domingo, 16 de junho de 2019

Memórias

A diferença surgiu quando ela terminou de narrar sua história. Ele disse:
_ Não foi bem assim, querida!
_ Como não? Ela respondeu.
_ Você tem mania de florear as coisas.
_ Você que é um insensível. Não consegue ver a beleza das coisas.
Ela terminara de contar como se conheceram e se apaixonaram 40 anos atrás. Antes que os ânimos se esquentassem, tentei trazer um novo assunto à baila:
_ Vocês viram o ultimo filme do Karim Aïnouz?
Depois de algum tempo, terminamos o nosso café. Eu os tinha encontrado no calçadão. Eram quase quatro horas da tarde. Há anos não nos víamos. Minha última separação havia nos distanciado. Algo mais comum, do  que você pode imaginar. Amigos do casal, sentiram-se constrangidos em manter a regularidade dos encontros semanais. Um sempre estaria de fora. Como na versão que prevaleceu eu era o culpado,se afastaram de mim.
Mas, não pense que carrego mágoas. Assim como as memórias, as versões diferem. Versões são memórias não comuns!
Os havia convidado para um café no Paço da Liberdade. Depois que partiram, resolvi tomar mais um café. Morando só, não tinha pressa em chegar em casa. Depois que consegui atrair a atenção do atendente, pedi:
_ Mais um machiatto e um pão de queijo por favor.
Me lembrou a fala de um personagem de um filme que assistira no último final de semana. Uma droga! Eu e essa minha mania de assistir cinema nacional. Vezenquando assisto cada porcaria! O filme me lembrara de um sonho antigo. Nunca compartilhado com nenhuma das mulheres que haviam passado por minha vida. Era meu modo de confirmar uma tese que havia deixado algumas delas enfurecidas. Eu costumava afirmar:
_ É impossível conhecer o outro completamente. Há sempre algo que guardamos só para nós. Esse segredo nunca será uma memória em comum!
A lembrança do filme me trouxe à memória a desavença entre o casal. Quase se estranharam por causa de memórias diversas sobre o mesmo fato. O que parecia ser uma memória em comum, mostrava-se diferente.
Até parece que é possível compartilharmos as mesmas memórias! Não acredito nisso.
Mas, um fio de memória arrasta outro fio de memória. Me lembrei de uma viagem. Estava casado.  Fizemos tudo juntos. Inseparáveis. Foi só um final de semana. Anos depois, relembrando, disse a ela:
_ Foram os momentos mais tristes de nossa história! Nunca fingi tanta alegria!
Para ela, ao contrário, foi uma viagem maravilhosa. Me perguntei:
_ Teria sido por minha companhia?
A resposta foi o silêncio e um sorriso discreto. Me dei conta que as memórias nem sempre são comuns. Elas podem ser não comuns.
Por isso, não estranhei a diferença na lembrança do casal. E, por isso, dei um jeito de evitar que os ânimos esquentassem. Não vale a pena!
Volto ao meu final de semana ainda casado. O incomum da memória é que eu lhe contava sobre como a leitura de Guimarães Rosa me lembrara outro livro que adquirira nessa viagem. Era um encadeamento de lembranças tão improvável que eu comentara:
_ Olha que memória incomum!
Se tornou mais incomum depois do silêncio dela! Pode rir. Fique à vontade. Eu não me importo.
O atendente chegou com o machiatto e o pão de queijo. Perguntou:
_ Mais alguma coisa?
Eu olhei para ele e perguntei:
_ Você teria um apagador ou uma borracha escolar?
Ele me olhou espantado e disse:
_ Sinto muito. Não temos.
Eu respondi:
_ Deixa pra lá. Eu nao ia conseguir apagar mesmo!
Tenho certeza que ele jamais se esquecerá desse pedido. Uma memória incomum.

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