quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Gritos na noite

Aquilo vinha deixando-o intrigado de longa data. Não conseguia precisar quando fora a primeira vez. Certamente, não fora muito antes do acidente. Já lá ia quase um ano desde que perdera o braço esquerdo. Um acidente bobo. Mas, doloroso. Você quer saber como foi, não é? Vou contar, apesar de não ser importante para a compreensão daquilo que o intrigava. Um marco no tempo. Somente!
Então. Ele descera a serra em direção ao mar. Era quase que uma rotina semanal.  Ao menos no verão. Dizia que era a única razão para morar em Curitiba. Tinha uma casinha no litoral. Financiada pela companhia de habitação do estado. Em Curitiba, morava com os pais. Sem estudo, trabalhava de representante comercial. O que chamavam de viajante antigamente.
Carregava seis meses de atraso nas prestações. Sempre que corria o risco de perder o imóvel, dava um jeito de saldar a dívida. Depois, atrasava os pagamentos novamente. Ainda faltavam dez anos para quitar tudo.
O patrão dele vivia se oferecendo para ajudar. Era caidasso por ele. Mas, ele não aceitava. Pelo menos era o que dizia. Já tinha transado com o patrão muitas vezes. Mas, dizia não querer misturar as coisas. Os colegas comentavam que era o patrão que o tirava dos apertos. Vai saber!
Mas, esta é outra história. Sei que você ficou curioso. Mas, não vou contar. Afinal, o que o cú tem a ver com as calças? Nesse caso, com as contas, né? Deixa pra lá.
Mesmo o acidente não interessa pra esta história. Mas, já que comecei, termino.
Então. Era um feriado prolongado no verão. Ele acordou cedo no sábado e foi pro mar. Entrou na água. Mergulhou. Sempre foi bom de fôlego. Quando estava subindo, uma lancha estava acima dele. O motor arrancou seu braço esquerdo. Foi aquela sangueira! Por sorte, havia salva-vidas na praia. Foi isso. Acidente bobo!
Voltando ao ponto inicial. No começo ele não dera muita bola. No meio da noite, acordava angustiado. Suado. Era um pesadelo. Mas, ele só lembrava o final. Um grito. De alguém. Não dele. Isso acontecia uma vez por mês. No começo. Depois passou a ser toda semana. Ao menos uma noite. Estava ficando insuportável!
Me contou quando comentei sobre as olheiras escuras que tinha observado. Disse que não estava dormindo direito. E falou do grito e do suador noturnos.
Eu me lembrei de uma historia que minha tia me contava. Ela dizia que tinha ouvido de sua mãe, minha avó por parte de pai. Falava que sonhar com grito era prenúncio de morte. Na nossa família, minha tataravô tinha passado por algo parecido. Ela acordava toda manhã suada e assustada com um grito. Acusava meu tataravô de querer assustá-la. O velho negava. Depois de um ano, a velha amanheceu morta. Toda suada! Desconfiaram do velho. Mas, ninguém conseguiu provar nada.
Perguntei pra ele há quanto tempo. Ele disse que a primeira vez foi um pouco antes do acidente. Quase um ano! Pensei comigo mesmo. Enfim, não quis assustá-lo com a história que minha tia contava. Sugeri que procurasse uma psicóloga. Podia ajudar.
Não deu tempo. Na noite seguinte, a mulher do patrão deu um tiro nele. Deu um flagra nos dois em um motel. Ele estava dormindo. Diferente da minha tataravó não morreu suado. Mas, estava endividado de novo. As prestações da casinha no litoral já estavam atrasadas por seis meses de novo. Um colega de trabalho me contou. Tinha ouvido ele conversando com o patrão.
E comigo ficou uma dúvida: será que meu tataravô sabia de algo da minha tatatavó?

sábado, 12 de outubro de 2019

Este e meu papel no filme, vamos ouvir o seu

A frase do título encerra Tristessa, romance de Jack Kerouac publicado em 1960. A versão que li é da coleção L&PM Pocket, traduzida por Edmundo Barreiros.
O cinema enquanto metáfora da vida. Usada inúmeras vezes. Mesmo em 1960, imagino que Kerouac não tenha sido o primeiro a usá-la. Afinal, esta arte-indústria era já sexagenária naquele ano. A se fiar na convenção histórica, o cinema completara 65 anos em 1960.
Apesar dessa falta de originalidade, a metáfora conserva seu charme. Ao menos para mim. Vezenquando, me vejo na condição de intérprete de papéis na vida. Um pouco sem jeito frente às câmeras. Felizmente, nem sempre atuo para as câmeras. Apesar da quase onipresença delas em nosso mundo contemporâneo. Elas estão escondidas. Mas, se você procurar bem, poderá encontrá-las. Sorria, você está sendo filmado. Nos avisam. Verdadeiro ou falso? Vai saber! Na dúvida sorrio. Apenas um sorriso tímido!
Qual é o meu papel? A quem interessa ouvir? O convite de Jack, personagem que carrega o mesmo nome do autor, mexeu comigo.
Respondo. Para quem? A mim mesmo. Afinal de contas, a escrita é, antes de tudo, um falar com si mesmo. Assim, nessa construção cotidiana de minha identidade, misturo papéis: homem que já foi menino; professor que já foi aluno; pai que já foi filho; e tantos outros.
Mas, o que me importa mesmo, é que nessa mistura, na maioria das vezes, independente do papel, o enredo foi escrita própria. Mesmo que apenas em sonhos.
Ou terá sido tudo sonho?