domingo, 31 de julho de 2016

NOVE VEZES NOVE

Quando se deu conta, havia chegado aos 81 anos. Os últimos vinte e um passaram rápido. Pareceram vinte e um meses. Para a estatística previdenciária ele já significava prejuízo a qualquer sistema. Sete anos além da média de vida esperada.
Desde os 36 acostumou-se a pensar sua vida em ciclos de nove anos. Naquela idade, refletindo sobre as passagens marcantes da vida, observou que a cada nove anos acontecia uma reviravolta. Aos 36 foi o desencanto com o primeiro amor.
Se conheceram quando estava com dezoito. Virgem ainda. Romântico, pensava que sexo sem amor não fazia sentido. Os amigos não se conformavam por ele nunca ter ido à zona. Mas, desde criança, foi muito dono da sua vontade. A primeira vez com ela foi desajeitado! Ela já tivera sua primeira vez. Foi compreensiva e paciente. A princípio não acreditou que nunca fizera sexo. Foi assim que, aos 18, perdeu a virgindade. Apaixonado. Aos 36, desacreditou do amor eterno. Só então entendeu Vinicius: que seja eterno enquanto dure. Ela achou outro amor. Ele foi atrás do tempo perdido na adolescência e juventude. Experimentou todas as formas do sexo.
Mas, me antecipo nessa história. Ela é melhor contada em ordem cronológica. Foi assim que ele contou. Voltemos aos nove anos.
O que pode marcar uma criança de forma tão indelével que sete décadas depois ainda esteja fresco na memória de um octagenário? Para ele foi a perda de um brinquedo. Aos nove, no dia de seu aniversário, ganhou de presente de um de seus tios, um aviãozinho que, movido a pilhas, girava as hélices e se movia. Ficou encantado com o brinquedo. Foi à rua brincar com os amigos. Era noite. Brincaram muito com todos os brinquedos. A última lembrança que tem do aviãozinho foi de tê-lo visto encostado na raiz de uma árvore na calçada. As hélices giravam ainda. Mas, o aviãozinho estancara na raiz. Não se movia. No dia seguinte, o avião não estava junto com os outros brinquedos. Não comentou com ninguém. Carregaria consigo esse primeiro desencanto. Esta seria uma marca da vida. Foi o batismo na solidão. Alguns acontecimentos nunca seriam compartilhados. Este foi o primeiro.
Aos dezoito, conheceu o luto de perto. Um amigo de infância mudou-se da cidade um ano antes. Voltou em um caixão lacrado. Ninguém estava autorizado a abri-lo. O amigo morrera em um acidente de avião. Ficara irreconhecível. Naquele dia lembrou-se da última vez que se viram. Encontraram-se em São Paulo. O amigo quis levá-lo a um puteiro. Poucos meses antes do acidente. Era um sábado. Recusou o convite. Ainda era o romântico virgem. A perda da virgindade, muito diferente da perda do amigo, ocorreria alguns meses depois. Engraçado como uma mesma palavra pode se referir a sentimentos tão distintos.
Aos vinte e sete, uma descoberta. Alguém lhe disse que era adotado. Sempre se achou diferente dos demais irmãos. Ficou curioso sobre seus reais antepassados. Descobriu que nascera na santa casa da cidade no mesmo dia em que sua mãe adotiva deu à luz um natimorto. Uma irmã de caridade ficou sabendo e convenceu uma jovem solteira que recém lhe parira a doá-lo. A jovem topou. Foi atrás da irmã na santa casa, mas esta já tinha morrido. Ninguém mais sabia da história. Aos vinte sete soube da mãe que nunca teve. Não disse nada para ninguém mais. O que adiantaria? Pensou e guardou a notícia para si. Ao lado do aviãozinho em algum canto da memória.
Aos 36, o fim do casamento. Não tiveram filhos. Ambos esteréis. Ela quis adotar uma criança. Mas, a ideia ocorreu na mesma época em que se descobriu adotado. Disse a ela que pensaria no assunto. Nunca mais disse nada. Ela também não. Sempre carregou a dúvida: será que ela sabia que fora adotado ainda recém-nascido? Nunca perguntou. Nem ela disse espontaneamente. Parece que foi a partir desse silêncio que começaram a se afastar. Ele passou a ser cada vez mais calado. Temia que ela tocasse no assunto. Até que aos 36, ela revelou: me apaixonei de novo. Outro cara. Ele quer adotar um filho. O que você nunca quis. Ele entendeu. Saiu de casa. Mudou de cidade. Conseguiu um emprego novo. Um forasteiro em uma cidade maior em que não conhecia ninguém. Foi recuperar o tempo perdido na adolescência, juventude e parte da idade madura. Parecia até um ex-seminarista. Bem devasso. Uma vez uma moça disse que tinha engravidado dele. Riu na cara dela. Outra vez, um garoto de programa lhe perguntou: sabe por que homens como você nos procuram? Não, ele respondeu. Saudade do que já foram. Foi a resposta. Dessa vez, não riu. Nunca mais teve um relacionamento amoroso. Passou a usar os serviços profissionais. Afinal, era só sexo que buscava. Não poderia ser compreendido por ninguém. Não compartilhava sentimentos.
Aos 45, continuava viril. Mas, o sexo lhe entediava. Tinha uma profissional fixa que encontrava uma vez por semana. Ela lhe chamava de querido e dizia gostar de seu perfume. Às vezes, queria que passasse a noite com ele. Dizia que não tinha marcado nenhum programa mais. Tinha reservado a noite para ele. Mas, ele não aceitava. Percebeu que ela estava se apaixonando. Se encontraram mais algumas vezes. Ele sempre recusava o convite para passar a noite. Depois ela sumiu. Passados dois meses, recebeu uma ligação de um policial. Ela tinha sido encontrada morta. Seu número de celular estava registrado no dela. Identificado por Querido perfumado. Eram muitos números. Deu as informações que o policial pediu. Uma semana depois viu nos jornais que ela se suicidara. Teria sido por sua causa? Mais uma pergunta que ninguém poderia responder.
Aos 54, já aposentado, decidiu gastar as economias dos últimos nove anos em uma viagem. Partiu para a Europa. Queria visitar todas as capitais. O dinheiro foi suficiente para 120 dias de viagens. Na volta encontrou o aviso de que os quatro primeiros meses da aposentadoria estavam disponíveis em uma agência de banco oficial. Ele tinha que comparecer pessoalmente para abrir uma conta ou informar uma já existente. Resolveu cortar todos os laços familiares, que quase já não existiam. Há muito tempo não procurava nenhum dos irmãos ou outros familiares. Mais uma vez, mudou de cidade. Foi morar no litoral. Seguiu o clichê do sonho de boa parte daqueles que pensam em se aposentar: morar na praia. Mas, era alérgico à areia. Fugia da beira do mar. Ficou assíduo da biblioteca. Nunca gostou muito de ler. Lia os jornais, mas um dia leu um livro de Herman Hesse - O lobo da estepe. Descobriu que era um livro que fizera sucesso quando era adolescente. Estava atrasado uns quarenta anos. Ficou impressionado com a história. Passou a acreditar que tudo seria diferente se tivesse lido aquele livro quando jovem. Entrou em depressão profunda. Procurou ajuda profissional.
Passou os próximos nove anos fazendo análise. Quando completou 63, descobriu-se apaixonado por sua analista. Era uma mulher madura, com pouco mais de 50 anos, para quem contara quase toda sua vida. Exceto, as partes sobre o aviãzinho, a adoção e a perda da virgindade aos 18. Inventou um monte de coisa. Afinal, em nove anos de terapia deu pra falar muita coisa. Não conseguiu se declarar para a analista. Ela era casada. No dia que tentou, gaguejou um pouco e acabou dizendo: é melhor a gente encerrar nossa terapia. Venho aqui já sabendo o que vou dizer e o que você vai comentar. Já deu. Vamos acertar as contas. Pagou e nunca mais voltou.
Aos 72 anos reencontrou um amigo que fizera aos dezoito. Os dois estudaram juntos no primeiro ano da faculdade. Depois, o amigo desistiu do curso. Nunca mais se viram. O amigo era um ano mais velho. Parecia um fantasma. Magro, pálido, com olheiras profundas. Se encontraram na sala de espera de um médico. Ele reconheceu o amigo, quando a assistente anunciou o nome dele para entrar para ser atendido. Esperou o amigo sair. Se apresentou. O amigo esperou ele sair da consulta. Foram a um bar à beira-mar. Ficaram horas conversando e bebendo. Trocaram telefones. No dia seguinte, recebeu uma ligação. Era uma voz feminina. A mulher do amigo informando que este falecera de madrugada. Chegara em casa, contara do reencontro e deitara. Por volta das cinco, ela ouviu um ronco estranho, virou-se para o lado do marido, e ele estava morto. Ela achou o número do telefone e resolveu lhe ligar.
A morte do amigo mexeu com ele. Passou a fazer exames periódicos de seis em seis meses. Tinha uma saúde invejável. Dera sorte nos anos de orgia. Nunca se protegeu. Nunca ficou doente. Aos 81, acabara de voltar de mais uma consulta com o geriatra. A bateria de exames não revelou nada. Tudo em ordem. Mas, algo não ia bem. Ele chegava ao nono ciclo de nove anos com algo lhe incomodando. Sonhara que não conseguiria completar outro ciclo. Tinha que decidir se pagava pra ver. Isto é, deixaria a vida correr ou seria, mais uma vez, dono de seu destino. Para ajudar na decisão, pegou uma caneta e um caderno. Escreveu o título antes de tudo: nove vezes nove (memórias de um lobo solitário). E começou: no dia que completo 81 anos, faço este relato de coisas que jamais compartilhei...
Encontrei o caderno junto ao seu corpo três dias depois. Os vizinhos estranharam o mal cheiro que exalava do seu apartamento. Abri e li o título e as primeiras linhas. Guardei o caderno comigo sem que ninguém percebesse. Só eu sei a história toda.
Sempre quis ser escritor, mas não levo jeito pra coisa. O destino colocou uma história inédita em minha mão. Foi meu primeiro livro. Um sucesso.
Será que vou me inspirar e escrever outro? Escrever é tão complicado. Por isso, fico seguindo velhinhos solitários que vejo por aí. Quem sabe encontro outra história...

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Caleidoscópio: uma boa imagem para a educação?

Nos últimos anos, tenho refletido muito sobre minha ação enquanto educador. Reflexo de muitas coisas, pensar sobre meu agir faz parte de uma inquietação constante, de um desassosego permanente, de uma dúvida persistente, de um questionamento inadiável...
Facetas de minha vida que se configuram em um vir a ser que nunca se finda, mas que assim mesmo, a cada momento compõem uma vontade de ser, ao mesmo tempo, aprendiz e mestre. De dificil síntese, essas facetas se resumem, talvez, à busca do significado que desejo seja mais verdadeiro para mim e, também, mais eficaz para aqueles que temporariamente, seja de forma breve ou mais alongada no tempo, se juntam a mim nessa jornada, os estudantes.
Esse significado se prende, portanto, à ideia de uma experiência de educação que seja um momento transformador da potência de ação não só dos estudantes. Nela devo encontrar instâncias que me aproximem de um sentimento que, nunca completo, é essencial nesse vir a ser que é a vida. O sentimento de autorealização que surge do agir em que fica evidente uma mudança positiva na forma de encarar o mundo, nosso papel e a possibilidade de nele atuar.
Meu agir enquanto educador, assim acredito, tem por princípio uma visão positiva do outro que se junta a mim. Costumo usar uma metáfora cinematográfica que expõe de forma simbólica este princípio: cada e todo estudante é o protagonista de seu enredo de aprendizagem. Eu sou apenas um figurante. Uso essa metáfora reproduzindo algo que aprendi em meus estudos de cinema. O protagonista de um filme, em geral, é aquele que passa pela maior transformação durante o decorrer da fábula fílmica. Assim, cada e todo estudante tem que ser o protagonista de sua história. A mim cabe o papel secundário de figurante, com maior ou menor presença, em cada e todo enredo.
Hoje me veio à mente outra imagem que se ajusta à minha crença na educação como um processo mais emergente que deliberado, no qual o conhecimento assume configurações distintas para os envolvidos em uma experiência de aprendizagem. Me refiro ao caleidoscópio, imagem que já utilizei para me referir ao estudo das configurações organizacionais, perspectiva de análise que adoto em meus estudos.
Essa ideia, para mim, faz sentido. O processo de aprendizagem em que se respeite o estudante como protagonista é um constante olhar pelo caleidoscópio. As experiências de aprendizagem, nos diversos espaços que ocorrem, são como olhar pelo caleidoscópio e enxergar o arranjo que os conceitos multicoloridos configuram conforme cada e todo estudante reflete e pensa sobre o que viu.
Mas, ao contrário do caleidoscópio material, em que não temos controle dos fragmentos multicoloridos que o compõem, no caleidoscópio educacional é o protagonista que escolhe os fragmentos que comporão suas imagens. A mim enquanto figurante resta o papel de auxiliar na busca dos vidrilhos coloridos e na construção de cada e todo caleidoscópio.
Que cada e todo estudante seja o artesão de seu caleidoscópio e que eles sejam sempre diversos e multicoloridos!

Aforismos sobre a dúvida

Tem tanta falsidade no mundo que, às vezes, até disso duvida.
Foi tão sincero que nem ele mesmo acreditou.
O sorriso era tão artificial quanto as próteses que usava na boca.
Jurava lealdade até debaixo d'água, mas não resistiu quando lhe molharam as mãos.
Preferia ser surdo a ter que ouvir certas promessas.
O que é melhor: uma dúvida certa ou duas incertas?

Desamor Tecnológico

Abraçados, em pé, pareciam apaixonados. Muito jovens, seguiam no mesmo ônibus que eu. Irradiavam uma felicidade incomum. Com um dos braços envolto na cintura dela, ele buscou o celular no bolso direito da calça com a mão esquerda. Com certo esforço e alguma contorsão muscular foi bem sucedido.
Ela quis saber quem era. Mensagem de um amigo respondeu ele. Um pouco corado no rosto, embora quase imperceptível na sua pele mulata. 
Ela percebeu. Talvez tenha sentido o súbito e tênue aumento de temperatura que causara o leve rubor.
Quis ver. Ele relutou, fuçou um pouco mais no celular. Ela esbravejou. Ele cedeu.
Enquanto ela fazia a busca no celular, ele pediu o dela. Se julgou com o mesmo direito.
Lembrei-me de uma amiga que certa vez me disse: quem procura acha.
Ao passar-lhe o celular, ela também enrubesceu. O batom exageradamente vermelho, cor de pitanga madura, não foi suficiente para atenuar a mudança de cor nas bochechas brancas da moça loira.
Formavam um belo casal. Aos poucos o humor foi se transformando em um mal estar. Quase ao mesmo tempo, os dois falaram: é só um(a) amigo(a).
A felicidade se evaporou rapidamente. O braço dele escorregou bruscamente da cintura dela. Viraram o rosto. Quando o sinal "fechando portas" soou, ele saltou fora do ônibus. Ela não conseguiu segui-lo.
Uma lágrima em cada rosto, dela e dele, me encheram de tristeza. Eram um belo casal. De felicidade incomum e efêmera. O ônibus seguiu seu trajeto comum. Indiferente ao desamor que nele brotara.

Vida Surreal

Aos 17 anos, gabava-se com o amigo:
_ Não consigo pegar mina da minha idade. Parecem crianças. Quando eu tinha 12, namorei uma de 17.
_ Ela deve ter te traído. Tenho certeza, comentou o amigo.
Os dois da mesma idade voltavam para casa ou iam para a escola. Impossível dizer com certeza, mas os uniformes escolares sugeriam as alternativas.
Na conversa dos dois, dilemas do homem que parecem independer da idade: amor e sexo, fidelidade e traição.
Muitos homens mais velhos dizem ou desejam fazer o contrário. fogem das mulheres de sua idade. Mas, como já virou piada:
"Correm o tempo todo atrás da Chapeuzinho Vermelho e acabam, por fim, comendo a vovozinha".
As gerações mais novas que a minha parece que tinham resolvido estes dilemas. Vinte anos atrás ouvi uma jovem colega de profissão me explicar o significado de ficar. Eu perto dos 40, ela se avizinhando dos 30. Achei a novidade um pouco estranha, mas promissora. Pensei comigo mesmo, sem externar a ela nada mais que um simples:
_ Interessante!
Não ficamos. Nenhuma atração de ambas as partes. Assim me pareceu, Ou, como conta a fábula da raposa: as uvas estavam verdes.
No entanto, essa ideia de ficar e pegar me impressionou pela possibilidade de resolver os velhos conflitos amorosos de minha geração. Se bem que, os mais cínicos, sempre falaram:
_ Lavou tá novo!
Algum tempo depois, lidando com filhas, sobrinhas e suas amigas no começo da adolescência, lembro de uma delas chorando, aos prantos:
_ O que houve?
- Fulano traiu ela. Uma delas me respondeu.
_ Não sabia que tinha namorado.
_ Não. Eles estavam só ficando. Ele ficou com outra.
Fiz um discurso sobre o significado do ficar e a banalização do amor. Ao fim disse:
_ Se você acredita em ficar, não tem sentido acreditar em traição.
Não resolveu a dor da traição, mas ela parou de chorar.
A conversa dos dois adolescentes me transportou no tempo. Eles são de uma geração ainda mais nova. Parece que ficam e pegam adoidado (uma gíria de minha geração).
Mas ainda falam em traição. Tão surreal quanto "Um cão andaluz" de Buñuel e Dali. Ou até mesmo, conforme disse Viviane Forrester em seu livro "Horror Econômico", referindo-se à expressão "Empresa Cidadã". Nem o mais surreal dos artistas conseguiria criar algo assim.
Interessante!