quarta-feira, 9 de março de 2022

Crônicas na Holanda 21 - Uma magpie, três gravetos e quatro pedrinhas holandesas

E não é que hoje uma magpie (pega-rabuda) surgiu para entrar na crônica na Holanda! É a terceira vez que este tipo de ave é personagem nas minhas crônicas. Logo na primeira, houve um par delas. Na crônica de número 9, algumas fizeram uma rápida figuração, junto ao gato, o protagonista, um bando de corvos e um par de gaivotas. Na crônica de hoje, porém, esta magpie é a protagonista em uma atuação solo da qual eu fui o espectador silencioso atrás da janela de meu quarto.

O sol deste final de inverno brilhava por volta das dez horas. Enquanto vestia meu moletom para fazer uma caminhada e depois passar na Olifje (uma pequena mercearia na vizinhança), eu a vi no solo. Aos pequenos saltos, tentava manter em seu bico, três gravetos. Caídos de uma das árvores que, ainda totalmente desfolhada devido ao inverno, não impedia que os raios do sol aquecessem o quarto. Fiquei observando a magpie e sua labuta. Teimosa, por várias vezes, ao tentar pegar um terceiro graveto, um dos outros dois já em seu bico lhe escapava. Mas, era uma magpie obstinada. Após várias tentativas, o sucesso: três gravetos no bico! E, assim, carregada, partiu em seu voo, encerrando sua performance no solo. 

Provavelmente, deve ter se dirigido para uma árvore onde está construindo um ninho. Mais um anúncio da primavera que se aproxima. Em breve, filhotes de magpie estarão se aventurando nos ares de Utrecht.   A primavera vai dando seus sinais de chegada. Foi assim com as flores rasteiras que agora estão em todos os gramados da cidade. Tudo começou com as pequenas e brancas "flocos de neve" algumas semanas atrás. Nos últimos dias, brotaram outras nas mais variadas cores. Mas, as árvores continuam desfolhadas. Exceto aquelas sempre verdes que se mantiveram ao longo do inverno.

Com a aproximação da primavera, os dias se alongam e as noites se encurtam. Dias de sol, mas a temperatura ainda segue baixa. Neste momento da escrita de hoje, meio da tarde de uma quarta-feira, chegamos aos 14 graus centígrados. No começo da manhã, estava em torno de quatro. O que deverá se repetir à noite.

Nesse interminável ciclo da natureza, vou vivendo o meu ciclo também. Em pouco mais de seis semanas, concluirei minhas atividades de pós-doutorado. Uma carreira que começou, no começo dos anos 80 com o mestrado, passou pelo doutorado em meados dos anos 90 e chega a seu ápice no começo dos anos 20 do século 21: um pós-doutorado. Que, veja bem, não é título! Não existe pós-doutor! Mas, é um momento importante em meus 40 anos de carreira acadêmica. Na verdade, um pouco mais. Mas, a precisão pouco importa aqui.

Começo a planejar o retorno. A cada dia trabalho em meu relatório. Conto sobre o que fiz e sobre o que aprendi. Além do relatório, e do que estudei, levarei na memória as lembranças dos lugares e pessoas que por aqui encontrei. Certamente haverá alguns itens materiais adquiridos na Holanda, ou em vias de o serem, em minha bagagem. As famosas lembrancinhas para aqueles de quem sinto saudades: filhas, amigas e amigos, parentes e aderentes. Mas, haverá também as que serão para mim mesmo.

Outro dia, comecei a escolha do que levar. Levarei comigo, além de poucos itens tradicionais, até mesmo destinados aos turistas que por aqui passam, quatro pedrinhas que peguei no pátio central do campus. Me lembraram de outras que peguei em uma viagem ao nordeste brasileiro anos atrás. Elas brilhavam ao sol. Tantos as brasileiras quanto as holandesas. Apesar de não ser um brilho próprio, pois afastadas do sol o perdem, elas serão lembranças valiosas. As holandesas têm cor e tamanhos distintos. São pequenas, mas sempre que as observar no futuro, me servirão como uma metáfora da vida na academia.  A metáfora do brilho que não vem de mim. Se algo fiz e ainda faço na academia com algum eventual brilho, sempre é bom lembrar, o brilho vem daqueles que me iluminaram. No convívio pessoal ou por meio dos textos que pude ler. Assim, como o sol fez as pedrinhas holandesas que irão em minha bagagem refletir a luz do sol, apenas refleti a luz que me passaram.

Agora que já tenho as pedrinhas, parto para as outras lembranças. Não serão muitas, mas pode ser que alguma chega até você. Quem sabe?

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