quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sutileza gera sutileza

Dias atrás, assisti a trechos de um programa tradicional de um canal de televisão brasileiro. O tema do programa foi a expressão "gentileza gera gentileza" que deu fama ao Profeta Gentileza, batizado como José Daltrino no ano de 1917 em sua cidade natal. Assim como eu, um homem nascido em ano terminado em sete. Veio ao mundo quatro décadas antes de mim.
A bem da verdade, esta edição do programa não me atraiu muito, e acabei me distraindo com outros pensamentos e afazeres naquela noite. Lembro-me vagamente da repórter ter feito menção ao Profeta e pouco recordo das outras informações e entrevistas do programa.
De qualquer forma, a expressão deve ter ficado em minha mente e, por motivo que não me é consciente, ressurgiu hoje enquanto deitado em uma rede à beira do jardim da casa de minha irmã em São Francisco do Sul.
Depois de uma soneca, induzida pelo leve balançar da rede e pela leitura das páginas iniciais de um livro de Autran Dourado, despertei com o toque de uma brisa. Ao abrir os olhos, vi as folhas de uma planta pendurada em um pilar da varanda da casa se movendo lentamente. A brisa sutil causou um sutil balançar das folhas. Dessa visão, a minha constatação: assim como gentileza gera gentileza, sutileza gera sutileza!
Ao mesmo tempo, percebi que a rede também balançava lentamente. Impossível que a brisa sutil fosse capaz de movimentar o corpo de um homem quase obeso como eu. Atualmente, voltei aos três dígitos, pesando pouco mais de 100 quilos. Aliás, esta marca fez com que, de forma igualmente sutil, duas médicas que me acompanham com exames anuais, sugerissem a retomada das minhas caminhadas diárias. Prometi tentar. Mas, aqui me desviei do assunto.
Se a brisa, em meu entendimento, não era a responsável pelo movimento da rede, o que seria? Pensando nisso, troquei a posição de minhas pernas que formavam um quatro com a direita estendida e a esquerda dobrada, para outro quatro, estendendo a esquerda e dobrando a direita. Esta sutil troca de posição, levou a um sutil balanço da rede. Ah, a famosa inércia das aulas de física sutilmente se mostrando a mim!
Dessa lembrança, dos tempos de educação pré-universitária, me veio outra mais recente: aulas de yoga com o mestre Rodrigo Bora. Desde 2020, faço sessões de yoga com ele. Nos momentos iniciais de todas as sessões, uma instrução se repete: ficar imóvel em pé, com os olhos suavemente fechados e respiração livre. Nesse momento, Rodrigo sugere: veja como mesmo parado, o corpo se movimenta com a respiração. O peito se expande com a inspiração e se contrai com a expiração. Sutilmente!
Passei alguns minutos de olhos fechados, respirando levemente, sentindo meu corpo se movimentar, mesmo parado. E com esse movimento sutil, a rede sutilmente subia e descia. O movimento se reproduzia de forma suave. De mim para a rede. Em sintonia 
Fico aqui pensando: a sutileza pode gerar sutileza em outras esferas da vida humana, que não só a física?
Recordei de um colega, professor como eu, que dizia falar cada vez mais baixo frente a uma turma de estudantes barulhenta. Segundo ele, sutilmente, a turma silenciava. Nunca experimentei! Meu jeito de lidar com isso é me calar abruptamente. Um pouco menos sutil!
Enfim, fica aqui minha sutil sugestão. Quando desejar que alguém pense em outras possibilidades de entendimento de algo, seja sutil. Não tente ganhar no grito! Exponha sua ideia suavemente. Pode ser que sua sutileza seja como a brisa e balance sutilmente as convicções do outro. Sutileza gera sutileza. Não custa tentar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Um trivial variado

_ Agora vou comer meu peixinho.
Essa afirmação partiu de Douglas, enquanto não aceitava uma corrida no aplicativo. E completou:
_ A partir de agora não estou pegando mais corrida.
No banco de trás do carro, lhe perguntei:
_ Parando já?
_ Não. Vou pausar para o almoço. Depois eu volto. Tem um peixinho me esperando em casa.
Em seguida me explicou que já estava planejando a pausa, quando o aplicativo mostrou minha corrida. Calhou que meu destino, minha casa,  estava justo na direção da sua, no Capão da Imbuia, bairro vizinho do Cristo Rei e Jardim Botânico em Curitiba. A corrida anterior terminava, não muito longe de meu ponto de partida. Após deixar o outro passageiro em uma praça, veio em busca de uns trocos a mais. Ou seja, juntou a fome com a vontade de comer! Você que me lê que me perdoe o trocadilho!
Logo depois, indaguei sobre o movimento. Douglas disse que não dá pra reclamar. Comentou sobre os colegas que reclamam do trabalho de motorista de aplicativo. Segundo Douglas, o problema é que querem escolher corrida. Assim não dá!
Ele, por exemplo, disse que logo cedo surgiu uma corrida para Quatro Barras. Outro município na região metropolitana. Segundo Douglas, os colegas dizem que não pegam, por que não tem retorno. Isto é, corrida de volta. Para ele, no entanto, a solução é simples:
_ Fiz umas quatro ou cinco corridas por lá. Foi o suficiente para cobrir o gasto do retorno vazio.
E completou:
_ Sem falar que quase sempre surge uma corrida de volta.
Um pouco antes, comentamos sobre o calor intenso. Atípico para Curitiba. Daí a conversa rumou para o período natalino. Douglas disse que este ano o clima está diferente. Não sente um ar festivo na cidade. Fiquei sem saber o que dizer. Ele, no vácuo do meu silêncio, completou:
_ Deve ser coisa da minha cabeça.
Parece satisfeito com a vida. Comentou sobre um amigo aposentado que mora na praia. De como um dia o amigo, lhe mandou um vídeo do céu no litoral com apenas uma pequena nuvem. E, junto com o vídeo, o comentário: Parece que vai chover. Não vou trabalhar hoje. Sonho de muitos que planejam a vida na praia após a aposentadoria. Minha companheira e eu estamos nesse grupo.
Douglas foi bancário e já se aposentou. Está esperando um processo de revisão da aposentadoria, pois na época foi prejudicado. Recebe apenas um salário mínimo. É um dos que estão aguardando a decisão da justiça sobre os processos contra a Previdência chamados de "revisão de toda a vida". Disse que já avisou a mulher:
_ Se ganhar o processo, os lambaris que se cuidem. Vai viver na pescaria.
Pelo jeito gosta de um peixinho. Imagino que os acompanhamentos do peixinho variem. Como dizem: na cozinha nada como um bom trivial variado! Será que hoje, o peixinho estará acompanhado de arroz, feijão e uma boa salada de tomate com alface e cebola? Ou com fritas, arroz e um bom pirão?
Eu já havia almoçado quando chamei um carro pelo aplicativo. Comentei com minha companheira, quando disse a ela:
_ Vamos tomar um café no Paço antes de ir pra casa. Quem sabe me aparece tema para uma crônica.
Não é que surgiu! No trivial variado da conversa com Douglas, encontrei um pouco da poesia do cotidiano. Concorda comigo?
Enquanto termino essa crônica, depois de uma merecida soneca vespertina, rendo minhas homenagens à vida que, mesmo nos momentos triviais, pode inspirar um cronista.