quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Minha garrafa ao mar

Hoje, ao acordar de manhã, vi uma mensagem de Paloma no WhatsApp. A mensagem era de ontem à noite. Me encaminhava um podcast do Rádio Novelo e me perguntava se tinha o hábito de ouvir essa mídia. Acrescentando:
_ Esse episódio está muito legal e achei que você vai curtir também.
Realmente, raramente ouço podcasts. Somente quando alguém me sugere algum. E Paloma estava certa. Afinal, já conhece o pai há pouco mais de 38 anos. Curti muito o episódio "Garrafas ao Mar" que trata do tema de forma metafórica. Mensagens do passado que encontramos casualmente. Sem saber se a intenção de quem escreveu era que a mensagem fosse lida ou não. Na maioria das vezes, sim. Porém, no caso do podcast que ouvi, as mensagens talvez não tivessem destinatário eventual. Estavam pelo mundo, como marcas de um passado não muito distante. Eram mensagens involuntárias. E foram encontradas por dois arqueólogos acidentais. Ouça o podcast e vai entender porque "arqueólogos acidentais".
Ouvi o podcast em três momentos. Logo após o café da manhã, enquanto esperava a hora de ir para uma consulta médica. Depois, uma segunda parte, enquanto caminhava para o consultório. Por fim, os últimos 20 minutos durante a caminhada de volta para casa, depois da consulta.
No campo da saúde, tudo tranquilo. Era uma consulta com Dra. Rossana, dermatologista, que me acompanha há mais de 15 anos. Nenhuma surpresa na pele. Somente os perrengues e coceiras que se acentuam no verão. Saí de lá, depois de um puxão de orelha com uma receita na mão. Bem do jeito dela, me alertou a Dra. Rossana:
_ Seu moço, não pode esquecer do protetor solar quando sai de casa. Senão, esta mancha no rosto não vai parar de crescer.
Cheguei em casa com uma interrogação:
_ E aí seu moço, o que você gostaria de escrever para deixar em uma garrafa ao mar?
Me lembrei do verso de uma canção: navegar é preciso, viver não é preciso. Alguém já me disse que, para o poeta, preciso nesse verso significa exato. Eu não gosto dessa interpretação. Para mim, preciso no verso é una forma de se referir a algo que é necessário, que faz falta. Que precisamos! De qualquer forma, para mim, a beleza da poesia está no que ela nos diz, não no que quis a poeta ou o poeta expressar. Mais que viver, necessito navegar. Por mares desconhecidos. E, também, por mares já singrados.
Então, me pus a escrever esta crônica, inspirado no que ouvi. É a minha garrafa que lanço neste mar virtual, com a esperança de que, em tempos futuros, ela seja encontrada por meio dos algoritmos informáticos. Alguém ao digitar a expressão "garrafa ao mar", vai encontrá-la. Será trazida pelas ondas eletrônicas deste vasto oceano internético para alguma praia em formato de tela.
Olá, humano. Sou um professor universitário que chegou aos 67 anos de vida. A soma de meu ano de nascimento com 10. Assim, com a aritmética simples, você já deve ter notado que nasci em 1957. Vivemos tempos esquisitos! Eu nasci no século 20. Quando criança sempre sonhava como seria a vida no século 21. Já vivo há pouco mais de 23 anos no século 21. E a vida é completamente diferente daquilo que eu sonhava nos anos da infância.
Ela é esquisita! Essa é a palavra que resume o que sinto. Por que? Porque nós, humanos, conseguimos criar uma riqueza quase que infinita e não fomos capazes de eliminar com a vida miserável de boa parte daqueles que habitam este planeta. Ainda, nessa criação de tanta riqueza estamos acabando com a possibilidade de vida neste planeta. E, parece que, como previu James Lovelock, Gaia (a Terra) vai dar um jeito de acabar com a humanidade antes que a gente acabe com ela. Será que conseguiremos evitar a ira de Gaia?
Então, se você achou minha garrafa lançada ao mar, em um século muito distante no futuro, espero que tenhamos sobrevivido.Que tenhamos dado cabo da miséria. E apaziguado a ira de Gaia!

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Quando abandonamos algo, ganhamos outra coisa

A frase que dá título a esta crônica parece um chavão. Ou uma frase de autoajuda. Porém, pode ser que as aparências enganem. Outro chavão? Para mim, a frase trata de algo fundamental na existência humana: a possibilidade ou a impossibilidade da escolha. Do decidir livremente. Mesmo com a possibilidade da escolha por uma compensação implícita na frase, nem sempre a escolha é possível.
A frase surgiu no diálogo entre duas mães na trama do filme "Vidas Passadas" de Celine Song que traz a história de Na Young e Hae Sung. Dois amigos de infância que se separam aos 12 anos, quando os pais de Na decidem emigrar para o Canadá, levando a garota e sua irmã. Hae, filho único, fica com os pais em Seoul. A frase é da mãe de Na ao responder à mãe de Hae sobre a mudança.
Mais à frente, quase ao final do filme, há duas frases de Nora, nome adotado por Na após a imigração, que  revelam esta tensão, ainda que sutil, entre a escolha autônoma e a aceitação resignada. Mas isto é para o final da crônica. Por enquanto, vem comigo!
Doze anos mais tarde, Nora está em Nova Iorque e descobre que Hae havia tentado contactá-la por meio de um comentário que fizera em uma página de Facebook de um filme do pai de Nora. Ela lhe manda uma mensagem e o reencontro virtual acontece. Depois de um tempo, há novo afastamento. Doze anos depois, novamente, Nora e Hae se encontram em Nova Iorque onde esta morava com o marido.
O primeiro encontro virtual me lembrou algumas experiências próprias. Entre os meus 18 e 19 anos morei em São José dos Campos, onde estudava engenharia. Entre as muitas coisas que vive nesse período, está a amizade com duas adolescentes. Nos encontravamos duas ou tres vezes por semana e, acabei me atraindo mais por uma delas. O problema é que ela, aparentemente, não tinha o mesmo interesse por mim. A outra, ao contrário, parecia que queria algo mais do que amizade comigo. E assim, ficamos naquele triângulo quase Drummondiano: fulana gosta de sicrano que gosta de beltrana. Desisti do curso em São José dos Campos e mudei-me para Campinas. Depois voltei para Londrina. A vida seguiu e nós tres nunca mais nos encontramos.
Corta para meados dos anos 90. Buscando no Orkut, uma rede da Internet da era pré-feicebuquiana, encontrei a beltrana que ainda morava em São José dos Campos. Ela, já formada, trabalhava como engenheira em uma tradicional multinacional cuja sede brasileira era naquela cidade. Trocamos algumas mensagens e marcamos um encontro no aeroporto de Guarulhos em uma ocasião que estava embarcando para algum congresso fora do Brasil. O reencontro foi legal, mas ficou uma sensação estranha. Ela já não era aquela moça que existia em minha memória. E, com certeza, eu também não era o rapaz presente na memória dela. No reencontro de Na e Hae, algo parecido aconteceu.
Almocamos juntos, depois fui para o embarque. No vôo pensei um pouco sobre o reencontro. Após meu retorno, continuamos trocando mensagens pelo Orkut ainda por um tempo. Depois perdemos, ou abandonamos, o contato.
De outra vez, reencontrei na Internet uma amiga de adolescência que não via há mais de três décadas. A mãe dela e a minha várias vezes insinuaram que poderíamos ser mais que amigos. Nunca aconteceu. Mas, já em tempos feicebuquianos, fiz contato e trocamos algumas mensagens. Descobri uma incompatibilidade ideológica entre nós e rapidamente me afastei do convívio virtual.
Pois é, o filme me trouxe estas lembranças de (des)encontros da vida passada. C'est la vie!
Porém, acabei me afastando do mote da crônica. Retomo o fio da meada: a possibilidade e a impossibilidade da escolha. Sobre isso, o filme me trouxe à memória um momento em sala de aula. Eu atuando como professor, percebi uma aluna de cabeça abaixada sobre os braços. Ela dormia. Condoído com o desconforto dela, sugeri que ela fosse para casa. E lhe assegurei: você não terá faltas e não prejudicará sua nota. Quem me conhece sabe que eu estava sendo muito sincero. No entanto, a resposta dela me deixou pasmo:
_ Professor, eu preciso estar aqui!
Por que ela não pode ir para casa? Por que tinha que ficar ali? São perguntas que nunca tive a resposta. Apenas respeitei a situação dela. Mas certamente não era uma escolha autônoma.
E, como mencionei no terceiro parágrafo desta crônica, ao final do filme, Nora dialogando com o marido, afirma:
_ Eu estou aqui e eu deveria estar aqui.
Aí está a tensão sutil que muitas vezes enfrentamos. É minha escolha ou uma imposição?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

E o garçom dançava no salão!

Era sábado de Carnaval. Depois da viagem de Curitiba a Londrina, descansávamos no hotel. Anoiteceu. Descobri, em busca no Google, que haveria apresentação de MPB em um restaurante nas cercanias. Caminhamos na noite quente de Carnaval.
Lá chegando, o lugar estava quase vazio. Os músicos já tocavam. Duas mesas com casais. Uma com um grupo maior. Conosco eram 12 clientes. Depois de nos sentarmos, aplausos aos músicos que terminavam uma canção. Enquanto eles recomeçavam, eu inspecionava o cardápio. E o garçom dançava no salão!
O cardápio não era muito diversificado. A fome era do tamanho de petiscos. Acompanhados de uma caipirinha. Mas, eram poucas as opções. O jeito seria experimentar  o carpaccio da casa. Escolha feita, aguardava a chance de pedir. E o garçom dançava no salão!
Com o término de mais uma música, aplausos novamente. Consegui atrair a atenção do garçom que terminou o rodopio de sua dança olhando em nossa direção. Fiz o pedido. Carpaccio e caipirinha. Pedido entregue na janela da cozinha. E no balcão do bar. Logo vi a caipirinha pronta. Esperava por ela. E o garçom dançava no salão!
Na mesa do grupo maior, mais alguns chegaram. Era aniversário de alguém. Das outras mesas, dois casais pagaram a conta e se foram. Os músicos continuavam a tocar. Música brasileira. De excelente qualidade. Mas, o pedido não chegava. E o garçom dançava no salão!
Após mais uma salva de palmas, o garçom trouxe nosso pedido. Começamos a comer. Na mesa do grupo maior, alguém se levantou. Mais um convidado chegava. Cadeiras foram movimentadas para acomodar o que chegara. E o garçom dançava no salão!
Afinal, era sábado de Carnaval. A casa estava quase vazia. Todos estavam servidos. A música era boa. O que restava ao garçom? Dançar no salão!

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Um cachorro na sessão de cinema


Em Tiradentes, para participar da Mostra de Cinema de Tiradentes, em sua 27ª edição, me divido entre as diversas atividades: sessões de curtas, sessões de longas, conversas com cineastas, oficina de produção criativa, debates sobre o campo do audiovisual, entre outras.
Algo que me surpreendeu, é que toda a programação é gratuita. Mas esta não foi a única surpresa que tive por aqui.
Na terceira noite da Mostra, consegui assistir ao documentário "Eu também não gozei" de Ana Carolina Marinho dentro da Mostra Aurora. O filme traz um relato corajoso sobre Letícia, que se descobre grávida, e tem um caráter quase épico ao nos narrar como ela enfrentou o período de gravidez e nascimento de seu filho, Pedro, bem como a tentativa de descobrir por teste de DNA qual, entre quatro homens não nomeados e identificados por 1, 2, 3 e 4, seria o pai de Pedro.
Os dois primeiros deram resultado negativo. Os outros dois se recusaram a fazer o teste. Porém, mais que saber o pai de Pedro, me parece que a epopéia de Letícia nos aponta para a difícil, quase impossível, convivência entre homens e mulheres em que se preserve a possibilidade do respeito ao outro. Trata, é claro, também da vivência da maternidade solo em seus momentos felizes ou difíceis.  É um filme surpreendente,  emocionante e inspirador.
Na mesma sessão, mais uma surpresa. O filme foi exibido no Cine Tenda, um espaço para 600 pessoas, no formato de barracão, muito bem estruturado. A sessão lotada começou com as falas de Ana Carolina e mais quatro mulheres que fizeram parte da equipe do documentário. Entre elas, a própria Letícia. Contudo, além das pessoas, um cachorro se juntou a nós. Um caramelo!
Subia e descia pelo corredor central que separa os dois conjuntos de cadeiras na sala de cinema. Anunciava sua presença com eventuais latidos. Depois de cada salva de palmas. Era como se agradecesse às palmas do público. Depois se aquietou. Mesmo quando os gatos de Letícia surgiam na tela grande, Caramelo não se manifestava! Uma surpreendente presença silenciosa na plateia. Longa vida ao Caramelo e ao cinema brasileiro!

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Sutileza gera sutileza

Dias atrás, assisti a trechos de um programa tradicional de um canal de televisão brasileiro. O tema do programa foi a expressão "gentileza gera gentileza" que deu fama ao Profeta Gentileza, batizado como José Daltrino no ano de 1917 em sua cidade natal. Assim como eu, um homem nascido em ano terminado em sete. Veio ao mundo quatro décadas antes de mim.
A bem da verdade, esta edição do programa não me atraiu muito, e acabei me distraindo com outros pensamentos e afazeres naquela noite. Lembro-me vagamente da repórter ter feito menção ao Profeta e pouco recordo das outras informações e entrevistas do programa.
De qualquer forma, a expressão deve ter ficado em minha mente e, por motivo que não me é consciente, ressurgiu hoje enquanto deitado em uma rede à beira do jardim da casa de minha irmã em São Francisco do Sul.
Depois de uma soneca, induzida pelo leve balançar da rede e pela leitura das páginas iniciais de um livro de Autran Dourado, despertei com o toque de uma brisa. Ao abrir os olhos, vi as folhas de uma planta pendurada em um pilar da varanda da casa se movendo lentamente. A brisa sutil causou um sutil balançar das folhas. Dessa visão, a minha constatação: assim como gentileza gera gentileza, sutileza gera sutileza!
Ao mesmo tempo, percebi que a rede também balançava lentamente. Impossível que a brisa sutil fosse capaz de movimentar o corpo de um homem quase obeso como eu. Atualmente, voltei aos três dígitos, pesando pouco mais de 100 quilos. Aliás, esta marca fez com que, de forma igualmente sutil, duas médicas que me acompanham com exames anuais, sugerissem a retomada das minhas caminhadas diárias. Prometi tentar. Mas, aqui me desviei do assunto.
Se a brisa, em meu entendimento, não era a responsável pelo movimento da rede, o que seria? Pensando nisso, troquei a posição de minhas pernas que formavam um quatro com a direita estendida e a esquerda dobrada, para outro quatro, estendendo a esquerda e dobrando a direita. Esta sutil troca de posição, levou a um sutil balanço da rede. Ah, a famosa inércia das aulas de física sutilmente se mostrando a mim!
Dessa lembrança, dos tempos de educação pré-universitária, me veio outra mais recente: aulas de yoga com o mestre Rodrigo Bora. Desde 2020, faço sessões de yoga com ele. Nos momentos iniciais de todas as sessões, uma instrução se repete: ficar imóvel em pé, com os olhos suavemente fechados e respiração livre. Nesse momento, Rodrigo sugere: veja como mesmo parado, o corpo se movimenta com a respiração. O peito se expande com a inspiração e se contrai com a expiração. Sutilmente!
Passei alguns minutos de olhos fechados, respirando levemente, sentindo meu corpo se movimentar, mesmo parado. E com esse movimento sutil, a rede sutilmente subia e descia. O movimento se reproduzia de forma suave. De mim para a rede. Em sintonia 
Fico aqui pensando: a sutileza pode gerar sutileza em outras esferas da vida humana, que não só a física?
Recordei de um colega, professor como eu, que dizia falar cada vez mais baixo frente a uma turma de estudantes barulhenta. Segundo ele, sutilmente, a turma silenciava. Nunca experimentei! Meu jeito de lidar com isso é me calar abruptamente. Um pouco menos sutil!
Enfim, fica aqui minha sutil sugestão. Quando desejar que alguém pense em outras possibilidades de entendimento de algo, seja sutil. Não tente ganhar no grito! Exponha sua ideia suavemente. Pode ser que sua sutileza seja como a brisa e balance sutilmente as convicções do outro. Sutileza gera sutileza. Não custa tentar.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Um trivial variado

_ Agora vou comer meu peixinho.
Essa afirmação partiu de Douglas, enquanto não aceitava uma corrida no aplicativo. E completou:
_ A partir de agora não estou pegando mais corrida.
No banco de trás do carro, lhe perguntei:
_ Parando já?
_ Não. Vou pausar para o almoço. Depois eu volto. Tem um peixinho me esperando em casa.
Em seguida me explicou que já estava planejando a pausa, quando o aplicativo mostrou minha corrida. Calhou que meu destino, minha casa,  estava justo na direção da sua, no Capão da Imbuia, bairro vizinho do Cristo Rei e Jardim Botânico em Curitiba. A corrida anterior terminava, não muito longe de meu ponto de partida. Após deixar o outro passageiro em uma praça, veio em busca de uns trocos a mais. Ou seja, juntou a fome com a vontade de comer! Você que me lê que me perdoe o trocadilho!
Logo depois, indaguei sobre o movimento. Douglas disse que não dá pra reclamar. Comentou sobre os colegas que reclamam do trabalho de motorista de aplicativo. Segundo Douglas, o problema é que querem escolher corrida. Assim não dá!
Ele, por exemplo, disse que logo cedo surgiu uma corrida para Quatro Barras. Outro município na região metropolitana. Segundo Douglas, os colegas dizem que não pegam, por que não tem retorno. Isto é, corrida de volta. Para ele, no entanto, a solução é simples:
_ Fiz umas quatro ou cinco corridas por lá. Foi o suficiente para cobrir o gasto do retorno vazio.
E completou:
_ Sem falar que quase sempre surge uma corrida de volta.
Um pouco antes, comentamos sobre o calor intenso. Atípico para Curitiba. Daí a conversa rumou para o período natalino. Douglas disse que este ano o clima está diferente. Não sente um ar festivo na cidade. Fiquei sem saber o que dizer. Ele, no vácuo do meu silêncio, completou:
_ Deve ser coisa da minha cabeça.
Parece satisfeito com a vida. Comentou sobre um amigo aposentado que mora na praia. De como um dia o amigo, lhe mandou um vídeo do céu no litoral com apenas uma pequena nuvem. E, junto com o vídeo, o comentário: Parece que vai chover. Não vou trabalhar hoje. Sonho de muitos que planejam a vida na praia após a aposentadoria. Minha companheira e eu estamos nesse grupo.
Douglas foi bancário e já se aposentou. Está esperando um processo de revisão da aposentadoria, pois na época foi prejudicado. Recebe apenas um salário mínimo. É um dos que estão aguardando a decisão da justiça sobre os processos contra a Previdência chamados de "revisão de toda a vida". Disse que já avisou a mulher:
_ Se ganhar o processo, os lambaris que se cuidem. Vai viver na pescaria.
Pelo jeito gosta de um peixinho. Imagino que os acompanhamentos do peixinho variem. Como dizem: na cozinha nada como um bom trivial variado! Será que hoje, o peixinho estará acompanhado de arroz, feijão e uma boa salada de tomate com alface e cebola? Ou com fritas, arroz e um bom pirão?
Eu já havia almoçado quando chamei um carro pelo aplicativo. Comentei com minha companheira, quando disse a ela:
_ Vamos tomar um café no Paço antes de ir pra casa. Quem sabe me aparece tema para uma crônica.
Não é que surgiu! No trivial variado da conversa com Douglas, encontrei um pouco da poesia do cotidiano. Concorda comigo?
Enquanto termino essa crônica, depois de uma merecida soneca vespertina, rendo minhas homenagens à vida que, mesmo nos momentos triviais, pode inspirar um cronista.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Quando quis ser presidente do Brasil

Dias atrás, mexendo em meus guardados encontrei um recorte de jornal datado de 28/04/1991. Publicado na Folha de Londrina, no começo de meu doutoramento na Universidade de Manchester na Inglaterra, tinha o formato de uma crônica em que eu juntei duas notícias inglesas com uma ameaça do governador do Paraná à época contra as universidades que haviam iniciado uma greve.
Do outro lado do Atlântico, juntei o elogio de um juiz inglês a um estrupador que, segundo ele, ao cometer o odioso crime contra uma mulher, tivera a consideração de usar camisinha, com o comentário de uma auto denominada "old fashioned lady" publicado no Lancaster Guardian que alertava as mocas do Lancashire sobre o risco de usar minissaias, e a possibilidade do governador paranaense de mandar fechar as universidades por 90 dias como forma de resolver a greve. O título da crônica que, para minha surpresa, foi realmente publicada na Folha de Londrina foi "Estupro, mini-saia, UEL". O teor da crônica você pode conferir na fotografia que acompanha este post.
Então, este precioso registro de um texto que escrevi há mais de 32 anos existe graças ao trabalho valioso de minha mãe que se atribuiu a tarefa de manter ao longo de sua vida um "livro da vida" de cada um dos seus filhos: Christovam Junior, Kilda Maria, este que escreve este post, e Arlindo, nascidos em 1954, 1956, 1957 e 1959, respectivamente. Veja você, eu já estava com 34 anos e minha mãe continuava seu trabalho de historiadora da vida de seus filhos, além de outros registros sobre nossos ancestrais tanto do lado materno quanto paterno.
Após o falecimento de minha mãe, em 2019, eu trouxe para Curitiba todo o material que ela coletou ao longo de sua vida. Um dia ainda vou me dedicar a organizar essa reliquia histórica  e, quem sabe, construir uma narrativa em formato de livro da história dos filhos de Kilda e Christovam Gimenez.
Porém, este é um projeto para o futuro. Neste post hoje, quero relembrar um momento em que ainda criança, talvez transitando para a minha adolescência, em que tive um diálogo breve e marcante com minha mãe. Eu nunca me esqueci e ela também vezenquando rememorava este fato.
Certo dia, morando ainda na nossa casa da Rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez, vi minha mãe trabalhando com os livros da vida dos filhos. Talvez fosse um domingo, pois de segunda a sábado, ela e meu pai estavam sempre atarefados com a condução da pequena empresa familiar. Ao vê-la, me aproximei e disse:
_ Mãe, sabe que eu acho isso que você faz muito importante, viu!
Surpresa, ela se virou e perguntou:
_ Por que Fernando?
Ao que imediatamente respondi:
_ Quando eu for presidente do Brasil, o trabalho dos historiadores ficará bem fácil.
Ja rindo, ela continuou:
_ Por que?
Ao que logicamente respondi:
_ Ué! Você já está deixando tudo bem organizado para eles. Vão ter só que pegar este livro com você!
Hoje, a caminho de casa, me veio esta lembrança. Mistérios da mente humana. Foi uma memória que surgiu de forma graciosa e me fez rir sozinho no meio do caminho.
Ainda bem que, ao longo dos anos, fui criando juízo e abandonei esta ambição nas memórias da infância. Ou será que ainda dá tempo? Pros historiadores, boa parte do trabalho Dona Kilda já fez!

domingo, 26 de novembro de 2023

Rachel de Queiroz, a cronista


Dias atrás, minha companheira e eu fomos a um evento organizado pelo Plural, jornal online curitibano. No Beck's Bar, o evento era uma oportunidade de trocar livros. No convite o mote: traga um livro e troque por outro. O tão antigo escambo transformado na oportunidade de acessar um livro ainda não adquirido.
Eu, com meu recém lançado livro de crônicas - O Clarinetista na Janela - e outro livro de escritor londrinense também, aproveitei a oportunidade para trocar o segundo por um livro de Cristóvão Tezza - Beatriz e o Poeta. Deixei o meu de crônicas na esperança de que fosse o objeto de escambo por leitor ou leitora anônima. Minha companheira trocou o livro que levou por uma coletânea de crônicas de Rachel de Queiroz. Depois dos comes e bebes no Beck's Bar, retornamos para casa com os livros escolhidos.
Dias depois, no domingo passado, embarquei para Brasília onde passaria quatro dias a trabalho, em atividades vinculadas ao curso de pós-graduação em políticas públicas em que atuo na universidade. Pensando nas pouca mais de duas horas de vôo entre Curitiba e Brasília, mais algum tempo de espera no aeroporto, levei o livro de crônicas de Rachel comigo. É claro que devidamente autorizado pela proprietária do livro, minha companheira.
Depois que passei pelos controles de segurança no aeroporto, sentei-me próximo ao portão de embarque previsto para o vôo. Iniciei a leitura das cronicas de Rachel de Queiroz, de quem, em minha memória trago a lembrança de ter lido seu livro de estreia, O Quinze. Leitura que fiz ainda adolescente, provavelmente guiado por sugestão ou tarefa de algum professor ou professora de literatura durante meus estudos de ensino médio. Teria sido a professora Zita Kiel, no Colégio Londrinense, quem me aproximou de Rachel de Queiroz?
Não sei dizer! Porém, guardo uma memória afetiva dessa professora que muitos e muitas conheceram em Londrina, minha cidade natal. Foi com a professora Zita com quem aprendi a diferença entre rima rica e rima pobre. Foi ela, também que, ousadamente em uma aula matinal, sugeriu a uma turma de rapazes e moças que o mênstruo, que explicou ser a menstruação, feminina, poderia ser tema de poesia. Foi ela, ainda, que certa manhã sugeriu um tema de redação - Encontro - que, para mim, até onde minha memória me serve, foi meu primeiro escrito de ficção em que explorei os múltiplos significados que uma palavra pode assumir. Ah, professora Zita! Cinquenta anos atrás, você me guiava, talvez inconscientemente, nos caminhos da literatura que ainda hoje me atraem. E, quem diria, praticante da escrita em vários gêneros.
Não esperava, que ao desejar comentar sobre as crônicas de Rachel de Queiroz, eu trilharia por memórias da adolescência. Volto a Rachel de Queiroz. Confesso que as primeiras crônicas que li, me desagradaram. Ousadia minha criticar a escrita da primeira escritora a integrar a Academia Brasileira de Letras? Talvez não! A crônica, como estilo literário, às vezes, pode ser datada. Isto é, tratar de assuntos que com o passar dos anos, perdem o interesse. Talvez, tenha sido esse o motivo de meu desagrado com as primeiras crônicas. Ou talvez, por serem crônicas iniciais dessa grande escritora brasileira. 
A coletânea de crônicas de Rachel de Queiroz segue uma ordem cronológica. A primeira é de janeiro de 1946. A última foi publicada em fins de 1956. Pouco mais de uma década de textos. No conjunto, são, como diz o título do livro, 100 crônicas escolhidas: um alpendre, uma rede, um açúcar.
No vôo de volta, continuei as leituras. Hoje avancei um pouco mais. Cheguei aos textos do começo da década de 50. Ah, a persistência é recompensada! 
Crônicas deliciosas e inspiradoras surgiram na segunda metade da coletânea. Entre elas, Jimmy escrita na Paris de 1950, e História alegre, no Rio de Janeiro, em 1951. Memórias de 1952 e O direito de escrever do mesmo ano são crônicas impecáveis sobre a própria escrita. Também desse ano, a dolorida Cantiga de navio e a divertida Um punhado de farinha. Entre tantas crônicas que me ajudaram a refletir sobre esse gênero que me atrai, por fim, destaco O rei dos caminhos, descrição inesquecível da profissão de caminhoneiro no nordeste brasileiro dos ano 50 do século passado.
Ah. Rachel de Queiroz, a cronista! Quem diria que, 50 anos depois de ler O quinze, eu teria esta oportunidade de reencontrá-la! E aprender com você, que mesmo na crônica há espaço para a ficção e poesia.
Você que me lê, quer um exemplo? Leia a Simples história do amolador de facas e tesouras, escrita em 1956, na qual a cronista escolhe um final da história diverso do que lhe foi contado. Ao invés de uma triste tragédia, a felicidade do sonho realizado!

domingo, 12 de novembro de 2023

De onde vem a inspiração? (ou uma crônica em busca de um título)

Na manhã de domingo, o calor primaveril está mais intenso. Uma caipirinha ajuda na busca do frescor. No aplicativo de músicas, uma seleção feita para ele. Assim, informa o menu. Corre o risco, e clica sobre ela. A escolha não o desaponta. Logo depois de Elba Ramalho, entra Chico César com Estado de Poesia.
De repente, talvez inspirado pela canção, ele se põe a escrever. Apesar de poeta também, a escrita segue o rumo da prosa. Naquela manhã, já acordara com vontade de escrever. Às cinco e meia, o sol nascera e seus raios se intrometiam nas frestas das cortinas que não davam conta do tamanho da janela do quarto.
Levantou e fez o café. Na cama, a mulher ainda dormia. O cão, já idoso, saíra de sua cama e se prostara frente ao ventilador que ficara ligado desde que se deitaram. O calor noturno continuava pela manhã. Ao passar pelo cão, desligou o ventilador. A mulher estava coberta, apesar do calor. Não reclamaria. O cão lhe olhou. Parecia aborrecido. Levantou-se e o seguiu à cozinha. Um pouco de ração o acalmou.
Uma xícara de café com uma fatia de pão. O seu desjejum sempre frugal. No pão, sempre manteiga com geleia. Primeiro a manteiga, depois a geleia. Às vezes, um pedaço de fruta. Mamão ou banana. O cão sempre ganha sua parte das frutas. Na manhã de domingo ficou frustrado. Não houve frutas. Mais tarde, quando a mulher se levantasse, uma fatia de mamão estaria à mesa. O cão que esperasse. Ela sempre salva um pedaço para ele. Mais tarde, o levaria para a caminhada matinal e alívio da bexiga e intestino.
Enquanto isso, na penumbra da sala, lhe vieram à mente lembranças do pai. O pai que comia as sementes do mamão. Nunca entendeu como o pai conseguia engulir aquilo. Aliás, havia muitas coisas da vida do pai que não compreendia. Na relação entre pai e filho, havia mais silêncios do que falas. Talvez, se as conversas tivessem sido mais amiúdes, as incompreensões pudessem ter sido menos frequentes. 
Qual o quê! Com um abano de mão, tentou afastar a memória. Reminiscências de uma visão romântica que lhe inculcaram na infância e adolescência. Compreender os mais velhos é obrigação dos mais jovens. Me poupa! Ele falou sozinho na sala.
O cão, já quase surdo, virou a cabeça em sua direção. Teria ouvido? Impossível saber. Mas viu quando  pegou a guia do cão. Imediatamente levantou-se e caminhou em sua direção. Desceram para a caminhada matinal.
Nada como pegar as bostas do cão na calçada para trazer alguém de volta ao mundo real. Que importam as incompreensões? O cotidiano da vida se impõe a qualquer filosofia. Haja chuva ou  faça sol, sigamos em frente. Entre bostas de cachorro, sol primaveril e pouco vento, quem sabe nasça um haicai!

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

O epilético da Praça João Mendes

Manhã de segunda em São Paulo. Antes de meu retorno a Curitiba, previsto para o meio da tarde, caminho em direção à Praça da Liberdade. Google maps estima 30 minutos para alcançá-la. Meu ponto de partida é o hotel em que me hospedei por uma semana. Nas proximidades do Parque Augusta.
Na Praça João Mendes, uma breve parada no Sebo do Messias. Busco um livro autobiográfico de Nair de Teffé publicado em 1974. Não o encontrei. Porém, memórias do tempo vivido no Bairro da Liberdade, nesse mesmo ano, me (re)encontraram.
Aos 17 anos, morava na Pensão de Dona Genoveva e Seu Orlando. Meu último ano do que agora chamam Ensino Médio. Também complementava a educação no Anglo, me preparando para os três vestibulares que enfrentei. Bem sucedido, pude escolher o que parecia a escolha correta. Sobre isso já escrevi em outra ocasião. Talvez, mais de uma.
Hoje, a memória vem também de 1974. Muito provavelmente, em uma lanchonete que já não existe mais. Era vizinha de onde se encontra o Sebo do Messias, fundado em 1969, cinco anos antes de minha vinda para a Liberdade. Mas, ainda viva na tinta de minha lembrança, expressão que empresto de Walter Firmo, o fotógrafo. Vinda para a Liberdade! Que frase de significados múltiplos! Eu aos 17 anos! Mas, esse não é o mote da memória de hoje.
Certa noite, provavelmente retornando de alguma sessão de cinema, talvez no Cine Jóia que ficava nas proximidades, antes de retornar à pensão que ficava na rua Tamandaré, resolvi fazer um lanche. A lanchonete tinha em seu centro, um balcão em forma de u. Havia também mesas espalhadas em cada canto do salão. Me acomodei em um dos bancos ao redor do balcão.
É muito provável que tenha pedido um beirute de rosbife, sanduíche que aprendi a comer em São Paulo. Seria um pedido frequente nos tempos em que vivi na Heitor Penteado, número 1310, Edifício Octavius. Do número do apartamento já não me lembro. Foram seis meses em 1982. Quando comecei meu mestrado na USP. Ao lado do prédio, havia também uma lanchonete. Inúmeras vezes, quando voltava das aulas, parava na lanchonete para comer um beirute. De rosbife. Sempre! Depois subia para o apartamento e aguardava a chegada de meu amigo José Antonio com quem dividia o apartamento, junto com sua irmã Renata e a amiga Sônia. Ontem, por acaso, um motorista de Uber, me levando ao encontro das filhas, Fernanda e Paloma, na casa de Telma e Luis, passou justamente neste endereço.
Volto, porém, à lanchonete na Praça João Mendes. Alguns minutos depois, um homem sentou-se ao meu lado. A lanchonete não estava cheia, e o fato me incomodou um pouco. Mas, como diria naquela época, fiquei na minha!
Meu beirute chegou. Comecei a comê-lo. De repente, o cara do meu lado caiu e começou a tremer. Teve um ataque epilético. Meu coração disparou e fiquei paralisado. Sem saber o que fazer. Para minha sorte, um dos atendentes deu volta ao balcão e permaneceu algum tempo segurando o homem caído para que suas convulsões não lhe causassem qualquer ferimento. Me disse, que ficasse tranquilo. Era um freguês habitual e logo se recuperaria.
Consegui terminar de comer o beirute. Paguei a conta. E comecei o caminho de volta à pensão. Foram os mais longos 1.300 metros que caminhei! Ao longo da rua Galvão Bueno na Liberdade, meu espírito foi se tranquilizando. Naquele domingo, sozinho em meu quarto, não pude contar o ocorrido para ninguém. Conto pra você hoje.