Não havia
mais o que fazer. Ou melhor, não dava mais tempo. O que fazer sempre haveria.
Mas, o tempo se esgotara. Ou melhor, vencera o prazo concedido. O tempo nunca
se esgota. É fluxo permanente. Assim como a vida. Ela continua. Nós passamos
por ela. Em nosso tempo. Para alguns, breve. Para outros, longo. Em geral, a
duração não é uma questão de escolha.
Me desvio do assunto. Vida e tempo
teimam em se meter nos meus escritos. Não é hora de falar deles. Quero dizer
sobre como ela reagiu ao fim de
maio. Ou melhor, ao fim do último maio. Maio sempre haverá, mas como o último,
talvez nenhum seja igual. No passado, também não houve. Olha o tempo espreitando para ver se
encontra uma brecha nesse texto. Não vou deixar. Estou atento!
No primeiro de maio, um domingo,
feriado desperdiçado, acordou preguiçosa. Se bem que, aposentada, para ela não
fazia diferença. No criado mudo, o vaso de flor de maio, com vários botões
florescendo. Vermelhos. Alguns já tinham
se apressado e floresceram alguns dias antes. A maioria, ainda era uma
promessa. Além do vaso, e dela, nenhum outro sinal de vida naquele quarto. Epa!
Olha a vida querendo aparecer. Já disse que não é de tempo ou vida que vou
falar.
Morava sozinha. Nunca gostou de
animais domésticos. Assim, não tinha gato, cachorro, peixe, iguana, hamster,
papagaio... uma vez pensou em adotar uma calopsita. Mas, ao ver a sujeira de
grãos na gaiola da petshop desistiu. Não estava afim de buscar sarna pra se
coçar. Para isso, tinha suas frieiras eventuais. Esfregar o vão dos dedos na
quina do colchão era muito bom. Quase tão bom quanto sexo. Fazia tempo que não
gozava dos dois prazeres. Parecia não sentir falta. Não tenho certeza. Era
muito reservada. Não comentava essas coisas.
Solitária, depois da aposentadoria,
tornou-se ainda mais calada. Recebia poucas visitas. Uma vez por semana, a
diarista. Para a limpeza mais pesada. De vez em quando, Claudete e Odária.
Vinham para um lanche no final do expediente do banco. Ela tinha sido caixa por
mais de trinta anos. As duas entraram no banco dez anos depois dela.
Conversavam sobre os outros colegas.
Claudete era viúva recente. Há seis
meses o marido morrera, vítima de um câncer fulminante no pulmão. Fumante
inveterado, entre a descoberta e a morte foram apenas três meses. Mas,
Claudete já não demonstrava sinais do luto. Estava de caso com um colega do
banco. Odária jurava que isto já estava acontecendo há muito tempo. Claudete
negava. E logo mudava de assunto quando uma das duas amigas falavam sobre Odair,
o colega do banco. Não teve filhos no casamento. O marido era estéril. Chegaram
a pensar em adoção, mas nunca tiveram coragem. O marido tinha um irmão de
criação que vivia dando problemas para a família. Na igreja, uma irmã que
trabalhava na Santa Casa, uma vez disse a Claudete que havia uma menina de dezesseis
anos que estava grávida e não queria ficar com a criança. A freira daria um
jeito de lhe passar a criança assim que nascesse. Claudete ficou empolgada.
Dias depois o cunhado encrenqueiro criou uma confusão danada com seu marido.
Ela desistiu de adotar a criança.
Odária nunca se casou. Teve alguns
pretendentes ainda na juventude. Ficara noiva de José Miguel aos vinte e dois
anos. Herdeiro de uma família proprietária de uma grande empresa produtora de chás
na cidade. Mas, a futura sogra não aprovava o casamento. Depois de três meses
de noivado, achou um jeito de mandar José Miguel para os Estados Unidos. Ele
foi fazer um curso de pós-graduação em Harvard. Lá conheceu a herdeira de um
grande laticínio de Minas Gerais. Se encantou com os olhos verdes da mineira de
pele morena. Nunca mais voltou a Curitiba. Casou-se com a moça em Las Vegas e
quando os dois terminaram o curso, foram para Minas. Ele acabou tornando-se o
administrador das propriedades do sogro. A futura sogra de Odária se
arrependeu. Tentou se reaproximar de Odária, pensando em um meio de trazer o
filho de volta. Odária não aceitou. Desiludida, não quis mais saber de nenhum
homem. Era implacável com os colegas do banco. Para sorte deles, nunca ocupou
um cargo de chefia.
Desde o feriado dominical, os
trinta dias restantes de maio se passaram sem mudanças na rotina de Isabela. Ela
mesma se concedera o prazo que estava se esgotando. Até o fim do mês daria uma
solução à solidão. Assim como as duas amigas, não tinha filhos. O observava há
alguns meses. No Bosque do Papa, onde ia pegar uns doces poloneses para o
lanche com as amigas, o viu pela primeira vez. Foi no Bosque do Papa que comeu
esse doce pela primeira vez. Nunca conseguiu guardar o nome. Era feito de uma
massa fina, tipo folhada. Duas folhas, uma embaixo e outra na parte de cima,
recheadas com um creme delicioso. A primeira vez que comeu foi quando o Papa
veio a Curitiba e ela foi ver a missa rezada por ele. Depois passou em uma das
barracas que foram montadas com comidas típicas da Polônia e comeu o doce.
Descobriu que no Bosque do Papa o doce era vendido. Ficou cliente assídua.
Uma vez, quando estava assistindo
uma apresentação de música no palco do Bosque do Papa percebeu que um rapaz
estava lhe olhando. Não tinha mais do que vinte e cinco anos. Era negro, alto,
magro e bonito. Algumas semanas depois, quando tomava um café no Museu Oscar
Niemeyer, ao lado do Bosque do Papa, viu ele passando e entrando na lojinha do
museu. Ele a viu e foi em direção a ela. Isabela se levantou, passou por ele,
foi ao caixa e pagou sua conta. Saiu apressada. Afogueada.
O rapaz a seguiu a distância.
Quando ela entrou em seu prédio, ele deu meia volta e voltou em direção ao
museu. Desde esse dia, ele ficava algumas horas em frente ao prédio dela. Dia
sim, dia não. Sempre na parte da tarde. Quando ela saía, ele sorria, mas nunca
dizia nada.
Naquele trinta e um de maio, ela
saiu de casa decidida. Era um dia sim. Ela sabia que ele estaria lá fora. Ela
já se acostumara com o sorriso dele. Chegara a sonhar com o rapaz sorridente.
Acordara afogueada. Saiu do prédio como se tivesse um compromisso. Apressada.
Olhou para onde ele sempre estava. Não viu ninguém. Ela voltou para o
apartamento. Disse ao porteiro que havia esquecido a sombrinha. Desceu depois
de cinco minutos. Ele não estava lá. Ela foi até o Bosque do Papa, comeu um
doce, sentou em um dos bancos em frente ao palco. Chorou. Seu tempo se
esgotara. Não havia mais o que fazer. A vida, porém, continuaria. Solitária.
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