sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A Guardiã da Memória e o Deus do Tempo

(Uma homenagem a minha mãe)
Em 17 de janeiro de 2008, Silvana Leão escreveu uma reportagem na Folha de Londrina. Nela, relatou o trabalho de registro da história familiar e da cidade onde meus irmãos e eu nascemos, Londrina, que minha mãe Kilda fez ao longo de mais de 40 anos. Silvana Leão, deu à reportagem o título "Kilda, uma guardiã da memória".
Nesta reportagem, a jornalista relata o trabalho que minha mãe teve de montar álbuns com registros jornalísticos e fotográficos de inúmeros momentos da vida de cada um dos filhos, de seus ancestrais e das famílias Prado e Gimenez. Foram dezenas de registros personalizados, em formato de biografias, e inúmeros álbuns com recortes de jornais. U m dos mais significativos foi o que fez sobre a história do Colégio Londrinense, do qual fez parte da primeira turma de ginásio. Neste colégio, meus irmãos e eu também fizemos nossa formação escolar nos antigos primário e ginásio.
Mas, o que Silvana Leão não podia imaginar é que, ao dar a uma simples mortal o título de guardiã da memória estava desafiando o deus do tempo, o velho Cronos. Este, aparentemente adormecido, ficou furioso ao ver a ousadia de uma mera humana querer usurpar suas funções. As notícias sobre a repercussão da reportagem chegaram rápido, levadas pelos ventos, a comando de Éolo. Cronos ficou furioso e, vingativo como todos os deuses, disse:
_ Essa atrevida não perde pro esperar! Não tenho pressa, mas um dia ela vai ver o que lhe está reservado.
Realmente, Cronos, assim como todos os deuses, é imortal, portanto não tem pressa, e impiedoso. Ficou aguardando o momento em que poderia agir. Esse dia demorou quase sete anos e meio. O que para nós mortais parece muito, para Cronos foi como um segundo.
Kilda, em agosto desse ano, adoeceu. Passou quase trinta dias em uma UTI hospitalar. Foi o momento para o vingativo deus do tempo preparar sua vingança. A cada dia na UTI, Kilda parecia perder sua memória. Quando finalmente conseguiu se restabelecer, parecia que havia esquecido tudo. A guardiã da memória havia perdido a sua memória?
Não! Cronos é um deus mais sofisticado. Esta vingança seria muito simples. Ele queria algo mais impactante: dar uma lição aos humanos:
_ Ninguém pode querer ser guardião ou guardiã da memória!
Vivia exclamando isso por todos os cantos do Olimpo.
Cronos foi ardiloso. Enquanto Kilda estava semiconsciente na UTI, ele fez o seu jogo de cartas. As memórias de Kilda, assim como as nossas, ficam guardadas em fichas que se parecem com cartas de baralho. Mas, nosso baralho mental tem muito mais que quatro naipes. São quase infinitos, pois há um naipe para cada tipo de emoção que vivenciamos. A cada experiência vivida, vamos acumulando cartas com o mesmo naipe em cantos distintos de nosso cérebro.
Cronos sempre soube disso. Poderoso, aproveitou-se do descuido de Kilda e embaralhou todas as cartas de seu cérebro. Quando ela saiu da UTI, já não tinha mais como saber os naipes corretos de cada vivência em seu 89 anos. Começou a misturar tudo!
Mas, Cronos foi tapeado!
Kilda, uma mulher precavida, ao ver o título que recebera naquele dia em 2008, lembrou-se de seus estudos da mitologia grega. Desde aquele dia, sabia que alguma coisa poderia lhe acontecer. Temia a ira de Cronos. Se preparou para ela.
Nesses sete anos e meio, sempre que podia, me contava muitas histórias. E, sempre as repetia. Muitas e muitas vezes me contou histórias que já tinha me narrado em outras ocasiões. Eu não entendia por que ela assim o fazia.
Mas, agora eu sei. Hoje, ela me contou algumas histórias, mas graças às artimanhas de Cronos, elas saíram de seus lábios totalmente embaralhadas.Fragmentos de vida, de diferentes momentos, misturados como se tivessem ocorridos ao mesmo tempo. Como se todos tivessem o mesmo naipe.
Eu, pacientemente fui separando os fragmentos e juntando aqueles que tinham os mesmos naipes. Era como se montasse alguns quebra-cabeças ao mesmo tempo! Os fragmentos, com seus naipes corretos, estão em minha memória.
Me dei conta do que minha mãe fizera. Ao longo dos últimos anos foi me preparando para continuar o embate com Cronos. Cronos, essa criação humana, pensa que é mais ardilosa do que nós humanos. Dona Kilda deu uma lição a ele. A criatura jamais é mais poderosa que aqueles que a criaram.

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