segunda-feira, 23 de abril de 2018

Diário de bordo

 Não queria muita conversa. Já haviam decorridos mais de oitenta quilômetros de viagem. O ônibus estava quase lotado. Na parte superior apenas duas poltronas desocupadas. Na inferior não pude saber. Era o espaço das cabine-camas. O dos que podiam pagar o dobro da passagem. Uma das únicas situações em que os pobres ficam por cima.
Tentei puxar assunto perguntando se morava no nosso destino. Não, foi a resposta. Vinha de cidade próxima ao ponto de partida. Ia a trabalho para o destino. Quis perguntar qual, mas me senti intrusivo. Essa minha maldita educação inglesa!
Pode ser que o silêncio tivesse sido causado por mim. Antes do embarque, eu lia um livro. Fui o primeiro a embarcar. Continuei lendo. Ela chegou depois. Sua poltrona era ao lado da minha. Junto à janela. Fui me levantar, mas ela disse que ainda não. Ia buscar uma coberta para mais tarde. Disse que o ar condicionado lhe causava frio. Minutos depois voltou com a coberta na mão. Se acomodou ao meu lado.
Eu continuei a leitura. Na tv interna começou um desenho animado. Mais uma sequencia da Era do Gelo. Mais uma possibilidade de ar frio?
Assisti um pouco. A transmissão ficou instável. Cheia de interrupções. Peguei o livro e concluí a leitura. Só faltava o epílogo. Há muito tempo não via um livro cuja parte final se chamasse epílogo.
Mas, e o epílogo dessa história qual será? Ainda tem mais quatro horas de viagem! Você deve estar curioso, não é? Aguenta firme. Vou lhe dar algumas possibilidades:
1. O motorista reiniciou o mesmo filme após o seu término. Descobri que era A era do gelo: big bang. Assisti o filme todo e dormi o resto da viagem. Um pouco ao estilo novela das seis.
2. A temperatura interna caiu muito. Ela ofereceu um lado da coberta. Reclinamos as cadeiras. E, tudo começou com as mãos dadas. No destino, nos despedimos sem ao menos perguntar nomes. Uma homenagem ao Último Tango em Paris.
3. Ela continuou calada. Passou o tempo todo tentando acessar o wifi do ônibus. Sem sucesso, depois da parada conversamos até o destino. Nada especial.
4. Nenhuma das anteriores. Resolvi escrever este texto. Enquanto escrevo fico imaginando qual o trabalho dela que justifique essa viagem.
Pensei que podia ser uma dançarina das boates do centro de Curitiba. Voltando de uma visita aos pais que moram no interior. Eles pensam que ela é comerciária.  Um pouco ao estilo daltoniano.
Outra opção é ser cuidadora de idosos. Trabalha em uma instituição sem fins lucrativos. Como o salário é baixo, faz uns bicos como massagista para aumentar a renda. Especializada em falsa massagem tântrica. Um pouco ao estilo rodriguiano.
A terceira opção é ser profissional da estética. Depiladora. Aos fins de semana vai pra sua cidade natal, atender amigas e familiares. Na capital tem um namorado que não trabalha. Ela o sustenta. Tem vontade de largá-lo. Não consegue. Vive à beira de um ataque de nervos. Um pouco ao estilo almodovariano.
Ela, de repente, me perguntou se eu tinha conseguido acessar a intermet. Disse que não. Gosto de escrever, falei pra ela. Escrevo uma estória.
_ Posso ler?
Ela me perguntou. E completou:
_ Sou professora do ensino médio. Português. Estou indo para um treinamento de como ensinar redação.
E agora? O que respondo?
Me fudi! Um pouco no estilo woodialleniano.

sábado, 21 de abril de 2018

A Reconstrução

Reconstruir depende do que sobrou. Depende também do que queremos resgatar do que já foi. Pode parecer uma reforma. Mas, ao contrária desta, a reconstrução é, inicialmente, não voluntária. Se impõe. A reforma não se impõe. É escolha.
Depois de iniciada, contudo, se abre para nossas escolhas. Fica com um certo ar de voluntária. Mas, na raiz, na origem, sabemos que não é.
A reconstrução menos difícil é a da terra arrasada. Quando não sobra nada, não há o que preservar. Tudo pode ser reimaginado. Tudo pode ser diferente do que já foi. Não há compromissos com o que já foi.
O foda mesmo é quando a destruição é parcial. Nos escombros vemos reflexos do que foi. A tentação de recriar o que já foi é enorme. Quase irresístivel! Das ruínas, imaginamos o ressurgimento das mesmas paredes, das mesmas cores e, até, das mesmas dores.
Mas, e se o que já foi teima em não se moldar à reconstrução? Nessas horas, por mais que doa, o melhor é eliminar os escombros. Destruir o que sobrou. E criar o novo. De novo.

domingo, 15 de abril de 2018

Fim da linha

Naquela dia, acordou mais cedo. Um sonho que inspiraria Buñuel e Dali tornara o sono agitado. Viajava de ônibus pela avenida principal da cidade. Uma passageira, idosa, acima dos 70, se transformava em uma gata cinzenta. Agressiva. Avançava contra ele. Só recuava quando ameaçada por uma faca. De onde surgira essa faca? Não conseguia localizar sua origem.
Acordava suando. Assustado. Logo adormecia novamente. O sonho se repetia. A cada ataque da gata velha ele se aproximava da catraca do cobrador. Ficava no meio do ônibus. Da última vez, notou um maço de dinheiro no chão. Presas por um elástico, eram notas de cinquenta reais. Pelo volume devia ser mais de mil reais.
No último ataque da velha gata ao invés de ameaçá-la com a faca abaixou-se. Pegou o dinheiro. Na confusão ninguém notou. A gata velha pulou por cima da catraca e saiu em disparada pela porta que se abrira. Os demais passageiros desceram. Todos. Era o ponto final.
O motorista gritou lá da frente:
_ Fim da linha. Carro vai recolher. Todos têm que descer.
Ele quis sair. Na porta, no degrau mais baixo, a velha gata. Mostrava os dentes. Não parecia agressiva. Ao contrário, parecia sorrir. Olhava para o dinheiro que ainda estava na mão dele.
O motorista acelerou, mas o ônibus não saiu do lugar. Impaciente. Falou pra ele:
_ Tem que descer meu chapa.
Pisou no primeiro degrau. A gata velha avançou. Ele escorregou. Caiu no infinito. Acordou como se estivesse caindo de verdade. Uma sensação de impotência. Lembrou do rosto do motorista no sonho. Era um rato. Igual ao que vira na tarde anterior no meio da rua.
Quis sair da cama. Não conseguiu levantar. O peito sentia a pressão de uma haste metálica. A cabeça, no lugar do travesseiro, repousava sobre uma tábua. Sem tinta. Era uma ratoeira. Imensa. Na porta do quarto, a idosa lhe sorria. Era mesmo o fim da linha?
Não. Era dia de pagar o aluguel da pensão Gata Velha. Onde os ratos se escondem!

sábado, 14 de abril de 2018

Cinco pedrinhas

Caminhava na areia da praia. Qual? Não importa! Assim como foi naquela, poderia ter sido em qualquer uma.
Primeiro, foram três. Refletiam os raios do sol. Brancas. Não resisti. Peguei. Depois, fiquei me indagando se estava alterando o equílibrio da natureza. Eu e essa minha mania de grandeza! Bobagem. Elas continuaram comigo.
Mais à frente, mais duas. Menos brancas. Menores. Brilhavam também. Se juntaram às outras. Já não me preocupei com o desequilibrio da natureza. Havia muitas pedrinhas. Me contentei com as cinco.
Para que me servirão? Não sei. Ainda. O brilho delas se foi. Precisavam do sol. Nesse momento da vida, me ocorre, que estão prenhes do simbólico. Me fizeram lembrar que meu pai, algumas vezes, dizia a ela não me deixar só. Ela me perguntava porquê? Eu não sabia responder. Nunca soube!
Meu pai devia me conhecer melhor do que eu mesmo. Sempre me enxerguei como alguém que lida bem com a solidão. Mesmo em meio a multidões, me via só e são. Porém, olhando para trás, muitas vezes era uma solidão opaca. Sem brilho!
Meu pai sabia das coisas! Sabia de mim! De vez em quando levarei as cinco pedrinhas em busca do sol. Elas vão brilhar. Eu também!

sábado, 7 de abril de 2018

Na Estrada


No rádio do carro, ele buscava uma nova estação. Já estava muito distante do ponto de partida. O sinal da estação anterior já estava muito fraco. Irregular e cheio de ruídos. A única que sintonizou com clareza tocava música sertaneja. Apesar da rima – clareza sertaneja – não era seu tipo de música. Lembrou-se do pendrive que uma amiga lhe dera. Ela sabia de seu gosto. Devia ter músicas que lhe agradavam. Sinalizou, saiu para o acostamento, parou o carro e foi procurar o pendrive no porta-luvas. Encontrou. Deu um suspiro.
Quando estava colocando no rádio, ela apareceu. De repente. Bateu com a mão na janela do passageiro. Ele se assustou. Ela sorriu. Ele abaixou o vidro. Ela se desculpou:
_ Moço, não queria te assustar.
_ Não tem problemas. Eu estava distraído. Não lhe vi se aproximando.
_ Saí daquele mato agora. Estava apertada.
Ela pediu carona. Ele perguntou pra onde ela ia. A próxima cidade foi a resposta.
_ Fica uns 90 quilômetros daqui. Disse ela.
E continuou:
_ Pra onde o moço tá indo?
_ Tô sem destino. Qualquer rumo tá bom. Sobe aí.
Quando ela se sentou ao lado dele, mais um susto. Ela usava um shortinho minúsculo. A pele era branca, quase como leite. Lisinha. Nenhuma marca de pelo. O rosto estava na sombra quando se falaram. Era branco também. Usava uma camisa vermelha, Masculina. Com botões entreabertos logo acima dos seios. O short era de jeans. Velho. Desbotado. Nos pés, sandália rasteirinha. Tiras de couro enroladas até pouco acima dos tornozelos. Parecia uma miragem. Imediatamente, ele sentiu o pau intumescer. Fazia tempo que não transava. Estranhou. Na idade dele, isso já não acontecia com frequência. Quase 70 anos. Mas, gostou. Sentiu-se mais vivo Parece que ela notou o volume na calça dele. Desviou o olhar. Mas, não corou.
Deu partida no carro. Sinalizou, avançou e retomou o asfalto. Passava um caminhão. Ele não viu. O motorista buzinou forte. Conseguiu desviar do carro. Gritou:
_ Barbeiro filho de uma puta!
Ele, instintivamente voltou para o acostamento. Parou o carro. Muito assustada, a moça empalideceu. Ficou ainda mais branca. Como se isso fosse possível. Ele sentiu o pau amolecer. Ela notou de novo. Dessa vez não desviou o olhar. Pôs a mão esquerda sobre a coxa dele. Aproximou o rosto. Beijou a boca. A princípio ele se assustou. De novo. Mas, relaxou. Da boca, ela desceu para o pau.
Depois que ele gozou, ela baixou a janela do carro. Cuspiu. E disse:
_ Agora vamos. Você estava precisando disso. Eu também.
_ Vamos disse ele.
Sinalizou, acelerou o carro, entrou no asfalto. Outro caminhão. Um basculante. O motorista não conseguiu frear nem desviar. O carro ficou esmagado. Quando os corpos foram retirados, os bombeiros estranharam o sorriso no rosto dos dois. Um comentou com o outro:
_ Parece que estavam felizes!
O outro confirmou:
_ É. Deve ser bom morrer feliz!
No rádio, que, estranhamente, não desligara, uma música do Chico. Tua cantiga.
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Bastar dar um suspiro
Que eu vou ligeiro te consolar...