domingo, 16 de fevereiro de 2020

Quase

No ônibus. Ela já embarcada. Ele embarcou na estação central. Nenhum lugar disponível. Se encostou em um canto. Na diagonal dela. À esquerda.
Os olhares se cruzaram. Assim que o coletivo se pôs em movimento. Ele desviou o olhar.
Ela continuou a fitá-lo. Minutos depois, ele olha de novo. Percebe que ela continua a olhá-lo. Com olhos azuis. Intensos. O da direita levemente manchado de cinza na parte inferior.
Mais uma vez, ele desvia o olhar. Sente uma queimação na nuca. É como se o olhar dela irradiasse calor. Intenso.
Ele não resiste. Olha de novo. Ela firme com o olhar em sua direção. Ele tenta encarar. Não consegue. Desvia de novo.
O ônibus se aproxima da próxima estação. Incomodado, ele decide desembarcar. Ela sai do ônibus logo depois dele. Sem jeito, ele vai para a saida da estação. Pretendia apenas esperar o próximo ônibus. Ela desce os degraus da estação. Passeio Público. Vai em direção ao portal. Passa por ele. Ele vai atrás. Enfeitiçado por aqueles olhos azuis. Intensos.
No Passeio, as novas fontes de água ainda estão ligadas. No final da tarde, elas estão envoltas por uma névoa fraca. As luzes amarelas se refletem na névoa e na água das fontes. Os dois seguem pelo passeio. Ela à frente.
Já passaram pelo canto dos jogadores de dominó e truco. Logo em seguida, pelo posto policial. Ela se dirige à saída. Olha para trás. Para. Ele para também. Os olhares se cruzam. Pela última vez.
Ela segue pela rua lateral do Passeio. Ele continua dentro do Passeio. Caminha às marges do pequeno lago.
As fontes de água param de jorrar. As luzes se apagam. Os dois continuam. Sós. Separados pela cerca do Passeio.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Vingança

Como foi que aquilo começou? Esta pergunta estava na mente de todos. A resposta só ela sabia. Não contaria a ninguém. Nem mesmo à outra.
Assim, eu não pude narrar nada. Também não sabia a resposta. Poderia fingir. Foi sua sugestão. Contar qualquer estória. Mas, e se ela ficasse sabendo de minha estória. Será que ficaria quieta? Me desmentiria?
Carreguei essa dúvida. Por anos. Ela manteve o silêncio. Eu também. Você, no começo, me cobrava. Às vezes, brutal até! A sua fala me doía. Você não inventa estórias? Era sua pergunta. Com aquele olhar cínico e sorriso velado.
Nao sabe como doía. Também não tem como saber. Afinal, quem já foi capaz de narrar a dor? Se alguém já foi, que me diga como! Eu ainda não sei como. Mas, esse caminho não interessa. Pelo menos nessa estória. Talvez em outra.
Estranhei quando você diminuiu a frequência da cobrança. Mas, quando eu menos esperava, você retomava a questão. Eu me calava. Não tinha o que lhe dizer. Teve momentos que quase inventei algo. Mas, o medo da reação dela me continha.
Hoje resolvi contar como tudo aquilo começou. Contei para todos. Na frente dela. A outra também estava lá. Só você não ouviu. Era seu velório.
Você, se pudesse ouvir, não acreditaria. Sabe o que ela disse? É isso mesmo. Pensei que só eu soubesse.
Se lhe serve de consolo, há outros que também não sabem como foi que aquilo começou. Mas, um dia eu me vingo de você e escrevo a narrativa. Aí, todos saberão. Menos você. Tinha que morrer tão cedo?