sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Escriba em Dose Dupla

Foi em 1992, depois de assistir a Orlando, estrelado por Tilda Swinton, que lhe ocorrera a ideia. Neste filme, a personagem vivida pela atriz é condenada a viver eternamente jovem. Ao longo dos séculos tem diferentes gêneros. A ideia que lhe acompanhou durante anos era escrever um romance em que não se pudesse distinguir o gênero da personagem principal.
Era uma ideia audaciosa. Começara praticando em pequenos contos, mas na língua portuguesa, os adjetivos são traiçoeiros. Em qualquer momento, se não prestasse atenção, revelava o gênero pelo uso de um adjetivo. Poucos adjetivos são neutros em português, como por exemplo, leve e suave.
Após alguns exercícios, verificara que qualquer adjetivo podia ser transformado em um substantivo acompanhado de algum outro qualificativo. Ao invés de muito belo, usaria algo como tinha uma rara beleza. Em inglês seria muito mais fácil! Mas, quem sabe algum tradutor fizesse isso no futuro. Tinha ambição de conhecer a fama.
Ultimamente, havia descoberto o sistema de armazenamento de arquivos nas nuvens, o cloud computing. Abandonara o uso dos pen drives. Vinha escrevendo o romance há alguns dias, quando notou algo estranho. Revendo parte da escrita do dia anterior, encontrou este trecho:
"Naquela tarde, a caminho de casa, sentia-se vaidosa do que conseguira fazer...
Será que deixara passar este adjetivo no feminino?
Refez o texto:
"Naquela tarde, a caminho de casa, com muita vaidade do que conseguira fazer..."
Findo o trabalho do dia, salvou o arquivo e foi jantar com um casal de amigos.
Ao retomar o texto, dias depois, mais um adjetivo que não lembrava de ter usado:
"Estava se sentindo desanimado naqueles dias de inverno em..."
Fez a correção:
"Estava se sentindo com pouco ânimo naqueles dias de inverno em..."
Isto passou a ocorrer todos os dias. Por mais atenção que dedicasse à escrita, ao reler seu trabalho no dia seguinte, encontrava algum adjetivo revelador de gênero.
Certo dia, resolveu fazer um teste. Procurou um de seus antigos pendrives e, após salvar o trabalho do dia nas nuvens, salvou também no pendrive. No dia seguinte, ao comparar os dois arquivos, viu que havia uma diferença. Em um estava escrito "se sentia muito cansado..., enquanto que no outro, o do pendrive, estava o que realmente escrevera, "tinha um enorme cansaço...".
Alguém estava alterando seu texto? Quem poderia ser?
Nesse dia, teve uma ideia brilhante. Ao concluir seu esforço de escrita à noite, antes de ir dormir, ligou a câmara do computador e a deixou funcionando em uma janela minimizada do computador.
Na manhã seguinte, o mistério foi resolvido. Ao assistir o arquivo de vídeo, uma surpresa lhe deixou de boca aberta. Era a pessoa na tela do computador! Descobriu que tinha sonambulismo!
A dúvida que ficou:
Por que, enquanto dormia, preferia os adjetivos?
(Um pequeno conto, inspirado em O homem duplicado de Saramago)

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