quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Minha garrafa ao mar

Hoje, ao acordar de manhã, vi uma mensagem de Paloma no WhatsApp. A mensagem era de ontem à noite. Me encaminhava um podcast do Rádio Novelo e me perguntava se tinha o hábito de ouvir essa mídia. Acrescentando:
_ Esse episódio está muito legal e achei que você vai curtir também.
Realmente, raramente ouço podcasts. Somente quando alguém me sugere algum. E Paloma estava certa. Afinal, já conhece o pai há pouco mais de 38 anos. Curti muito o episódio "Garrafas ao Mar" que trata do tema de forma metafórica. Mensagens do passado que encontramos casualmente. Sem saber se a intenção de quem escreveu era que a mensagem fosse lida ou não. Na maioria das vezes, sim. Porém, no caso do podcast que ouvi, as mensagens talvez não tivessem destinatário eventual. Estavam pelo mundo, como marcas de um passado não muito distante. Eram mensagens involuntárias. E foram encontradas por dois arqueólogos acidentais. Ouça o podcast e vai entender porque "arqueólogos acidentais".
Ouvi o podcast em três momentos. Logo após o café da manhã, enquanto esperava a hora de ir para uma consulta médica. Depois, uma segunda parte, enquanto caminhava para o consultório. Por fim, os últimos 20 minutos durante a caminhada de volta para casa, depois da consulta.
No campo da saúde, tudo tranquilo. Era uma consulta com Dra. Rossana, dermatologista, que me acompanha há mais de 15 anos. Nenhuma surpresa na pele. Somente os perrengues e coceiras que se acentuam no verão. Saí de lá, depois de um puxão de orelha com uma receita na mão. Bem do jeito dela, me alertou a Dra. Rossana:
_ Seu moço, não pode esquecer do protetor solar quando sai de casa. Senão, esta mancha no rosto não vai parar de crescer.
Cheguei em casa com uma interrogação:
_ E aí seu moço, o que você gostaria de escrever para deixar em uma garrafa ao mar?
Me lembrei do verso de uma canção: navegar é preciso, viver não é preciso. Alguém já me disse que, para o poeta, preciso nesse verso significa exato. Eu não gosto dessa interpretação. Para mim, preciso no verso é una forma de se referir a algo que é necessário, que faz falta. Que precisamos! De qualquer forma, para mim, a beleza da poesia está no que ela nos diz, não no que quis a poeta ou o poeta expressar. Mais que viver, necessito navegar. Por mares desconhecidos. E, também, por mares já singrados.
Então, me pus a escrever esta crônica, inspirado no que ouvi. É a minha garrafa que lanço neste mar virtual, com a esperança de que, em tempos futuros, ela seja encontrada por meio dos algoritmos informáticos. Alguém ao digitar a expressão "garrafa ao mar", vai encontrá-la. Será trazida pelas ondas eletrônicas deste vasto oceano internético para alguma praia em formato de tela.
Olá, humano. Sou um professor universitário que chegou aos 67 anos de vida. A soma de meu ano de nascimento com 10. Assim, com a aritmética simples, você já deve ter notado que nasci em 1957. Vivemos tempos esquisitos! Eu nasci no século 20. Quando criança sempre sonhava como seria a vida no século 21. Já vivo há pouco mais de 23 anos no século 21. E a vida é completamente diferente daquilo que eu sonhava nos anos da infância.
Ela é esquisita! Essa é a palavra que resume o que sinto. Por que? Porque nós, humanos, conseguimos criar uma riqueza quase que infinita e não fomos capazes de eliminar com a vida miserável de boa parte daqueles que habitam este planeta. Ainda, nessa criação de tanta riqueza estamos acabando com a possibilidade de vida neste planeta. E, parece que, como previu James Lovelock, Gaia (a Terra) vai dar um jeito de acabar com a humanidade antes que a gente acabe com ela. Será que conseguiremos evitar a ira de Gaia?
Então, se você achou minha garrafa lançada ao mar, em um século muito distante no futuro, espero que tenhamos sobrevivido.Que tenhamos dado cabo da miséria. E apaziguado a ira de Gaia!

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Quando abandonamos algo, ganhamos outra coisa

A frase que dá título a esta crônica parece um chavão. Ou uma frase de autoajuda. Porém, pode ser que as aparências enganem. Outro chavão? Para mim, a frase trata de algo fundamental na existência humana: a possibilidade ou a impossibilidade da escolha. Do decidir livremente. Mesmo com a possibilidade da escolha por uma compensação implícita na frase, nem sempre a escolha é possível.
A frase surgiu no diálogo entre duas mães na trama do filme "Vidas Passadas" de Celine Song que traz a história de Na Young e Hae Sung. Dois amigos de infância que se separam aos 12 anos, quando os pais de Na decidem emigrar para o Canadá, levando a garota e sua irmã. Hae, filho único, fica com os pais em Seoul. A frase é da mãe de Na ao responder à mãe de Hae sobre a mudança.
Mais à frente, quase ao final do filme, há duas frases de Nora, nome adotado por Na após a imigração, que  revelam esta tensão, ainda que sutil, entre a escolha autônoma e a aceitação resignada. Mas isto é para o final da crônica. Por enquanto, vem comigo!
Doze anos mais tarde, Nora está em Nova Iorque e descobre que Hae havia tentado contactá-la por meio de um comentário que fizera em uma página de Facebook de um filme do pai de Nora. Ela lhe manda uma mensagem e o reencontro virtual acontece. Depois de um tempo, há novo afastamento. Doze anos depois, novamente, Nora e Hae se encontram em Nova Iorque onde esta morava com o marido.
O primeiro encontro virtual me lembrou algumas experiências próprias. Entre os meus 18 e 19 anos morei em São José dos Campos, onde estudava engenharia. Entre as muitas coisas que vive nesse período, está a amizade com duas adolescentes. Nos encontravamos duas ou tres vezes por semana e, acabei me atraindo mais por uma delas. O problema é que ela, aparentemente, não tinha o mesmo interesse por mim. A outra, ao contrário, parecia que queria algo mais do que amizade comigo. E assim, ficamos naquele triângulo quase Drummondiano: fulana gosta de sicrano que gosta de beltrana. Desisti do curso em São José dos Campos e mudei-me para Campinas. Depois voltei para Londrina. A vida seguiu e nós tres nunca mais nos encontramos.
Corta para meados dos anos 90. Buscando no Orkut, uma rede da Internet da era pré-feicebuquiana, encontrei a beltrana que ainda morava em São José dos Campos. Ela, já formada, trabalhava como engenheira em uma tradicional multinacional cuja sede brasileira era naquela cidade. Trocamos algumas mensagens e marcamos um encontro no aeroporto de Guarulhos em uma ocasião que estava embarcando para algum congresso fora do Brasil. O reencontro foi legal, mas ficou uma sensação estranha. Ela já não era aquela moça que existia em minha memória. E, com certeza, eu também não era o rapaz presente na memória dela. No reencontro de Na e Hae, algo parecido aconteceu.
Almocamos juntos, depois fui para o embarque. No vôo pensei um pouco sobre o reencontro. Após meu retorno, continuamos trocando mensagens pelo Orkut ainda por um tempo. Depois perdemos, ou abandonamos, o contato.
De outra vez, reencontrei na Internet uma amiga de adolescência que não via há mais de três décadas. A mãe dela e a minha várias vezes insinuaram que poderíamos ser mais que amigos. Nunca aconteceu. Mas, já em tempos feicebuquianos, fiz contato e trocamos algumas mensagens. Descobri uma incompatibilidade ideológica entre nós e rapidamente me afastei do convívio virtual.
Pois é, o filme me trouxe estas lembranças de (des)encontros da vida passada. C'est la vie!
Porém, acabei me afastando do mote da crônica. Retomo o fio da meada: a possibilidade e a impossibilidade da escolha. Sobre isso, o filme me trouxe à memória um momento em sala de aula. Eu atuando como professor, percebi uma aluna de cabeça abaixada sobre os braços. Ela dormia. Condoído com o desconforto dela, sugeri que ela fosse para casa. E lhe assegurei: você não terá faltas e não prejudicará sua nota. Quem me conhece sabe que eu estava sendo muito sincero. No entanto, a resposta dela me deixou pasmo:
_ Professor, eu preciso estar aqui!
Por que ela não pode ir para casa? Por que tinha que ficar ali? São perguntas que nunca tive a resposta. Apenas respeitei a situação dela. Mas certamente não era uma escolha autônoma.
E, como mencionei no terceiro parágrafo desta crônica, ao final do filme, Nora dialogando com o marido, afirma:
_ Eu estou aqui e eu deveria estar aqui.
Aí está a tensão sutil que muitas vezes enfrentamos. É minha escolha ou uma imposição?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

E o garçom dançava no salão!

Era sábado de Carnaval. Depois da viagem de Curitiba a Londrina, descansávamos no hotel. Anoiteceu. Descobri, em busca no Google, que haveria apresentação de MPB em um restaurante nas cercanias. Caminhamos na noite quente de Carnaval.
Lá chegando, o lugar estava quase vazio. Os músicos já tocavam. Duas mesas com casais. Uma com um grupo maior. Conosco eram 12 clientes. Depois de nos sentarmos, aplausos aos músicos que terminavam uma canção. Enquanto eles recomeçavam, eu inspecionava o cardápio. E o garçom dançava no salão!
O cardápio não era muito diversificado. A fome era do tamanho de petiscos. Acompanhados de uma caipirinha. Mas, eram poucas as opções. O jeito seria experimentar  o carpaccio da casa. Escolha feita, aguardava a chance de pedir. E o garçom dançava no salão!
Com o término de mais uma música, aplausos novamente. Consegui atrair a atenção do garçom que terminou o rodopio de sua dança olhando em nossa direção. Fiz o pedido. Carpaccio e caipirinha. Pedido entregue na janela da cozinha. E no balcão do bar. Logo vi a caipirinha pronta. Esperava por ela. E o garçom dançava no salão!
Na mesa do grupo maior, mais alguns chegaram. Era aniversário de alguém. Das outras mesas, dois casais pagaram a conta e se foram. Os músicos continuavam a tocar. Música brasileira. De excelente qualidade. Mas, o pedido não chegava. E o garçom dançava no salão!
Após mais uma salva de palmas, o garçom trouxe nosso pedido. Começamos a comer. Na mesa do grupo maior, alguém se levantou. Mais um convidado chegava. Cadeiras foram movimentadas para acomodar o que chegara. E o garçom dançava no salão!
Afinal, era sábado de Carnaval. A casa estava quase vazia. Todos estavam servidos. A música era boa. O que restava ao garçom? Dançar no salão!

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Um cachorro na sessão de cinema


Em Tiradentes, para participar da Mostra de Cinema de Tiradentes, em sua 27ª edição, me divido entre as diversas atividades: sessões de curtas, sessões de longas, conversas com cineastas, oficina de produção criativa, debates sobre o campo do audiovisual, entre outras.
Algo que me surpreendeu, é que toda a programação é gratuita. Mas esta não foi a única surpresa que tive por aqui.
Na terceira noite da Mostra, consegui assistir ao documentário "Eu também não gozei" de Ana Carolina Marinho dentro da Mostra Aurora. O filme traz um relato corajoso sobre Letícia, que se descobre grávida, e tem um caráter quase épico ao nos narrar como ela enfrentou o período de gravidez e nascimento de seu filho, Pedro, bem como a tentativa de descobrir por teste de DNA qual, entre quatro homens não nomeados e identificados por 1, 2, 3 e 4, seria o pai de Pedro.
Os dois primeiros deram resultado negativo. Os outros dois se recusaram a fazer o teste. Porém, mais que saber o pai de Pedro, me parece que a epopéia de Letícia nos aponta para a difícil, quase impossível, convivência entre homens e mulheres em que se preserve a possibilidade do respeito ao outro. Trata, é claro, também da vivência da maternidade solo em seus momentos felizes ou difíceis.  É um filme surpreendente,  emocionante e inspirador.
Na mesma sessão, mais uma surpresa. O filme foi exibido no Cine Tenda, um espaço para 600 pessoas, no formato de barracão, muito bem estruturado. A sessão lotada começou com as falas de Ana Carolina e mais quatro mulheres que fizeram parte da equipe do documentário. Entre elas, a própria Letícia. Contudo, além das pessoas, um cachorro se juntou a nós. Um caramelo!
Subia e descia pelo corredor central que separa os dois conjuntos de cadeiras na sala de cinema. Anunciava sua presença com eventuais latidos. Depois de cada salva de palmas. Era como se agradecesse às palmas do público. Depois se aquietou. Mesmo quando os gatos de Letícia surgiam na tela grande, Caramelo não se manifestava! Uma surpreendente presença silenciosa na plateia. Longa vida ao Caramelo e ao cinema brasileiro!