isso, dei um jeito de evitar que os ânimos esquentassem. Não vale a pena!
Volto ao meu final de semana ainda casado. O incomum da memória é que eu lhe contava sobre como a leitura de Guimarães Rosa me lembrara outro livro que adquirira nessa viagem. Era um encadeamento de lembranças tão improvável que eu comentara:
_ Olha que memória incomum!
Se tornou mais incomum depois do silêncio dela! Pode rir. Fique à vontade. Eu não me importo.
O atendente chegou com o machiatto e o pão de queijo. Perguntou:
_ Mais alguma coisa?
Eu olhei para ele e perguntei:
_ Você teria um apagador ou uma borracha escolar?
Ele me olhou espantado e disse:
_ Sinto muito. Não temos.
Eu respondi:
_ Deixa pra lá. Eu nao ia conseguir apagar mesmo!
Tenho certeza que ele jamais se esquecerá desse pedido. Uma memória incomum.