segunda-feira, 28 de março de 2022

Crônicas na Holanda 24 - De volta ao mundo do cinema

Depois de pouco mais de dois anos, voltei a uma sala de cinema. Desde 13 de março de 2020, uma sexta-feira, passei a seguir as regras de isolamento e distanciamento social que a pandemia de Covid nos obrigou. Primeiro no Brasil e nos últimos cinco meses e meio na Holanda, com maior ou menor rigor, evitei como pude as atividades em espaços fechados e aglomerações. Mesmo com todas as vacinas, enquanto houve restrições, eu as segui. Desde o dia 23, não há mais nenhuma restrição em vigor nos Países Baixos.
Enfim, no último sábado, 26 de março fomos ao Springhaver Theater em Utrecht. Um espaço cultural com duas pequenas salas cinematográficas junto a um restaurante. O filme foi Madres Paralelas de Almodóvar. Seis ou sete pessoas na sala 1 que acomoda tranquilamente uma centena de pessoas. O baixo público, talvez, fosse devido ao horário da sessão: 11:45 da manhã.
Assistir ao brilhante filme de Almodóvar em uma sala tão pequena me causou um triplo prazer. Quase um orgasmo multiplo. Primeiro, o retorno ao "escurinho do cinema" depois de tanto tempo. É claro que nesses dois anos, continuei assistindo filmes. Sempre em algum dos vários canais de streaming que estão por aí no mundo virtual. Mas, não é possível comparar as duas experiências. Filme é uma invenção humana que foi feita para exibição em salas de cinema. Nesse ponto sou ortodoxamente conservador.
O segundo prazer foi sentido com a fruição do filme em si. Almodóvar sendo Almodóvar como sempre. E a cada filme cada vez melhor. Uma história contemporânea conectada com uma trágica parte da história espanhola do século passado. Uma história narrada quase que linearmente, com atuações perfeitas, e as imagens e cores me carregaram para o mundo das emoções. O cinema faz isso comigo. Me permite ser um voyeur de um mundo fictício e sentir emoções nada fictícias. De cada filme assistido, saio transformado. A combinação de sons, cores e imagens em movimento de um filme, quando bem feita, mexe comigo.
E o terceiro prazer veio da memória. Ao me ver na pequena sala do Springhaver Theater, lembrei-me das várias pequenas salas cinematográficas espalhadas pelo mundo em que assisti filmes. Já tive o privilégio de estar em algumas partes desse mundo: São Paulo, Curitiba, Manchester, Lancaster, Londres, Montevideu, Rio de Janeiro, Austin, e agora Utrecht. Em cada cidade, ao menos uma vez, um filme em uma sala cinematográfica pequena. Essa paixão pelo cinema começou em Londrina na minha adolescência.
Além das salas em cada cidade, lembrei-me de um sonho antigo: ser o dono de uma sala dessas. Comentei com minha companheira que foi ao cinema comigo nesse dia. Assim, como em muitas outras oportunidades. Na verdade, nossa relação começou com um reencontro em que a convidei para um filme. O filme não foi grande coisa! Mas, esse é o risco que corre alguém que se relaciona com um cinéfilo. Nem sempre o filme é o que promete ser. Porém, imagino que, na média, os filmes que assistimos juntos foram bons. E, afinal, aquele filme ruim marcou o começo de uma história muito boa que já se apróxima dos quatro anos.
Volto ao meu sonho. Em meados dos anos 90, após meu retorno a Londrina, tendo terminado meu doutorado em Manchester, pensei no plano de ser dono de uma sala de cinema. Naqueles anos, no curso de Administração da UEL, uma opção de trabalho final do curso era fazer um plano de negócio de uma nova empresa. Eu fui procurado por um aluno que ficara entusiasmado com essa possibilidade, que me disse:
_ Fernando eu quero fazer esse trabalho, mas não tenho ideia de qual negócio planejar.
Minha resposta foi:
_ Legal. Eu tenho uma ideia de negócio que gostaria de avaliar. Se você topar, a gente junta o útil ao agradável.
Encurtando a história, ele topou e fez um excelente trabalho de planejamento de um pequeno centro cultural com uma sala de cinema. Porém, minha carreira acadêmica me levou por outros caminhos. E, quase 30 anos depois, essa lembrança quase que nostálgica me veio à mente.
Ao comentar com minha companheira sobre meu desejo, enquanto aguardávamos o início do filme, ela respondeu, bem ao jeito dela:
_ Estou junto. Vamos nessa.
Quem sabe, daqui a algum tempo, vocês estarão vendo um bom filme em uma pequena e confortável sala de cinema em algum canto de uma cidade praiana. Planos para aposentadoria?

domingo, 20 de março de 2022

Crônicas na Holanda 23 - Sobre a felicidade

Aos poucos a vida parece retornar à normalidade. A partir da próxima semana, todas as últimas restrições referentes à pandemia serão postas de lado. Em especial, máscaras já não serão mais obrigatórias nos transportes públicos. E o trabalho remoto em metade do horário deixará de ser recomendado, passando a ser uma questão a ser definida entre empregados e empregadores.
Um efeito colateral positivo dessa pandemia é que aprendemos sobre os benefícios da flexibilidade nos horários de trabalho presencial. Nem sempre precisamos estar na empresa para sermos produtivos. Exceto, é claro, nas profissões em que o fruto do trabalho depende do acesso a equipamentos e materiais que só estão disponíveis no ambiente de trabalho.
De qualquer forma, precisamos do convívio periódico com nossos colegas de trabalho. Dar um bom dia, perguntar como vão as coisas, contar algo recente, ouvir histórias e, ao fim da manhã, da tarde ou do dia, dizer um até amanhã. Senti falta dessas interações corriqueiras da vida no trabalho. Dessa forma, nas últimas semanas passei a frequentar mais minha sala de estudos no Adam Smith Hall.
Na última sexta-feira, pela manhã, fiquei por quatro horas lá. Lendo, refletindo, escrevendo. É esse meu trabalho! Sou um privilegiado por ser pago para fazer o que gosto. Tem, também, as atividades de aprendizagem com alunas e alunos. Porém, aqui em Utrecht, não estou envolvido com elas. A partir de maio, retornando à UFPR, voltarei a estas atividades. Sinto falta!
Mas, enveredei por um tema que não pretendia tratar nesta crônica. Volto ao planejado. Pois então, contava sobre a última manhã de sexta-feira. Por volta do meio-dia, desliguei o computador, peguei minhas coisas, vesti a jaqueta e tranquei a sala. Após descer os quatro lances de escada, na porta da saída, encontrei um professor que ainda não conhecia. Me cumprimentou e perguntou algo em holandês. Pedi desculpas por não falar a língua dele e passamos a conversar em inglês. Ele se apresentou como Lucas, mas disse que o nome em holandês é Loek.
Ele disse que havia me visto um pouco antes e perguntou sobre mim e o que fazia por ali. Após contar-lhe sobre meu pós-doutorado e ser brasileiro, me deu as boas vindas e falou de um brasileiro que admira muito: Eduardo Suplicy. Perguntou se eu o conhecia e disse saber do papel importante que Suplicy exerceu e continua exercendo no que diz respeito à garantia de um renda mínima  a todo cidadão.
Enquanto caminhávamos na mesma direção, trocamos impressões sobre o tema e a importância da questão. Foi uma conversa rápida, mas muito agradável. Eu me dirigia ao Dining Hall, onde ficam as caixas postais. Ia verificar se havia alguma correspondência para mim. Aguardo a chegada de um livro que comprei dias atrás pela Internet. Ao chegarmos ao meu destino, nos atélogamos (revisor não corrija, por favor, é um jeito que criei para substituir "nos despedimos"). Como era uma manhã de sexta-feira, o "até logo" foi acompanhado de um "bom final de semana". Um encontro fortuito com um cara simpático. Se ficasse no trabalho remoto, não teria conhecido Loek/Lucas.
Mas, o que isso tudo tem a ver com felicidade? Afinal, o título da crônica é "sobre felicidade"! Então, quando cheguei em casa, sem o livro pois o correio ainda não entregou, fui ver notícias sobre os Países Baixos em um site que acompanho diariamente. A primeira manchete me chamou a atenção: Netherlands again ranks fifth in UN world happiness report (Países Baixo novamente em quinto lugar no Relatório Mundial sobre Felicidade das Nações Unidas).
Curioso, busquei o relatório para ter mais informações. Descobri que Finlândia, Dinamarca, Islândia e Suíça precedem os Países Baixos no ranking. E mais, o Brasil esta em 38o. lugar entre 146 países. O indicador de felicidade é baseado em respostas que uma amostra das pessoas de cada país dá para questões sobre sentimentos a respeito de sua vida e a experiência de emoções positivas e negativas.
É claro que a felicidade humana é muito complexa e um indicador deste tipo tem muitas limitações. Apesar disso, no entanto, a partir de alguns indicadores como esse e outros, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) podemos fazer comparações e pensar em como reduzir as desigualdades em nosso planeta.
É nisto que vejo a ligação entre meu encontro fortuito com Loek/Lucas e a notícia sobre o Índice mundial de felicidade da ONU. Uma das formas de diminuir a desigualdade entre nós humanos reside na garantia de uma renda básica a cada habitante de nosso planeta. E assim, nesta crônica na Holanda, rendo aqui minhas homenagens a Eduardo Suplicy, incansável defensor desta política no Brasil. Afinal, dinheiro não traz felicidade, mas ajuda, não é?

domingo, 13 de março de 2022

Crônicas na Holanda 22: Entre sons, letras e artes

Entre sábado e domingo, os caminhos holandeses me levaram a uma viagem pelo mundo das letras, da música e das artes plásticas.
Na vida, carrego uma frustração. Nada que me atormente profundamente, mas que gostaria de ter feito. Não há a quem culpar. Nem a quem reclamar. É simplesmente algo que não aconteceu. E que, provavelmente, poucas chances terá de ocorrer na vida futura que ainda me está destinada.
Nunca desenvolvi as artes musicais e plásticas. Não toco nenhum instrumento, não sei manusear martelo e cinzel, tampouco pincel, e não ouso cantar. Mas, admiro os que são capazes de se comunicar com a humanidade nestas artes.
Já no que diz respeito às letras, primeiro por dever de ofício e, mais tarde, por uma irresistível necessidade de me expressar, me vejo escritor. Dos textos acadêmicos, enveredei para a escrita poética e de breves narrativas, na forma de contos e crônicas. Como está que você lê agora.
Esta necessidade ficou latente em minha vida durante muitos anos. Na verdade, por décadas. Me lembro de um episódio de escrita na adolescência. Certa manhã, a professora de português solicitou uma tarefa de redação com o tema "um encontro". Naquele longínquo dia, me inspirei pelos múltiplos sentidos da palavra "encontro". Ao invés de criar uma história de um encontro premeditado ou combinado entre pessoas, narrei sobre um encontro acidental entre dois personagens que, ao virarem em uma esquina de um prédio, trombaram e se encontraram face a face. Espantados, caíram ao chão. É o que lembro da redação. É a memória mais distante que tenho de uma escrita criativa própria.
Volto, porém, aos dias atuais na Holanda. No sábado à tarde, como acontece sempre, houve a apresentação de um concerto com coral e órgão da Domkerk, principal igreja protestante de Utrecht. Além do maravilhoso som do órgão da igreja, pude desfrutar da música do coral. 
É impressionante como a voz bem treinada se transforma em um instrumento musical. As mulheres e homens do coral me emocionaram. Mesmo não entendendo as palavras que cantavam, eu tinha a impressão de ouvir um conjunto de instrumentos musicais distintos com seus tons diversos. Uma melodia que me deixou, ateu convicto, com a alma mais leve.
Hoje, domingo, visitando o Museu Vanabb em Eindhoven conheci a obra de Gülsün Karamustafa. Artista visual e cineasta nascida na Turquia que usa sua arte como uma forma de luta política nos sensibilizando para as desigualdades, inclusive as de gênero, tão presentes em nossa sociedade.
 Na fotografia que ilustra esta crônica, reproduzo a fotografia que fiz de duas obras suas que estão em exposição no museu.
Para terminar esta crônica, volto ao início da tarde de sábado. Em Utrecht, há uma ação poética de um grupo de mulheres e homens que se chama "De Letters van Utrecht", "As Letras de Utrecht". É um poema coletivo que cresce uma letra por semana por meio do registro de uma letra em pedra colocada em uma rua de Utrecht: a Oudegracht, na esquina da Smeebrug no número 279. O poema cresce na direção do Ledig Erf. 
Começou em 2 de junho de 2012 , com a colocação da pedra de número 649, junto com as 648 anteriores, que haviam sido colocadas alguns dias antes, registrando o período referente aos sábados de 1 de janeiro de 2000 a 26 de maio de 2012. Quase 22 anos de poesia continua! 
É um poema sem fim escrito para o futuro. As letras podem ser patrocinadas por qualquer pessoa que contribua com um valor em dinheiro. Neste sábado, às 13 horas, lá estava eu acompanhando a colocação de mais uma pedra. Uma doação de duas irmãs que homenageavam outra irmã falecida há cinco anos e que agora tem seu nome registrado sob a pedra com a letra "A". 
Se você buscar na Internet, encontrará o site com informações do projeto que já alcançou pouco mais de 100 metros. Fico imaginando quando o projeto estiver com um século de vida! Onde terá chegado nas ruas de Utrecht?
Antes disso, ainda planejo retornar à cidade para caminhar de novo pelas letras de Utrecht. A cada ano são 52 novas letras. Espero que meu retorno a esta cidade inspiradora não demore muito.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Crônicas na Holanda 21 - Uma magpie, três gravetos e quatro pedrinhas holandesas

E não é que hoje uma magpie (pega-rabuda) surgiu para entrar na crônica na Holanda! É a terceira vez que este tipo de ave é personagem nas minhas crônicas. Logo na primeira, houve um par delas. Na crônica de número 9, algumas fizeram uma rápida figuração, junto ao gato, o protagonista, um bando de corvos e um par de gaivotas. Na crônica de hoje, porém, esta magpie é a protagonista em uma atuação solo da qual eu fui o espectador silencioso atrás da janela de meu quarto.

O sol deste final de inverno brilhava por volta das dez horas. Enquanto vestia meu moletom para fazer uma caminhada e depois passar na Olifje (uma pequena mercearia na vizinhança), eu a vi no solo. Aos pequenos saltos, tentava manter em seu bico, três gravetos. Caídos de uma das árvores que, ainda totalmente desfolhada devido ao inverno, não impedia que os raios do sol aquecessem o quarto. Fiquei observando a magpie e sua labuta. Teimosa, por várias vezes, ao tentar pegar um terceiro graveto, um dos outros dois já em seu bico lhe escapava. Mas, era uma magpie obstinada. Após várias tentativas, o sucesso: três gravetos no bico! E, assim, carregada, partiu em seu voo, encerrando sua performance no solo. 

Provavelmente, deve ter se dirigido para uma árvore onde está construindo um ninho. Mais um anúncio da primavera que se aproxima. Em breve, filhotes de magpie estarão se aventurando nos ares de Utrecht.   A primavera vai dando seus sinais de chegada. Foi assim com as flores rasteiras que agora estão em todos os gramados da cidade. Tudo começou com as pequenas e brancas "flocos de neve" algumas semanas atrás. Nos últimos dias, brotaram outras nas mais variadas cores. Mas, as árvores continuam desfolhadas. Exceto aquelas sempre verdes que se mantiveram ao longo do inverno.

Com a aproximação da primavera, os dias se alongam e as noites se encurtam. Dias de sol, mas a temperatura ainda segue baixa. Neste momento da escrita de hoje, meio da tarde de uma quarta-feira, chegamos aos 14 graus centígrados. No começo da manhã, estava em torno de quatro. O que deverá se repetir à noite.

Nesse interminável ciclo da natureza, vou vivendo o meu ciclo também. Em pouco mais de seis semanas, concluirei minhas atividades de pós-doutorado. Uma carreira que começou, no começo dos anos 80 com o mestrado, passou pelo doutorado em meados dos anos 90 e chega a seu ápice no começo dos anos 20 do século 21: um pós-doutorado. Que, veja bem, não é título! Não existe pós-doutor! Mas, é um momento importante em meus 40 anos de carreira acadêmica. Na verdade, um pouco mais. Mas, a precisão pouco importa aqui.

Começo a planejar o retorno. A cada dia trabalho em meu relatório. Conto sobre o que fiz e sobre o que aprendi. Além do relatório, e do que estudei, levarei na memória as lembranças dos lugares e pessoas que por aqui encontrei. Certamente haverá alguns itens materiais adquiridos na Holanda, ou em vias de o serem, em minha bagagem. As famosas lembrancinhas para aqueles de quem sinto saudades: filhas, amigas e amigos, parentes e aderentes. Mas, haverá também as que serão para mim mesmo.

Outro dia, comecei a escolha do que levar. Levarei comigo, além de poucos itens tradicionais, até mesmo destinados aos turistas que por aqui passam, quatro pedrinhas que peguei no pátio central do campus. Me lembraram de outras que peguei em uma viagem ao nordeste brasileiro anos atrás. Elas brilhavam ao sol. Tantos as brasileiras quanto as holandesas. Apesar de não ser um brilho próprio, pois afastadas do sol o perdem, elas serão lembranças valiosas. As holandesas têm cor e tamanhos distintos. São pequenas, mas sempre que as observar no futuro, me servirão como uma metáfora da vida na academia.  A metáfora do brilho que não vem de mim. Se algo fiz e ainda faço na academia com algum eventual brilho, sempre é bom lembrar, o brilho vem daqueles que me iluminaram. No convívio pessoal ou por meio dos textos que pude ler. Assim, como o sol fez as pedrinhas holandesas que irão em minha bagagem refletir a luz do sol, apenas refleti a luz que me passaram.

Agora que já tenho as pedrinhas, parto para as outras lembranças. Não serão muitas, mas pode ser que alguma chega até você. Quem sabe?