terça-feira, 14 de agosto de 2018

Nervos à flor da pele ou Monstros à beira de um ataque de nervos

O desentendimento começou no embarque. Um pouco antes do portão de entrada. Na fila para apresentar o cartão de embarque ela perguntou:
_ Você sabe que horas são?
_ Sete e pouco. Ele respondeu.
Instintivamente, olhei para o celular. Há muitos anos não uso relógio de pulso. Sete e catorze. Ia informá-la. Mas, alguma coisa me fez calar. Intuição. Ela não me falha.
Logo depois de mostrarem o cartão de embarque, ainda à minha frente, ela retomou o diálogo. Quer dizer, monólogo. Ele só ouviu.
_ O vôo sai às sete e cinquenta. Custava termos ido tomar um café. Mas, não! Você prefere ficar esperando dentro do avião. Esqueceu que fome me dá dor de cabeça?
Ele ia responder. Não teve tempo. Na entrada, ela pediu a uma das comissárias de bordo:
_ Você pode servir algo para comer?
_ Está tudo trancado. Só depois da decolagem. Quando começar o serviço de bordo.
Ela bufou ao ouvir a resposta. Virou para o marido. Suponho que seja. Disparou um olhar fulminante. Eu desviei o corpo. Vai que aquela energia negativa me atingisse. Se tivesse alguma crença, talvez até me benzesse!
Nunca vi um olhar tão furioso. A fome devia ser imensa! Eles ficaram na parte dianteira da aeronave. Minha poltrona era na fileira 36. Bem longe! Ops, quase digo "graças a deus"!
Próximo ao final do embarque, aeronave lotada, ouço outra voz feminina. Uma das comissárias de bordo:
_ Vamos ter que despachar suas malas. Não há mais espaço nos bagageiros.
_ Quero usar o bagageiro em cima de minha poltrona.
_ Minha senhora, o assento é marcado. O bagageiro não.
_ Não me interessa! Os outros que tirem a suas malas. Quero meu espaço!
Um princípio de tumulto. Bem perto de minha poltrona. Um imbecil xingou a mulher. Falou um palavrão. Tinha pressa para decolar. Mas, tudo acabou bem. O acompanhante dessa mulher não reagiu. Temi o pior! A mulher aceitou. Malas despachadas. Portas fechadas. Avião decolou.
Eu decido me concentrar na leitura. Um exemplar da Sight & Sound. Presente de Telma. Fernanda me trouxe ontem à noite. Retornara no domingo de Londrina. Junto com a revista, dois pacotes de Rolo. Chocolate que comia muito durantes meus anos de doutorado na Inglaterra. Presente do dia dos pais. De Paloma e Fernanda. Presentes que valem mais do que qualquer outra coisa! Sight & Sound e Rolo. Duas memórias de minhas viagens a Londres, com uma visita ao British Film Institute na Southbank sempre que possível. Agora quase embarquei em uma trip down the memory lane! Volto ao tema do post.
Na Sight & Sound, uma entrevista com Lucrécia Martel. Sobre seu último filme. Zama. Grande filme em que Matheus Nachtergale interpreta Vicuña Porto. Um bandido cruel e incerto sobre sua crueldade.
Em uma das perguntas, o entrevistador comenta sobre a presença de um protagonista masculino no filme. Zama interpretado por Daniel Giménez Cacho. Em seus filmes anteriores, Martel trouxe mulheres como protagonistas. Na resposta, a cineasta disse que não se preocupa com a questão do gênero das protagonistas de seus filmes. Em seu processo criativo, ela disse, as imagina como monstros. E completa:
_ No sentido de que um monstro é um ser instável, ele é único também, e um monstro é a melhor forma de construir um personagem, um monstro em um sentido clássico de ser uma exceção ou um fenômeno...
Fiquei pensando... O que me dizem esses dois episódios quase aéreos. Inevitável, ao menos para mim, associá-los à época sombria em que vivemos no Brasil. Me parece que os monstros estao deixando de ser exceção. Cada vez mais numerosos à nossa volta. Quase incontroláveis! Me lembrei do filme de 1968 de George Romero, A Noite dos Mortos Vivos. Cuidado! Parece que os monstros estão à beira de um ataque de nervos!

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