quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Durvalina e o cão de olhos vermelhos

No começo fez-se a escuridão. Repentina. Estavam, todos, na cozinha. A mesa posta em cada casa do vilarejo. Recém sentados. Mal começaram a se servir, as luzes se apagaram. Todas ao mesmo tempo. As nuvens negras impediram que a lua cheia abrandasse a completa falta de luz. O vilarejo às escuras.
À escuridão, seguiu-se o silêncio. Sepulcral. Estranhamente, nenhum som se ouviu. Permaneceram calados. Imóveis. Os lábios de cada um, firmemente cerrados. Assustados. Incapazes de qualquer balbucio. Lá fora também! Silencioso, o vilarejo parecia ter deixado de existir. Como se o tempo parasse. Acontecera como o ancião previra. Mas, somente Durvalina sabia.
Nove meses atrás. Ele chegara ao vilarejo. Acompanhado de um enorme cachorro. Olhos negros, como a pele do cachorro. Os do cão, vermelhos. A vasta cabeleira grisalha do homem se estendia até a cintura.
Na sua chegada, quase todos ficaram ressabiados. A figura estranha, arqueada com uma corcunda enorme. A pele branca e enrrugada. Apareceu na praça. De repente. Como se tivesse surgido do nada. Uma aparição. No meio da tarde. Muitos correram para casa. Os que já estavam em casa, fecharam portas e janelas.
Durvalina foi a única que não se preocupou com o forasteiro. Ela havia sonhado na noite anterior. Com gravidez. Aos 90 anos, longos cabelos grisalhos contrastando com o negrume dos olhos. No sonho ela vira uma cadela prenha. Da cachorra, nasceu apenas um enorme cão preto de olhos vermelhos, acolhido por um ancião corcunda. Era premonitório o sonho. Sonhar com mulher grávida é prenúncio de chegada. O que será, ninguém sabe. Sempre surpresa. Mas, certa.
Durvalina acolheu o ancião e seu cão em casa. Passava pela praça no momento da aparição. Jesualdo e Chico. Chico ficou no quintal. Juntou-se a Madalena, a velha gata que escolhera morar com Durvalina. Se estranharam a princípio. Jesualdo acariciou Madalena, ao mesmo tempo que ralhou com Chico. Gata e cachorro sossegaram.
Jesualdo entrou e foi direto ao quarto de Madalena. O único da casa. Com uma cama de viúva. Deitou-se. Adormeceu profundamente. Acordou apenas na manhã seguinte. Sol alto. Quase dez horas da manhã. Nem percebeu que Durvalina dormiu a seu lado. Pelo menos, foi o que ela pensou.
Na cozinha, Durvalina começava os preparativos do almoço. Arroz, feijão, frango a passarinho, salada de tomate. Jesualdo entrou. Se serviu do café na garrafa térmica. Morno. Fez uma careta. Saiu pro quintal. Chico e Madalena esticados no último degrau da pequena escada que unia a porta da cozinha ao nível do solo. Quatro degraus. De vermelhão.
Depois do almoço, Jesualdo chamou Chico e partiu. Do portão, avisou Durvalina. Daqui nove meses ficará escuro e fará silêncio. Não se assuste. Mesmo no escuro, caminhe até a praça. Nada te impedirá.
Durvalina lembrou do aviso de Jesualdo. Tateando no escuro, caminhou em direção à praça. Ao chegar, a lua surgiu entre as nuvens. Iluminou o centro da praça. No coreto, de uma cachorra nascia um cão preto, grande, de olhos vermelhos. Ao mesmo tempo, em Durvalina, cresceu uma corcunda.
Ela acolheu o cão. Seguiu em direção à estrada. Em busca de seu destino. Sua missão estava começando. A premonição do sonho. Surpresa, mas certa. Ela pensou que era o ancião e seu cachorro. Estava enganada. 
Enquanto caminhava, as nuvens se afastaram, a lua cheia clareou a noite. As luzes se acenderam nas casas. Sons foram ouvidos.
Na manhã seguinte, perceberam a ausência de Durvalina. Madalena, esticada no topo da pequena escada junto à porta da cozinha, se aquecia ao sol.

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