terça-feira, 27 de abril de 2021

Três voltas, direita 41, esquerda 80, direita 9. Pronto!

As instruções estavam na memória dela. O problema? Há muito tempo, o acesso às suas lembranças era incerto. Vezenquando, contava coisas de antigamente. Tantos detalhes. Eu até pensava que era invenção dela. Mas uma das irmãs, minha tia, um pouco mais nova, confirmava. Foi assim mesmo! E, quando ela se distraía, me confidenciava, em tom de inquisição: Como pode ela se lembrar tão bem? É claro que não esperava que eu pudesse responder. Era mais uma exclamação. Com jeito de interrogação.
Certo dia, ela queria abrir o velho cofre. Que acompanhara ela e meu pai durante o tempo de comércio. Depois, os acompanhou nos três lugares (uma casa e dois apartamentos) em que residiram após o fechamento do comércio que fez parte da vida do casal por pouco mais de três décadas. Quase 35 anos, para ser um pouco mais preciso. Pero no mucho!
No total, convivera com o cofre por quase meio século. Provavelmente 48 anos, para ser um pouco mais preciso. Pero no mucho! O cofre a acompanhou, após enviuvar,  por mais 12 ou 13 anos.
Eu, no passado, lembrava do segredo. Eram quatro instruções. Quase cinco. A terceira tinha um detalhe importante. Tentei puxar a combinação de movimentos e números da memória. Qual o quê! Depois de muitas tentativas, desisti. Aproveitei a desmemória dela. Esquecera-se que pedira para eu abrir o velho cofre. Me perguntou o que eu queria. Eu disse que era só curiosidade. Ver o que tinha dentro. Ela riu. Só deve ter papel velho. Não sobra nada da pensão e da aposentadoria para guardar no final do mês.
Esquecera-se, também, que já não administrava seu próprio dinheiro. Meio a contragosto, dela, eu assumira esta função. No começo ela reclamava. Quando eu viajava de volta para minha casa, após visitá-la, ela reclamava. Deixa algum dinheiro comigo. Posso precisar para alguma urgência. Eu dizia que assim o faria. Logo depois, ela esquecia o assunto. Com o tempo, deixou de pedir. Teria desistido? Ou esquecido?
Em uma de minhas visitas, uma surpresa. O cofre estava aberto. Ela pedira a um dos outros filhos para chamar um chaveiro profissional. Ele abriu o cofre. As instruções de abertura foram anotadas. Ela o usava para guardar documentos e papéis. Já sem muito tirocínio, guardava o que pensava poder ter algum valor. Extratos bancários que ainda recebia pelo correio. Faturas de contas de telefone, energia e do condomínio. Documentos aos quais eu tinha acesso por email ou internet banking. Ih! Usei três palavras em inglês! Tem gente que acha que tem de escrever estas coisas do mundo digital em português. Está bem! Lá vai: correio eletrônico e banco virtual.
Guardava, também, cópias das inúmeras fotografias e documentos da família que, ao longo da vida, catalogou em inúmeros "albuns da vida". Tenho o meu. Precioso! Mas, não está em um cofre!
Depois de algum tempo, o cofre voltou a ser fechado. As instruções de abertura guardadas em algum lugar. Incerto. Ela as guardara para evitar que alguém pudesse abri-lo. Preocupava-se com aquilo que estava no cofre? Mais provável que fosse força do hábito. O segredo do cofre escondido por mais de 50 anos. Em sua memória. E em algum papel bem escondido. Nunca foi encontrado. 
Ao final de março de 2019, ela faleceu. Fiquei alguns dias em Londrina. Cuidar de detalhes iniciais das coisas que demandam atenção dos que sobrevivem à morte de um familiar. O cofre fechado. Teimoso, mais uma vez, tentei abri-lo. Claro que não consegui. Chamei um chaveiro profissional. Talvez, tenha sido o mesmo que veio da primeira vez. Quando veio abrir o cofre eu não estava. Foi atendido por Alda, empregada doméstica, que cuidou de meus pais por um longo tempo. Quando cheguei, me informou que o cofre estava aberto. Fui ver o que tinha dentro. Alguns passaportes antigos e um livro. De bolso. Este que aparece na fotografia ao final desta memória . Meu livro guardado por minha mãe em um cofre!
O cofre já não sei onde está. Sugeri que meu irmão caçula tentasse vendê-lo. Não sei se conseguiu. O cofre ficava no apartamento dela no Edifício Glória na rua Piauí. Herança que vendemos. Os passaportes e meu livro estão comigo. O segredo do cofre também. Hoje o encontrei. Na memória do celular em que escrevi esta memória. Decidi escrever esta memória. Ao contrário de minha mãe, não lembro de tudo. Porém, tenho a imaginação fértil. Alguns detalhes vieram dela.
Preciso registrar o segredo do cofre em outro local. Para que um dia, quando a memória começar a falhar, eu posso lembrar. Houve um cofre. Para abri-lo bastava seguir estes passos. Com cuidado. Nunca se sabia o que poderia conter: dar três voltas completas; depois girar à direita até 41; à esquerda até 80, passando pelo 41 uma vez; por fim, à direita até 09. Pronto!

domingo, 25 de abril de 2021

Mas, será o Benedito?

Fazia tempo que a vida corria sossegada para Lorde Kennedy e sua gangue. Passeios pelo bairro do bar do Nego pela manhã. De tarde, uma escapada até a Prainha. Alemão ia se encontrar com Lola. Os tutores dela haviam se mudado definitivamente para São Chico. Assim, a turma toda ia junto. Vezenquando, Lola escapava pelo portão esquecido aberto. Passeavam por ali mesmo. Até que a tutora surgia desesperada atrás de Lola. Ralhava com ela. Alemão ia junto com Lola para a casa dela. No final da tarde todos voltavam para o bar do Nego.
À noite, depois de comerem a comida preparada por Alzira, ficavam de papo até a hora de dormir. Era uma rotina diária, só quebrada pela ida ao centro nas segundas-feira na traseira da caminhonete de Nego. Era o dia de se divertirem na praça da catedral de São Francisco do Sul, enquanto Nego cuidava de seus negócios no centro.
Vezenquando, Alemão preferia ir encontrar-se com Lola. Nas outras vezes, ia junto com a gangue para o centro. No dia seguinte, ao chegarem na Prainha, encontravam Lola de cara fechada. Ciumenta, não gostava de saber que Alemão tinha preferido a companhia dos demais na segunda-feira. Mas, logo se abria com as brincadeiras de Chumbinho que garantia:
_ Alemão só tem olhos para você Lola. Fica tranquila.
China, Dama e Vina confirmavam. Logo depois, se o portão estivesse aberto todos iam para a beira do mar. Caso contrário, Alemão latia para chamar a atenção dos tutores de Lola e logo um humano aparecia. Foi em um dos dias em que Alemão ficou com Lola que o caso aconteceu.
Assim que chegaram à Prainha, bem ao lado do posto dos humanos salva-vidas, Lorde Kennedy estancou e disse:
_ Mas, será o Benedito?
O velho China logo indagou:
_ O que aconteceu meu chapa?
Lorde Kennedy respondeu:
_ Estão vendo aquele cachorro marrom escuro lá perto da estátua do surfista?
Ao que Vina perguntou:
_ Aquele junto com dois rapazes?
_ Sim. Aquele mesmo, foi a resposta de Kennedy.
Dama e Chumbinho falaram quase ao mesmo tempo:
_ Ele está olhando para cá, disse Dama.
_ Você o conhece? Perguntou Chumbinho.
Lorde Kennedy respondeu afirmativamente. E então contou sobre como tinha ficado com aquela cicatriz no pescoço. Dama, muitas vezes, já perguntara o que tinha acontecido. Porém, ele dizia apenas:
_ Não gosto de falar disso. E ficava um pouco amuado.
Os companheiros da gangue ficaram surpresos ao saber que Benedito e Lorde Kennedy se estranharam e brigaram quando ele ainda morava em Curitiba com a mãe do jovem professor de inglês e o namorado da mãe do jovem professor de inglês.
Lorde Kennedy contou que se encontraram nas escadas. E que ele levou a pior. Benedito conseguiu agarrá-lo com a boca pelo pescoço. Era bem mais forte que Lorde Kennedy. Benedito morava um andar acima de Lorde Kennedy e descia pelas escadas com um dos rapazes. Ele e a mãe do jovem professor de inglês iam em direção ao elevador. Os dois se atracaram. Se não fosse pela rapidez da mãe do jovem professor de inglês, que o tirou da boca de Benedito, talvez Lorde Kennedy não estivesse ali naquele dia para contar a história. Tomou remédios durante duas semanas. O pescoço ficou bem inchado. Depois de um tempo restou a cicatriz que os pelos encobriam um pouco.  Chumbinho logo falou:
_ Vamos lá dar uma sova no Benedito.
Dama e Vina se assustaram. Mas o velho China, lembrou o que seu tutor sempre dizia:
_ Não faça aos outros o que não deseja que façam a você.
E logo emendou:
_ Ele dizia para os outros marinheiros que era uma frase de Confúcio, um sábio chinês que deixara muitos ensinamentos para os humanos.
Lorde Kennedy concordou:
_ Isso mesmo! É coisa do passado. A única marca que sobrou é esta cicatriz. Agora Dama não precisa mais me perguntar sobre ela.
Logo depois, Benedito e os dois rapazes entraram em um carro. Passaram por Lorde Kennedy e sua gangue dirigindo a caminho da Enseada. Benedito ficou à janela olhando para os cinco cachorros com um ar triste. Nunca tivera a chance de se desculpar com Lorde Kennedy. Seus tutores não o deixavam se aproximar. E, tempos depois, ficou sabendo que Lorde Kennedy não morava mais no prédio. Mais uma vez, não pode se aproximar de Lorde Kennedy e se desculpar. Os outros seguiram o carro e Benedito com o olhar. Nem imaginavam o que ia pela cabeça de Benedito.


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