terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A LENDA DO MORTO-VIVO DO CEMITÉRIO SÃO PEDRO

Esta história me foi contada por meu pai. Várias vezes! Eu adorava ouvi-la. Para alguns é uma lenda urbana. Meu pai dizia que tinha acontecido mesmo. Foi assim:

Era nove de dezembro de 1955. Londrina, no dia seguinte, completaria o primeiro ano de sua terceira década.  Aniversário de 21 anos. Se fosse humana, chegava à maioridade. Assim como alguns e algumas que nasceram naquele longínquo ano de 1934, nos primórdios da história londrinense. A festa de aniversário da cidade seria inesquecível. E a história que Gervásio presenciara na véspera se tornaria uma lenda urbana londrinense.

Além dos que nasceram na cidade, aumentando a população, somando-se aos numerosos imigrantes de várias partes do Brasil e de outros países, havia também os que morriam. A inevitável dinâmica populacional. De qualquer forma, o número de nascidos e imigrantes era maior do que o de mortos e a população crescia. Na região central da cidade, o cemitério São Pedro acolhia os que faziam a passagem para o além. Independente dos credos, ou da falta de um, era lá o destino dos que se subtraíam à população local.

Gervásio era londrinense, mas nascera quatro anos antes da emancipação de Londrina como município, em 1930. Estava no frescor dos seus 25 anos. Na madrugada da véspera do aniversário da cidade, por volta das cinco horas, Gervásio caminhava pela rua Alagoas. Na escuridão da noite nublada, as lâmpadas pequenas e amarelas penduradas nos postes de madeira, iluminavam fracamente as calçadas e as ruas nas proximidades do Cemitério São Pedro. À distância, Gervásio enxergou a carroça do padeiro. Estava parada um pouco além do portão central do cemitério, que ficava na esquina com a rua São Paulo. Gervásio, mesmo à distância e com a baixa luminosidade, viu Osvaldo saindo do portão de uma das casas. Reconheceu o amigo padeiro. Sabia que Osvaldo fazia a entrega de pães e leite na região central. Gervásio agradeceu a providência divina de permitir o encontro. Estava com fome, pois saíra da casa de Terezinha antes dela acordar. Não fez café para não a incomodar. Fez o sinal da cruz em agradecimento e em respeito à aproximação do cemitério e pôs-se a caminhar em direção ao padeiro.

Gervásio, como todo humano, apesar da crença religiosa, não deixava de cometer seus pecados. Depois, nas conversas com seu divino protetor, pedia o perdão. Naquela madrugada, ele saíra mais cedo da casa de Terezinha, do que nos dias anteriores. Era uma sexta-feira, dia que saía mais cedo. Professora do então ensino primário, Terezinha era casada com Dorival, representante das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo no norte do Paraná. Dorival era o que se chamava naquela época de "viajante". De segunda a quinta, visitava os varejistas da região de Apucarana e Maringá, tirando os pedidos que seriam enviados ao escritório central da Matarazzo em São Paulo.

Voltava para casa nas manhãs de sexta e fazia a praça local aos sábados. Começava com a visita à Casa Gimenez de Christovam e Kilda, casados há apenas dois anos. Dorival tirava o pedido semanal do Gimenez. Era sempre um pedido de bom tamanho. A Casa Gimenez já tinha um bom movimento naquela época e vendia muitos dos produtos da Matarazzo, em especial os óleos e sabões. Muito próximo à residência de Terezinha e Dorival, a Casa Gimenez ficava na esquina da Paranaguá com a Goiás. Christovam e Dorival eram amigos e conterrâneos de Sertãozinho, de onde imigraram para Londrina no final dos anos 40. O amigo, de vez em quando, ajudava Dorival a cumprir a meta de vendas, comprando um pouco mais do que o usual, quando os pedidos na região de Apucarana e Maringá tinham sido fracos. Os produtos Matarazzo eram venda certa. Gimenez, como a maioria dos fregueses e viajantes o chamavam, sabia do rolo entre Terezinha e Gervásio, mas não dizia nada ao corno. Também era amigo de Gervásio. Cidade pequena! Não ia se intrometer no triângulo amoroso. Só observava e se divertia com as histórias que Gervásio contava nas tardes de sábado. Gervásio se tornara freguês da Casa Gimenez desde que começara a visitar Terezinha.

Enquanto Dorival estava fora visitando os varejistas de Apucarana e Maringá, Gervásio visitava Terezinha. Nesses dias esquecia o mandamento de não cobiçar a mulher do próximo. Lá no final da rua Alagoas, em uma casa de madeira, na esquina da Antonina, sem vizinhos ao lado e à frente, o ex-aluno trocava juras de amor com a ex-professora e, também trocava o “óleo”. Como contava para o Gimenez, entrava com o bruto, fazia o balanço e deixava o líquido. Gervásio era técnico em contabilidade e trabalhava no escritório que atendia o Gimenez. Entre os risos, Christovam só recomendava:

_ Cria juízo Gervásio! Um dia essa história pode feder.

Naquela madrugada fresca, Gervásio apressou o passo para se aproximar do amigo padeiro. Mas, assim que começou a andar mais rápido, viu o amigo subir na carroça, chicotear o cavalo e sair em disparada. A porta do compartimento da carroça ficou aberta e muitos pães caíram na rua. Espantado, Gervásio correu, mas não conseguiu alcançar o padeiro. Ao se aproximar, do portão central do cemitério, viu Valdomiro do lado de dentro. Valdomiro era um dos poucos mendigos da Londrina daquela época. Vivia pelas ruas e dormia em algum canto qualquer no centro da cidade.

Gervásio perguntou a Valdomiro o que acontecera. Valdomiro disse que havia ficado preso no cemitério, no dia anterior, quando bêbado, ao final da tarde, entrou no cemitério e dormiu em um dos cantos, encostado em uma árvore. Acordou com o barulho do padeiro. Subiu em um caixote de madeira e, com a cabeça acima do muro, se dirigiu ao padeiro:

_ Bom dia. Me dá um pão.

E o padeiro fugiu em disparada. Gervásio e Valdomiro caíram na gargalhada. Gervásio pegou um pão doce para ele. O pão doce que Dorival entregava nas casas era uma delícia! Me lembro bem dele, pois quando criança, anos depois, eu adorava comê-lo, lambuzando as mãos com o açúcar cristal que o cobria. Esse pão doce era feito pela mesma padaria que fornecia pães para venda na casa Gimenez. Gervásio deu o resto dos pães para Valdomiro que ainda teria que esperar o coveiro abrir o portão mais tarde.

Naquele sábado, ao final da tarde, Gervásio foi na Casa Gimenez comprar alguma coisa e contou o ocorrido ao meu pai. Foi assim que surgiu a lenda do morto vivo que assustou o padeiro na rua Alagoas em frente ao Cemitério São Pedro. Como dizia meu pai, isto aconteceu mesmo. O restante da história? Talvez seja fruto de minha imaginação!

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