segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Crônica de uma desmemória anunciada

De repente ela se deu conta de que está perdendo a memória. Me perguntou:
_ Você vai comprar lazanha? Ou vai fazer?
Antes que respondesse, emendou:
_ Ah! Já almoçamos.
E continuou:
_ Estou perdendo a memória. Esqueço e tenho consciência que esqueço.
A partir daí me contou sobre um episódio com seu pai que ficara completamente esclerosado. Certo dia, um velho conhecido, que não o via há mais de quarenta anos, passou no supermercado de meu pai indagando sobre seu Arlindo. Meu pai lhe respondeu que era seu genro.
O homem manifestou a vontade de rever o velho amigo. Meu pai alertou que ele não seria reconhecido. O homem insistiu. Minha mãe, então, o levou até a casa de meus avós que não distava muito de nossa, cerca de 150 metros. Ela também comentou que meu avô já não reconhecia ninguém.
Lá chegando, o homem se apresentou para minha vó como um velho conhecido de meu avó. Novamente, ele foi alertado da situação de meu avó. Assim mesmo, o homem quis rever o amigo do passado. Quando entrou no quarto, meu avô se dirigiu a ele:
_ Oi Fulano. Quanto tempo a gente não se vê.
Para surpresa de todos, a conversa continuou:
_ Você me conhece Arlindo?
_ Claro. Trabalhamos na roça juntos há mais de quarenta anos.
Ao terminar de me contar esta história, minha mãe arrematou:
_ Será que eu duro mais dez dias sem perder toda a memória.
Minha resposta não podia ser outra:
_ Claro. Ainda vai nos contar muita história. Como esta que acabou de lembrar.
Ela arrematou a conversa:
_ Só me lembro do passado.
Esta é a crônica de uma desmemória anunciada. Que ela demore a chegar completamente.
Mas, assim como ocorreu com meu avô, haverá momentos que a lembrança do passado desmentirá a falta de memória.
Enquanto isso, sigo minha sina de escriba dessas memórias que ela vai lembrando. Registro para que, no futuro, a desmemória não impere.

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