Ontem o dia nasceu com um pouco de sol, embora tardio. Por aqui, nessa época, o dia clareia com a luz do sol por volta das 8:30h e começa a escurecer em torno das 16:30h. É um sol avarento e quase burocrático! Sistematicamente, cumprindo sua função de iluminação e fonte de calor por meras oito horas diárias. Como se estivesse por aqui apenas para cumprir tabela, quase sempre encoberto pelas nuvens, como neste domingo, por exemplo.
Mas, quero falar de ontem e de anteontem, nesta crônica. Não sobre hoje, já que às dez horas da manhã de um domingo, ainda não ocorreu nada de extraordinário. Apenas a rotina matinal: acordar, lavar rosto, escovar dentes, preparar o café, ligar o rádio na Sublime, estação que toca muita música, inclusive brasileira, e pouca notícia. As notícias são em holandês, é claro! Com minhas lições diárias da língua holandesa em um aplicativo gratuito, começo a entender algumas palavras. Poucas, porém! Ainda insuficientes para compreender as notícias. Mas, fujo do assunto, vamos a ontem e anteontem.
Ontem pela manhã. após minha prática diária do holandês, olhei em direção à Campusplein, praça central do campus universitário, bem em frente a nosso apartamento. Como sempre, há aves a sobrevoando, especialmente algumas gaivotas, as pegas rabudas (magpies que fizeram parte da crônica inaugural desta série) e pequenos corvos. Estes, quase sempre, caminham sobre o extenso gramado que ladeia a praça, sob as árvores já desfolhadas pelo outono que em dez dias dará lugar ao inverno.
Sob o sol claro, mas não intenso, e insuficiente para elevar a temperatura acima dos 5 graus centigrados, vi à direita um gato. Amarelo e branco, não muito grande, caminhava felinamente em direção a um bando de corvos que estavam à direita da praça, na altura do mastro em que está hasteada a bandeira da universidade de Utrecht. Em seu caminhar cuidadoso, e aparentemente silencioso, após alguns passos, o gato parava e olhava em direção ao bando de corvos. Atraído pela visão, me levantei da cadeira e fui apreciar o gato em sua aventura. Era um gato franzino, porém audacioso. Os corvos estavam em muito maior número. Me perguntei se o gato tentaria pegar um deles? E mais, teria sucesso? Aparentemente, ainda distantes, os corvos não se importavam com a aproximação do gato solitário. Ele continuava em sua caminhada silenciosa, pontuada por paradas estratégicas. Enquanto se aproximava ainda mais do bando de corvos, duas gaivotas passaram voando por ele, a uma altura muito segura. Foram em direção ao bando de corvos que, imediatamente, partiram em revoada. Frustrado, o gato deu meia volta e caminhou lentamente em direção a um dos prédios que circundam a praça. Não foi dessa vez!A cena me trouxe à lembrança a visita que fiz na sexta-feira a um médico aqui em Utrecht. Talvez, porque a razão de minha consulta tenha sido relacionada a um problema de visão. Ao exercer a visão, acompanhando a frustrada tentativa do gato de alcançar um único mísero corvo, lembrei-me de outras visões involuntárias que tive recentemente. Calma aí! Não é nada de extraordinário! Nada a ver com irrealidades ou coisas de outro mundo. Já lhe explicarei. Mas, antes, falo do médico.
Seguindo o modo de funcionamento do sistema de saúde na Holanda, após a mudança para Utrecht, já devidamente registrados e com permissão oficial de moradia no país, tivemos que nos registrar em uma clínica médica que faz os atendimentos iniciais da maioria dos casos de doença, exceto em emergências. Fizemos o registro em uma clínica não muito distante de onde moramos há cerca de três semanas. Não imaginava eu, que fosse precisar dos serviços médicos tão rapidamente. Na quinta-feira à tarde, alguns dias após os primeiros sintomas, liguei para a clínica e consegui agendar a consulta para o dia seguinte. Cheguei um pouco adiantado, mas não tive que esperar muito. Cinco minutos após o horário previsto para minha consulta, veio um médico em direção à sala de espera e me chamou pelo sobrenome:
_ Meneer Gimenez?
Com meu pouco holandês, entendi que era minha vez. Meneer Gimenez é a maneira formal de chamar um homem pelo sobrenome. Se fosse uma mulher, seria mevrouw. O médico me encaminhou a sua sala e iniciou falando em holandês. Perguntei se poderia me atender em inglês. Diante da resposta afirmativa, comecei a relatar minha condição. Ele levantou-se, me examinou, comigo ainda sentado, retornou a sua mesa e se dirigiu a mim em português:
_ Você fala português, não? Veio do Brasil?
Para minha surpresa, o médico fala português e joga capoeira. Perguntei onde aprendera nossa língua. Ao responder, me mostrou uma fotografia em preto e branco de capoeiristas em uma praia com palmeiras. Me disse que a fotografia era em Salvador e que lá estivera em 2000 ou 2001. Seu mestre de capoeira é brasileiro e eles conversam em português. Mas, imediatamente voltamos para o inglês, pois me disse que para explicar o meu problema de saúde seu domínio de nossa língua era insuficiente.
A esta altura, você já deve estar com muita curiosidade para saber o motivo que me levou ao médico, não é? É meu jeito de tentar prender a atenção de quem lê. Menciono algo nos primeiros trechos da crônica e vou enrolando! Me perdoe, mas você vai saber o motivo logo no próximo parágrafo dessa crônica. No entanto, se você for médico e tiver algum domínio do inglês já deve saber qual é meu problema de saúde a partir do título da crônica. Contudo, imagino que minha comunidade de leitoras e leitores não inclua muitos profissionais da medicina. Mesmo porque é muito pequena! Ou ainda, dependendo de sua idade, você pode saber o que são "floaters".
Dias atrás, uma semana talvez, ao sair do banheiro e ir para a sala do apartamento me sentei ao sofá e enxerguei alguns pontos negros em frente à minha cabeça. Me pareceram ser alguns pequenos mosquitos, ou até mesmo pequenas aranhas, pois tinha a sensação de enxergar fios de teias bem finos também. Passei a mão em frente ao rosto tentando afastá-los. Sem sucesso! Continuaram ao meu redor. Me levantei, um pouco aflito, e passei novamente as mãos pelo rosto. Eles continuavam lá! Minha mulher percebeu e falou:
_ Que foi amor? Está vendo coisas?
_ Sim. Uns pontos pretos ao meu redor. Foi minha resposta.
Ela me tranquilizou. Disse já ter lido sobre isso tempos atrás. Nada sério! Assim, decidi buscar informações sobre esta condição na internet. Descobri que são denominadas “floaters” em inglês e têm a ver com uma degeneração associada, em geral, à idade, e que se manifesta quando, conforme li, a substância gelatinosa (vítrea) dentro dos olhos se torna mais líquida. Isto faz com que as fibras microscópicas dentro do vítreo se agrupem, fazendo pequenas sombras na retina. Em português, encontrei a referência a “moscas volantes” em um site sobre doenças dos olhos. Ufa! Não estava vendo coisas! Nem tendo visões!
Durante a consulta, o médico disse que não encontrou anormalidades em meus olhos, mas de qualquer forma me encaminharia a um especialista para uma avaliação mais completa. Perguntei a ele se poderia esperar meu retorno para o Brasil previsto para final de abril. Ele sugeriu não aguardar. Na segunda-feira tentarei agendar a consulta com o especialista. Mas, após o exame de meus olhos, o médico capoeirista me informou que detectou os sinais iniciais de catarata.
Essa informação me fez lembrar o que me disse o oftalmologista que me acompanha há mais de 15 anos em Curitiba. Certa vez, durante uma consulta, lhe perguntei sobre como surge a catarata. Dr. Idior é um profissional muito competente e muito didático. Muito atencioso, durante suas consultas sempre me explicou detalhadamente sobre meus problemas de visão. Nesse momento, ele pegou um dos modelos plásticos de olhos sobre sua mesa e me deu uma pequena aula sobre o surgimento e crescimento da catarata em nossos olhos. Ao final disse:
_ Todo mundo vai ter catarata um dia. Só não terá se morrer antes!
Em muitas ocasiões, conversamos sobre a possibilidade de eu fazer cirurgia para corrigir a visão. Era algo que planejava fazer, mas sempre adiava em função do custo, pois não seria coberta pelo plano de saúde. Na última vez que o consultei, quando minha situação financeira estava muito mais confortável, e eu disposto a fazer a cirurgia, ele mês respondeu:
_ Fernando, agora é melhor esperar a catarata surgir. Você já está em uma idade que convêm aguardar e fazer as duas cirurgias ao mesmo tempo.
Dr. Idior, além de médico atencioso e metódico, tem um humor muito sútil. Aprecio seu humor. Me diverti com a resposta e abri um sorriso amplo. Assim, com o passar dos anos, parece que vou desenvolvendo as doenças oculares da idade que avança. Espero que as moscas volantes sejam apenas consequência deste envelhecimento e não algo mais sério. Por enquanto, vou aproveitando o exercício do dom da visão. Não é sempre que se pode observar um felino tentando se fartar com um pequeno corvo, não é mesmo? Que venha a catarata e que eu continue nesta vida por muitos anos ainda!
Uma consulta de rotina, quatro, cinco anos atrás, detectou o princípio de catarata nos olhos deste velho escribator cansados de ver tanta violência, falsidade & outras deficiência d'alma dos supostos humanos seres que perambulam pelo montículo de poeira estelar que parasitamos... Ano passado, o oftalmo que me atendeu, confirmou o diagnóstico, mas disse que, por enquanto, a cirurgia não é recomendada... O que começou a me incomodar e verei isso quando 2022 chegar, é que à noite, a acuidade visual fica bem prejudicada, sobretudo em ambientes com intensa iluminação artificial... Seja o que Zeus quiser...
ResponderExcluirSim, meu caro. Ainda bem que estamos vivos para, além da catarata, ver outras coisas desse mundo. Embora, algumas fosse melhor nao ver.
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