sábado, 19 de fevereiro de 2022

Crônicas na Holanda 19 - Sobre a natureza humana ou que lobo você está alimentando?

Na última terça-feira, tive a oportunidade de falar a uma turma de mestrandas e mestrandos da Utrecht University. Minha fala foi sobre empreendedorismo no Brasil. Mais do que uma atividade obrigatória que eu havia planejado para meu período de pós doutorado, desejava muito poder interagir com jovens estudantes. 
No longínquo10 de março de 2020, poucos dias antes da suspensão da aulas na UFPR devido à pandemia de Covid eu dera minha aula inaugural para mais uma turma de graduandos em Administração. Quase dois anos depois, afastado das salas de aula,  sentia falta de ouvidos interessados, ou não, naquilo que falasse. De olhares atentos, ou não, naquilo que eu pudesse compartilhar. Das poucas perguntas,  ou, até mesmo, do silêncio constrangedor que indicaria o momento de encerrar a aula.  Sentia falta de gente! Bem como da possibilidade de falar sobre um tema que me acompanha nessa carreira acadêmica que já passou de quatro décadas.
Depois da aula, saio do prédio e me encaminho ao pátio da universidade. Chegara a este por outra entrada. Queria conhecer o que havia do outro lado. Era minha primeira vez neste espaço da Utrecht University que se esparrama por vários cantos da cidade. Surpresa! Ao centro do pátio, uma estátua de Gandhi. Devidamente fotografada com a intenção de usá-la em alguma crônica. Não imaginava, porém, que isso aconteceria tão rapidamente. Apenas quatro dias epois, Gandhi ocupa um quarto da ilustração desta crônica.
Volto à longínqua aula de março de 2020. Era a primeira aula da disciplina de Direito nas organizações. Devido à falta de um professor, me ofereci para assumir esta turma de primeiro período do curso de Administração. 
Um desafio! Afinal, não tenho formação em Direito. Mas, consistente com minha visão do que é ser professor de Administração, me coloquei à disposição da turma para juntos, buscarmos informação sobre como este campo de conhecimento pode apoiar a ação administrativa. Na primeira aula, após explicar a situação à turma, começamos nossa jornada conversando um pouco sobre partes da nossa Constituição e como ela condiciona nossa atuação profissional e como cidadão também.
Um pouco antes, eu expusera minha crença na natureza de boa índole do ser humano. E, mais importante, de como a liberdade de cada um de nós poderia, naquele contexto de aprendizagem, nos guiar na busca do conhecimento que cada um considerasse relevante. Meu papel de professor, disse a eles, não incluía ser fiscal ou juiz da qualidade da aprendizagem de cada um. Na educação sigo o princípio da aprendizagem experiencial de Carl Rogers: o melhor avaliador da aprendizagem é aquele que aprende, não o que "ensina".
Agora, volto ao momento presente. Sábado de manhã em Utrecht. Caminho em direção ao centro. Além de algumas compras, um passeio por esta cidade que me encanta a cada novo olhar. No meio do caminho, uma estátua de Anne Frank. Embora, já tivesse passado por ali antes, o monumento me passara desapercebido. Mais uma fotografia. Além de registro para uma lembrança visual de minha estada por aqui, poderia ser usada em uma crônica futura. Como você pode ver, é outra quarta parte da ilustração desta crônica. Foi rápido!
Sigo em direção a uma livraria. Perguntei sobre os livros em inglês. Além das aulas, tenho sentido falta do manuseio de um livro impresso. Entre as opções, um me chama a atenção pelo título: Humankind a hopeful history (Humanidade uma história esperançosa). Após folheá-lo rapidamente, a escolha está feita. Passo pelo caixa. Faço o pagamento e agradeço em holandês (Dank je wel). Surpresa, a atendente de origem oriental, com quem até aquele momento eu conversara em inglês, sorri e me dá um até logo em holandês (Tot ziens).
Acomodado em um café, começo a ler o livro de Rutger Breman. Jovem historiador holandês que, logo nas primeiras páginas, me conquista com seu estilo agradável de escrita e pela esperança que parece trazer a nós humanos em um momento tão complicado. 
Não! Ele não fala da pandemia! Pelo menos até onde li. Mas, parece trazer uma mensagem de esperança. A esperança que está no título de seu livro. E que começa afirmando que, ao contrário do que a maioria acredita, o ser humano é por natureza bom. Uma crença que compartilho. Muitos, ao saberem de minha descrença religiosa, já me perguntaram:
_ Fernando, em que você acredita?
Minha resposta sempre foi:
_ Acredito na humanidade.
Assim, não é nada surpreendente que o livro de Rutger Bregman tenha chamado minha atenção. No prólogo do livro ele conta algumas passagens sobre a segunda guerra mundial. De cuja história, Anne Frank é um ícone trágico. Porém, o autor tenta mostrar, que mesmo na guerra a bondade humana esteve presente. Aliás, embora Rutger no trecho que li não mencione Anne Frank, sua história também evidencia a presença da bondade humana.
Mais à frente, no primeiro capítulo, Rutger cita uma frase de Gandhi. Olha que coincidência! Gandhi se recusava "a acreditar que a tendência da natureza humana fosse sempre para baixo". Rutger cita esta fala de Gandhi junto com uma de Nelson Mandela: "a bondade do homem é uma chama que pode ser escondida, mas não extinta".
Foi no prólogo, no entanto, que o autor contou algo que me estimulou a escrever esta crônica, mesmo não sendo domingo. Domingo que é dia de crônica! Rutger Bregman resgata uma parábola que circula pela internet:
Um velho homem diz para seu neto: "Há uma luta acontecendo dentro de mim. É uma luta terrível entre dois lobos. Um é mau - raivoso, ambicioso, invejoso, arrogante e covarde. O outro é bom - pacífico, amoroso, modesto, generoso, honesto e confiável. Estes dois lobos também lutam dentro de você e de todas as pessoas". Depois de algum tempo, o neto lhe pergunta. " Qual lobo vencerá?". O avô sorri e responde. "Aquele que você alimentar".
Assim, nada mais justo que a capa do livro seja mais uma quarta parte da ilustração desta crônica. 
E, para completar a ilustração, adicionei a fotografia de uma escultura feita por Jits Bakker. Escultor holandês que tem parte de suas obras expostas em um museu ao ar livre em De Bilt, próximo a Utrecht. Fiz esta fotografia quando lá estive. 
Como você pode ver, na escultura estão dois ciclistas, também um ícone desse país em que estamos temporariamente vivendo. Mas, no contexto desta história esperançosa que comecei a ler, esta escultura traz um significado próprio para mim. A sabedoria popular diz que algumas coisas são como andar de bicicleta. Depois que a gente aprende, nunca se esquece. Assim, é com a bondade. Depois que você a prática, sempre a praticará.

Um comentário:

  1. De fato, é um texto provocativo, ao menos para mim que, muitas vezes, sinto-me totalmente descrente da humanidade. Bravo!! A crônica cumpri a missão de uma Bia crônica, tão contemporânea e tão real, mesmo que no fundamento: esperança na humanidade, eu não tenha.
    No mais, deixo aquii registro que meu marido Menno Rutger Weersma é professor de holandês e dá aulas preparatórias para teste de proficiência do idioma holandês (presencial e on-line). Contato WHATSAPP 00 55 85 999 56 36 45

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