segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Felicidade

Ouve a chuva. Cai devagar sobre o telhado. Vem acompanhada da brisa. Suaves, as duas refrescam o começo da noite de mais um sábado de verão.
Fecha os olhos. Divaga. Dez anos atrás estava do outro lado do mundo. Enfrentava o inverno do hemisfério norte. Era a primeira vez que via neve. Naquele momento, a neve juntou-se à solidão. Foi à praça central daquele vilarejo minúsculo escondido no norte da Espanha. Deitou-se sobre a neve de barriga para cima. Agitando braços e pernas imprimiu seu perfil no solo. Caiu na gargalhada. Desde criança queria fazer isso. Vira o desenho de uma criança fazendo o mesmo em um livro da escola. Praticamente aos setenta, realizou o sonho infantil.
Com uma janela que bateu retorna ao tempo presente. Daqui um mês completará oitenta anos. Haveria algum desejo de infância ainda não satisfeito? A pergunta faz com que se lembre da cidade natal.
Saíra de lá há mais de sessenta anos. Aos dezoito anos, fugira do orfanato das irmãs de caridade. Esta fora sua casa desde os primeiros dias de vida. Uma criança abandonada junto ao portão dos fundos. Ao lado da horta, bem junto aos alfaces.
Não conhecera muito da cidade. Era uma cidade interiorana em Minas Gerais. Até os 18 anos, além do orfanato, conheceu o colégio em que estudou do primário até o ginásio. A partir dos 14, ajudava na cozinha do orfanato. Não fez amizades. Na escola só teve colegas. As irmãs do orfanato não permitiam que saísse. No orfanato, era a última criança que fora admitida. Só porque havia sido abandonada. As outras crianças já estavam se tornando adolescentes quando lá entrou. Aos cinco anos passou a ser a única criança no meio das freiras.
A fuga foi fácil. Toda segunda-feira ajudava o quitandeiro a descarregar as compras. Ele fazia entregas com uma velha caminhonete. Em um dia de chuva, enquanto o quitandeiro tomava um café na cozinha, aproveitou que ninguém olhava e se esgueirou para baixo da lona que cobria as caixas de frutas, verduras e legumes na carroceria da caminhonete. Chovia fino. O barulho da chuva na lona acalmou seu coração que quase saía pela boca.
Perto da rodoviária, ao lado do colégio onde estudara, conseguiu descer. Comprou uma passagem para São Paulo com parte do dinheiro que fora guardando ao longo dos seis meses em que planejara a fuga.Surrupiava os trocados que irmã Anunciação deixava sobre o armário. Esta fingia não notar.
Em São Paulo, nas proximidades da rodoviária, se ofereceu para ajudar na cozinha de um pequeno bar. Dormia em um canto, atrás de um balcão. Dez anos depois conseguiu comprar o bar do antigo proprietário. Nunca se casou. Teve uma vida solitária. Conseguiu construir uma rede de lanchonetes participando de licitações do serviço de alimentação em rodoviárias do país todo. A única vez que saiu do Brasil foi quando esteve no norte da Espanha. Tinha lido sobre o caminho de Santiago de Compostela. Resolveu percorrer parte dele no inverno.
Mas, e agora, quase aos oitenta, teria algo da infância que ficara na memória como um desejo não satisfeito? Tinha tudo que o sucesso empresarial podia proporcionar. O que faltava?
Em sua solidão lembrou de um brinquedo que ganhara do quitandeiro: um pião de metal que girava quando se pressionava para baixo uma haste em seu centro. O pião sumiu no mesmo dia em que ganhou. Guardou na memória o giro do pião colorido que ficava quase branco ao ganhar velocidade.
Será que esse tipo de brinquedo ainda existe? Precisava encontrar um. Queria sentir aquilo que sentira na neve dez anos atrás. Tinha sido a primeira vez que se sentira verdadeiramente feliz. Precisava repetir essa sensação. Às vezes, sentia a cabeça girar. As cores da sua vida sumiam em brancos cada vez mais frequentes. Mas, não era como o pião.

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