sábado, 7 de maio de 2016

A Meio Caminho

Foi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite. Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade natal.
Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves. Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro. 
No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos atrás. Se espantou, pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase que ao mesmo tempo.
Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira. Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse:
_ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui?
Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele com quase sessenta. Ela não mais que dezenove.
_ A última vez que passei aqui você não era nem nascida.
_ Verdade?
_ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha ninguém. Fui criado em um...
De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa moça que nem conheço?
Ela tentou continuar a conversa:
_ Nossa. Por que está voltando agora?
_ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem. Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um...
Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando isso pra essa moça?
Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De repente, falou pra moça:
_ Tem algum hotelzinho por aqui?
_ Não. Por que?
_ Desisti da viagem. 
_ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio. Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito por aqui. Faço uma grana extra.
_ Verdade?
_ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem.
_ Topo. Que horas você sai?
_ Meu turno se encerra daqui meia hora.
Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retrato com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus.
_ Quem são?
_ Minha avó com um passageiro de um ônibus.
Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou:
_ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas, deviam ser como os seus.
_ O que aconteceu?
_ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sózinha. Os pais estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu.
Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou:
_ Que houve?
Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois disse:
_ Vou deixar você à vontade. E saiu.
Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela percebeu que ele já tinha ido embora.
Ao lado do porta-retrato, o livro de Dalton Trevisan e um bilhete:
"Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar."
Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis, brotam lágrimas. Ninguém sabe porque.

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